segunda-feira, 28 de julho de 2008

Discussão do Macumbeiro e o Crente

Por Gonçalo Ferreira da Silva - Agosto, 2001

Carnaval e futebol
ficaram pra se curtir,
Os santos ensinamentos
são para o crente seguir,
religião e política
embora mereçam crítica
não são pra se discutir

Evangelista e Pilintra
não pensavam do mesmo jeito,
pois enquanto Evangelista
dis que foi por Cristo aceito
Pilitra bate no bumba
dizendo que é na macumba
que se faz tudo bem feito.

Porém, embora os dois pensem
de maneira diferente,
nunca tinham discutido
porque até o presente
não tinham, por sorte rara,
oportunidade para
um encontro frente a frente.

Mas um dia Evangelista
voltava alegre do culto
quando avistou muito longe
de Pilintra o negro vulto
que já vinha da macumba
no morro da Catacumba
já foram trocando insulto.

E onde os dois se encontraram
era uma encruzilhada
onde havia uma bebida
à Pombagira deixada
e uma galinha preta
pertinho de uma valeta
para um Exu colocada

- Que pecado monstruoso -
disse o crente, o dedo em riste
é triste um pecador crer
num troço que não existe
e fazer o mal com isto
agravando a Jesus Cristo
é vinte mil vezes triste

Pilintra lhe respondeu:
- Preste muita atenção, moço,
se macumba não existe
não carece de alvoroço
Deus também nunca lhe disse
prar querer ter a burrice
de ser santo em carne e osso.

Não era tarde da noite,
umas dez horas, e tantos,
começou a chegar gente
vinda de todos os cantos,
outros vinham feito loucos,
os que há pouco eram poucos
já não se sabia quantos.

A rua ficou lotada
de toda espécie de gente,
muitos pelo macumbeiro,
outros a favor do crente;
os aplausos ao combate
serviam para o debate
ficar cada vez mais quente

Pilintra disse: - Vocês
os crentes só fazem o bem
mas falam de todo mundo,
razão só vocês que têm
e eu na minha macumba
vivo bem com minha dumba
sem falar mal de ninguém.

O crente bateu com as juntas
dos dedos na negra capa
da Bíblia e ameaçou
dar no macumbeiro um tapa
e disse: - Na minha crença
eu não admito ofensa
mesmo que seja do Papa.

Portanto pode chamar
seu caboclo furacão
Pena Branca de Aruanda,
São Cosme e São Damião
Zé Pilintra e Preto Velho
que a luz do meu Evangelho
deixa todos sem ação.

Respondeu Pilintra: - Os guias
não são para ser chamados
para assistir bate-boca
nem para fazer mandados.
São emissários benditos
que quando estamos aflitos
vêm nos fazer consolados.

O crente cego de ódio
disse: - Cara, muito bem
qual é a luz que um espírito
que vive nas trevas tem?
E como é que tu levas
fé num espírito das trevas
que nunca ajudou ninguém?

- O mal - respondeu Pilintra
que mais combato e censuro
e que o reino de Deus
é pra vocês no futuro,
estão errados, declaro
para vocês tudo é claro
para os demais é escuro.

Convide seus Orixás
Iansã, Nanã, Ogum,
Omulu, Xangô, Oxóssi,
Iemanjá e Oxom,
Mariazinha da Praia
que quero dar uma vaia
pois não respeito nem um.

- Atire esta Bíblia fora -
disse Pilintra arrogante,
respeite a religião
que segue o seu semelhante
senão eu lhe meto o murro
porque o destino do burro
é morrer ignorante.

Um dos espectadores
quis o Pilintra agredir,
a turma do "deixa disso"
fez intruso sair
com a recomendação
de não entrar na questão
deixando os dois discutir.

A discussão nesta altura
já parecia uma briga,
vai ofensa, vem ofensa
e no meio da intriga
que parecia arruaça
a platéia achava graça
de dar cãibra na barriga.

Os homens tinham energia
na garganta como poucos,
dando socos no espaço,
já completamente roucos
uns riam pelo que viam,
outros riam dos que riam,
era um festival de loucos.

Ninguém mais se entendia
no meio da discussão.
Evangelista deixou
a Bíblia cair no chão,
e Pilintra não sabia
porque razão discutia
com tão voraz decisão.

Certo é que nem um queria
perder aquela disputa,
Pilintra não ia dar mole
nem que fosse a força bruta,
até o quinto mandamento
não cumpriria no momento
para não perder a luta.

Parecia que a disputa,
duraria a noite inteira,
mas antes da hora grande
Pilintra com voz maneira
disse: - Acabo a raça sua,
vou chamar seu Tranca-Rua,
Encruzilhada e Caveira.

Evangelista com isso
perdeu logo a esportiva
e disse: - Convide alma
de preta velha cativa,
de velho catimbozeiro
que quero ver mandingueiro
comigo ter voz ativa.

Um gozador que ouvia
a disputa atentamente
fez um boneco de pano
muito negro e reluzente,
jogou para o alto o treco
e a droga do boneco
caiu bem nos pés do crente.

O crente soltou um grito
e quis sair na carreira,
mas ao escutar as vaias
daquela cambada inteira
ouviu do canto da praça
um sujeito achando graça
igualmente uma caveira.

O crente, no desespero
quis esboçar reação,
buscando apoio do povo
disse acenando com a mão:
- Todo infeliz macumbeiro
é bandido e maconheiro,
é assassino e ladrão.

Com estas frases Pilintra
ficou muito indignado
e disse: - Cara não faça
juízo precipitado,
até o momento presente
não sei porque todo crente
tem a fala de viado.

Destas palavras pra frente
ninguém entendeu ninguém,
foi muito grande o tumulto
guias chegaram do além,
para esquentar o ambiente
no final até o crente
recebeu santo também.

Quando o guia incorporado
no crente foi novamente
para região celeste
todo o pessoal presente
entre risos e charadas,
num festival de risadas
todos mangavam do crente.

No morro da Catacumba
Pilintra lia convencido
da discussão o poema
achando não ter perdido,
o crente em sua Assembléia
também lia a epopéia
certo que tinha vencido.

Fonte: Academia Brasileira de Literatura de Cordel

Santa Angelina

A atriz entendeu o ar do seu tempo: a marca distintiva não é mais material, mas espiritual

LEITORES, ESCREVO-VOS de uma cama. Gripe sazonal. Nada de grave, espero. E então contemplo, com tédio e leve dor corporal, as imagens televisivas do momento. Angelina Jolie é mãe de gêmeos. E eu, por estranha associação de idéias, lembro a princesa Diana. Estive em Londres quando Diana morreu em acidente de automóvel. Recordo o filme: acordei cedo nessa manhã; tomei o café em silêncio; saí para a rua e uma multidão de gente chorava sem explicação racional.

Havia flores, muitas flores, em esquinas e bancos de jardim. Fotos de Diana nas janelas das lojas, das casas, dos carros. E velas ardendo nas calçadas. Alguns adolescentes dormitavam nas soleiras das portas, e muitos soluçavam como as crianças órfãs nos contos de Dickens. E às portas do Palácio de Buckingham, milhares de súditos, indignados com a indiferença da família real ante a tragédia, conspiravam entre si para derrubar a monarquia.

Era um regresso a 1688, pensei, e o novo tirano não era mais James 2º, mas Elizabeth 2ª.

E os jornais? Os jornais falavam na força da comoção nacional. Não duvido. Mas prefiro pensar em tudo aquilo como a força da comoção religiosa. Uso o termo no sentido preciso. A religião não é apenas um conjunto de dogmas e ritos destinados a celebrar a transcendência; a religião é, como diria Durkheim, um fato social. Ela permite "ligar" uma comunidade de estranhos num propósito comum.

Diana foi esse propósito. A comunidade cristã pode estar em declínio nas nossas sociedades; o número de fiéis diminui drasticamente no Ocidente "rico" e "pós-moderno"; e, para sermos honestos, quem observa as recomendações do Vaticano em matéria sexual?
Mas o recuo da comunidade cristã, com seus dogmas e ritos, não aboliu a necessidade de crença: a necessidade que temos de acreditar em algo que é maior do que nós e que redime a nossa precária condição.

E se as pessoas já não adoram figuras de madeira ou pedra, como em Fátima ou Lourdes, são os grandes mitos pop, na música ou no cinema, que servem a esse propósito: eles congregam "romarias", inspiram momentos de "transcendência", permitem que o "crente", convertido em "fã", possa assim encontrar um caminho e um exemplo.

Os santos morreram. Mas ninguém sobrevive sem o seu.

Para os ingleses, a santa era Diana. Para o mundo de hoje, a santa é Angelina Jolie. Mas quem é Angelina Jolie?

Atriz, sim. Atriz mediana, sem dúvida. Mas Angelina, com inteligência imaculada, entendeu o ar do seu tempo e agiu em conformidade: antigamente, os diamantes eram os melhores amigos das mulheres. Mas hoje, num mundo democratizado, em que qualquer milionário anônimo pode entrar em loja da Quinta Avenida e torrar uma pequena fortuna em joalheria fina, a verdadeira marca distintiva não é mais material; é espiritual.

Um diamante é fácil. Um órfão cambojano não é fácil, nem está à venda na Quinta Avenida: exige esforço, disponibilidade e, finalmente, o triunfo pio que a estrela de Hollywood gosta de exibir perante as lentes fotográficas. O caçador e o seu troféu.

Angelina não tem jóias para mostrar. Mas tem um filho cambojano, um vietnamita e uma etíope, além de uma biológica. E, agora, o Altíssimo concedeu a santa Angelina não mais um filho, e sim dois: um par de gêmeos nascidos em hospital francês, em clima de sacralidade absoluta. Cá fora, hordas de jornalistas e alienados procuravam uma imagem do milagre. Ver, sentir e eventualmente tocar os ungidos sempre consolou os crentes.

O milagre será mostrado, sim, mas por meio de revista americana que já conseguiu os direitos da "revelação" por US$ 11 milhões. A cifra será distribuída por obras de caridade.

E se os leitores ficam impressionados com os contornos religiosos do fenômeno, aviso que estamos apenas no início. Com o fim das religiões tradicionais, as celebridades pop ocuparão o lugar dos velhos santos, espalhando a palavra redentora e, quem sabe, curando os cegos, os loucos e os paralíticos.

A palavra tem sido espalhada por atores de Hollywood que, "embaixadores" das mais diversas instituições, lutam pela salvação do Tibete (são Richard Gere), do Sudão (são George Clooney), da Somália (santa Mia Farrow) e até do planeta inteiro (são Al Gore).

Mas a consagração só será absoluta quando o santo usar as próprias mãos (e, no caso de Angelina Jolie, os próprios lábios) para curar milagrosamente os enfermos deste mundo. Eu, que vos escrevo de uma cama, não me importava em ser o primeiro.

Fonte: Folha

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Texto do século I a.C. pode redefinir os vínculos entre judaísmo e cristianismo


JERUSALÉM (AFP) — Uma misteriosa tabuleta em pedra que parece datar do século I antes de Cristo pode vir a mudar a percepção sobre as origens do cristianismo e revelar que os judeus, antes mesmo de Jesus Cristo, já acreditavam na chegada de um Messias que morreria e ressuscitaria após três dias.

Isso é o que afirma o pesquisador Israel Knohl, assegurando que sua análise de um texto hebreu escrito nessa lápide 'poderá mudar a visão que temos do personagem histórico de Jesus'.

"Este texto pode constituir o elo perdido entre o judaísmo e o cristianismo à medida que insere na tradição judia a crença cristã na ressurreição de um messias", declarou à AFP este professor de estudos bíblicos da Universidade de Jerusalém.

A peça se encontra em mãos de um colecionador, David Yislsohn, que vive em Zurique, Suíça, e que declarou à AFP tê-la contrado em Londres, de um antiquário jordaniano. A peça procederia da margem jordaniana do Mar Morto.

O texto em hebreu, de natureza apocalíptica, apresenta a "revelação que o arcanjo Gabriel vai despertar o Príncipe dos Príncipes três dias depois de sua morte". O texto está escrito, com tinta sobre a pedra, em 87 linhas e algumas letras ou palavras inteiras foram apagadas pelo tempo.

A análise de Knohl consiste essencialmente em decodificar a linha 80 onde figuram os termos "três dias mais tarde" seguidos por uma palavra meio apagada que, segundo o professor, significa "vive".

A paleontóloga Ada Yardeni é mais prudente no que se refere à palavra "vive".

"A leitura do professor é plausível, apesar de a ortografia utilizada ser raríssima", afirma esta especialista em escrituras antigas, que publicou a primeira descrição da lápide em 2007, na revista de história e arqueologia israelense Cathedra.

Outros pesquisadores também preferem não tirar conclusões tão radicais do texto descoberto e, inclusive, alguns duvidam de sua autenticidade.

Por sua parte, o pesquisador israelense Yuval Goren, especialista em descoberta de falsificações, afirma não ter "detectado nenhum indício de falsificação no texto da tabuleta".

"No entanto, minha análise não se aplicou à tinta", enfatiza o diretor do departamento de arqueologia e culturas antigas da Universidade de Tel Aviv.

Por sua parte, uma arqueóloga que peiu para não ser identificada expressou suas dúvidas sobre a autenticidade desta peça arqueológica.

"É muito estranho que um texto tenha sido escrito com tinta em uma tabuleta de pedra que se tenha conservado até nossos dias. Para ter certeza que não se trata de uma falsificação, seria preciso saber em que circunstâncias e onde exatamente a pedra foi descoberta, o que não é o caso", acrescentou.

O professor Knohl deve apresentar nesta terça-feira sua interpretação em um encontro em Jerusalém por ocasião do 60º aniversário da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto.

"Se essa descrição messiânica está realmente lá, isso vai contribuir para desenvolver uma reavaliação da visão popular e da visão acadêmica de Jesus Cristo", comentou o jornal New York Times.

"Isso sugere que a história de Sua morte e ressurreição não era inédita, mas parte de uma reconhecida tradição judia da época".

Fonte: AFP | 07/07/2008

Estudo relaciona descrença religiosa a QI alto

Um artigo de pesquisadores europeus, que será publicado na revista acadêmica Intelligence em setembro, defende a tese de que pessoas com QI (Quociente de Inteligência) mais alto são menos propensas a ter crenças religiosas.

O texto é assinado por Richard Lynn, professor de psicologia da Universidade do Ulster, na Irlanda do Norte, em parceria com Helmuth Nyborg, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e John Harvey, sem afiliação universitária.

Lynn é autor de outras pesquisas polêmicas, entre elas uma sugerindo que os homens são mais inteligentes do que as mulheres.

A conclusão é baseada na compilação de pesquisas anteriores que mostram uma relação entre QIs altos e baixa religiosidade e em dois estudos originais.

Em um desses estudos, os autores compararam a média de QI com religiosidade entre países.

No outro estudo, eles cruzaram os resultados de jovens americanos em um teste alternativo de habilidade intelectual (fator g) com o grau de religiosidade deles.

Na pesquisa entre países, os pesquisadores analisaram média de QI com o de religiosidade em 137 países. Os dados foram coletados em levantamentos anteriores.

Os autores concluíram que em apenas 23 dos 137 países a porcentagem da população que não acredita em Deus passa dos 20% e que esses países são, na maioria, os que apresentam índices de QI altos.

Exceções

Os pesquisadores dividiram os países em dois grupos.

No primeiro grupo, foram colocados os países cujas médias de QI são mais baixos, variando de 64 a 86 pontos. Nesse grupo, uma média de apenas 1,95% da população não acredita em Deus.

No segundo grupo, onde a média de QI era de 87 a 108, uma média de 16,99% da população não acredita em Deus.

Os autores argumentam que há algumas exceções para a conclusão de que QI alto equivale a altas taxas de ateísmo.

Eles citam, por exemplo, os casos de Cuba (QI de 85 e cerca de 40% de descrentes) e Vietnã (QI de 94 e taxa de ateísmo de 81%), onde há uma porcentagem de pessoas que não acreditam em Deus maior do que a de países com QI médio semelhante.

Uma possível explicação estaria, segundo os autores, no fato de que "esses países são comunistas nos quais houve uma forte propaganda ateísta contra a crença religiosa".

Outra exceção seriam os Estados Unidos, onde a média de QI é considerada alta (98), mas apenas 10,5% dizem não acreditar em Deus, uma taxa bem mais baixa do que a registrada no noroeste e na região central da Europa – onde há altos índices médios de QI e de ateísmo.

Lynn diz que uma explicação para o quadro verificado nos Estados Unidos pode estar no fato de que "há um grande influxo de imigrantes de países católicos, como México, o que ajuda a manter índices altos de religiosidade".

Mas ele reconhece que mesmo grupos que emigraram para os Estados Unidos há muito tempo tendem a ter crenças religiosas fortes e diz que, simplesmente, não consegue explicar a realidade americana.

Generalização

Os autores argumentam que essa relação entre QI e descrença religiosa vem sendo demonstrada em várias pesquisas na Europa e nos Estados Unidos desde a primeira metade do século passado.

Eles citam, também, uma pesquisa de 1998 que mostrou que apenas 7% dos integrantes da Academia Nacional Americana de Ciências acreditavam em Deus, comparados com 90% da população em geral.

Lynn admitiu à BBC Brasil que os resultados apontam para uma "generalização" e que há pessoas com QI alto que têm crenças religiosas fortes.

Segundo ele, há vários fatores, como influência familiar ou pressão social, que influenciam a religiosidade das pessoas.

"Nós temos que diferenciar a situação hoje com outros períodos da história. As pessoas tendem a adotar uma atitude de acordo com a sociedade em que vivem. Hoje em dia, na Grã-Bretanha e em outros países europeus, não há tanta pressão da sociedade para que você acredite em Deus", afirma.

Uma das hipóteses que o estudo levanta para tentar explicar a correlação entre QI e religiosidade é a teoria de que pessoas mais inteligentes são mais propensas a questionar dogmas religiosos "irracionais".

Dúvidas

O professor de psicologia da London School of Economics, Andy Wells, porém, levanta questões sobre a tese.

"A conclusão do professor Lynn é de que um QI alto leva à falta de religiosidade, mas eu acredito que é muito difícil ter certeza disso", afirma.

De acordo com Wells, vários estudos já demonstraram que pessoas com níveis de QI altos tendem a ter níveis de educação mais altos.

"E quanto mais educação as pessoas têm, é mais provável que elas tenham acesso a teorias alternativas de criação do mundo, por exemplo", afirma Wells.

O jornal de psicologia Intelligence, publicado na Grã-Bretanha, traz pesquisas originais, estudos teóricos e críticas de estudos que "contribuam para o entendimento da inteligência". Acadêmicos de universidades de vários países fazem parte da diretoria editorial.

Fonte: BBCBrasil.com | 25 de junho 2008

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A fé dos homofóbicos

"Dizem eles que a criminalização da homofobia levará à prisão em massa de pastores e padres, e viveremos todos sob o domínio gay. A história ensina que essa lei será aprovada, e a vida seguirá seu curso regular, sem nada de extraordinário"
Por André Petry

Em 1946, quando os negros reivindicaram a inclusão de alguns direitos na Constituição, foi um salseiro. Foram acusados de antidemocráticos e racistas por congressistas e estudantes da UNE. Em 1988, a Constituição promoveu o racismo de contravenção a crime. Ninguém chiou. Na década de 50, quando se discutia o divórcio, teve cardeal dizendo que se devia pegar em armas para combater a proposta. Em 1977, o Congresso aprovou o divórcio. Não houve tiroteio, e a igreja do cardeal nunca mais tocou no assunto. Recordar é viver.

Agora, os evangélicos estão anunciando o apocalipse caso o Senado faça o que a Câmara já fez: aprovar lei punindo a homofobia com prisão. A lei em vigor pune a discriminação por raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. A nova acrescenta a punição por discriminação contra homossexuais. Cerca de 1 000 evangélicos tentaram invadir o Senado em protesto. Dizem que a criminalização da homofobia levará à prisão em massa de pastores e padres, e viveremos todos sob o domínio gay. A história ensina que, cedo ou tarde, a lei, ou outra qualquer com objetivo similar, será aprovada, e a vida seguirá seu curso regular sem nada de extraordinário.

Os evangélicos e aliados dizem que proibir a discriminação contra gays fere a liberdade de expressão e religião. Dizem que padres e pastores, na prática de sua crença, não poderão mais criticar a homossexualidade como pecado infecto e, se o fizerem, vão parar no xadrez. É uma interpretação tão grosseira da lei que é difícil crer que seja de boa-fé.

Tal como está, a lei não proíbe a crítica. Proíbe a discriminação. Não pune a opinião. Pune a manifestação do preconceito. Uma coisa é ser contra o casamento gay, por razões de qualquer natureza. Outra coisa é humilhar os gays, apontá-los como filhos do demônio, doentes ou tarados. É tão reacionário quanto uma Ku Klux Klan alegar que a proibição da segregação racial fere sua liberdade de expressão. Querem a liberdade de usar a tecnologia Holerite de cartões perfurados pela IBM?

Alegam que a liberdade religiosa fica limitada porque combater o pecado vira crime. É um duplo equívoco. O primeiro é achar que uma doutrina de crença em forças sobrenaturais autoriza o fiel a discriminar o herege. O segundo é atribuir à lei valor moral. O direito penal não é instrumento para infundir virtudes. É um meio para garantir o convívio minimamente pacífico em sociedade. Matar é crime não porque seja imoral, mas porque a sociedade entendeu que a vida deve ser preservada. Dúvidas? Recorram ao Supremo Tribunal Federal. Na democracia, é assim. Lei não é bíblia de moralidade.

O que essa proposta pretende dar aos gays, e sabe-se lá se terá alguma eficácia, é aquilo a que todo ser humano tem direito: respeito à sua integridade física e moral. Os evangélicos, pelo menos os que foram a Brasília, dão prova de desconhecer que seres humanos não diferem de coisas só porque são um fim em si mesmos. Os seres humanos diferem das coisas porque, além de tudo, têm dignidade. As coisas têm preço.

Fonte: Revista Veja | Ed.2067