terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Liberdade x Prisão bonita

Por Osho, em 'Coragem - o prazer de viver perigosamente'

Não estou aqui para dar a você algum dogma - o dogma faz com que você tenha certeza. Não estou aqui para dar a você nenhuma promessa para o futuro - nenhuma promessa para o futuro transmite segurança. Estou aqui simplesmente para deixá-lo alerta e consciente - isto é, para ficar aqui agora, com toda incerteza que existe na vida.

Sei que você veio em busca de certeza, de alguma doutrina, algum "ismo", algum lugar ao qual pertencer, alguém em quem confiar. Você está aqui por causa do medo que sente. Está procurando uma espécie de PRISÃO BONITA - de forma que possa viver sem nenhuma consciência.

Eu gostaria de fazer com que você se sentisse ainda mais inseguro, mais incerto - porque é assim que a vida é, é assim que Deus é. Quando há mais insegurança e mais perigo, o único jeito de reagir a isso é apelar para a consciência.

São duas as possibilidades. Ou você fecha os olhos e passa a ser dogmático, vira cristão, hindu ou mulçumano... e aí fica como se fosse um avestruz. Isso não muda a vida; é simplesmente fechar os olhos. Simplesmente faz de você um estúpido, alguém sem inteligência. E nessa sua falta de inteligência, você se sente seguro - todo idiota se sente seguro. Na verdade, só os idiotas se sentem seguros. O homem que está verdadeiramente vivo sempre se sentirá inseguro. Que segurança pode existir?

A vida não é um processo mecânico; não pode ser predeterminada. Ela é um mistério imprevisível. Ninguém sabe o que acontecerá em seguida. Nem Deus, que você acha que mora em algum lugar no sétimo céu; nem mesmo ele - se estiver lá -, nem ele sabe o que vai acontecer! Porque, se ele sabe o vai acontecer, então a vida é só tapeação, tudo é escrito de antemão, é determinado de antemão. Como ele pode saber o que vai acontecer se o futuro está em aberto? Se Deus sabe o que vai acontecer daqui a pouco, então a vida é só um processo mecânico, morto. Então não existe liberdade, e como pode existir vida sem liberdade? Então não há possibilidade de crescer ou não crescer. Se tudo é predestinado, não existe glória nem grandeza. Você é apenas um robô.

Não, nada é seguro. Essa é a minha mensagem. Nada pode ser seguro, porque uma vida segura seria pior do que a morte. Nada é certo. A vida é cheia de incertezas, cheia de surpresas - é aí que está a beleza dela! Você nunca chegará ao ponto em que poderá dizer, "Agora estou certo disso." Quando disser que está certo de alguma coisa, estará simplesmente declarando a própria morte; terá se suicidado.

A vida continua em marcha, com mil e uma incertezas. É aí que está a liberdade dela. Não chame a isso de insegurança.

Eu posso entender por que a mente chama a liberdade de "insegurança". Você já ficou preso numa cela por alguns meses ou anos? Se já ficou numa cela por alguns anos, você sabe que, no dia de ser solto, o prisioneiro começa a sentir uma incerteza quanto ao futuro. Tudo era garantido na cela; tudo não passava de pura rotina. Ele tinha comida, tinha proteção, não tinha  medo de ficar com fome no dia seguinte e de não haver comida - nada disso, tudo era certo. Agora, de repente, depois de muitos anos, o carcereiro vem e diz: "Agora você vai ser solto." Ele começa a tremer. Fora dos muros da prisão, mais uma vez haverá incertezas; mais uma vez ele terá que buscar, procurar; mais uma vez terá que viver em liberdade.

A liberdade dá medo. As pessoas falam sobre a liberdade, mas elas têm medo. E um homem não é homem ainda se ele tem medo da liberdade. Dou a vocês liberdade: não dou segurança. Dou a vocês entendimento; não dou conhecimento. O conhecimento lhes traz certezas. Se posso dar a você a fórmula, uma fórmula pronta, de que existe um Deus, existe um Espírito Santo e existe um único filho bem-amado, Jesus; existe um inferno e um céu e existem as boas ações e as más ações; cometa um pecado e você irá para o inferno, pratique o que eu chamo de atos virtuosos e você irá para o céu - acabou!-, então você tem certezas. É por isso que tantas pessoas optaram por ser cristãos, hindus, muçulmanos, jainistas - elas não querem liberdade, querem fórmulas fixas.

Um homem estava morrendo - de repente, num acidente de estrada. Ninguém sabia que ele era judeu, então chamaram um padre, um padre católico. Ele se curvou bem próximo ao homem- e o homem estava morrendo, nos últimos estertores da morte - e disse:

- Você acredita na Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo e em seu filho Jesus?
- Veja só! - respondeu o homem, abrindo os olhos-, eu aqui morrendo e ele fazendo charadas!

Quando a morte bater à sua porta, todas as certezas serão simplesmente charadas e tolices. Não se apegue a nenhuma certeza. A vida é incerteza - sua própria natureza é incerta. E um homem inteligente nunca tem certeza de nada.

A própria disposição para permanecer na incerteza é coragem. A própria disposição para ficar na incerteza é confiança. A pessoa inteligente é aquela que está sempre alerta, não importa a situação - e a enfrenta com todo seu coração. Não que ela saiba o que vai acontecer, não que ela saiba, "Faça isso e acontecerá aquilo." A vida não é uma ciência; não é uma cadeia de causas e efeitos. Aqueça a água a cem graus e ela evapora - isso é uma certeza. Mas na vida real, nada é certo como isso.

Cada pessoa é uma liberdade, uma liberdade desconhecida. É impossível predizer, impossível fazer conjecturas. É preciso viver na consciência e no entendimento.

Você vem até mim em busca de conhecimento; quer fórmulas prontas para que possa se agarrar a elas. Eu não dou nenhuma. Na verdade, se você tiver alguma, eu a tiro de você! Pouco a pouco, destruo sua certeza; pouco a pouco, faço com que você fique cada vez mais hesitante; pouco a pouco deixo-o cada vez mais inseguro. Essa é a única coisa que tem de ser feita. Essa é a única coisa que um Mestre precisa fazer! - deixá-lo em total liberdade. Em total liberdade, com todas as possibilidades em aberto, com nada pré-fixado... você terá que ficar consciente - não existe outra possibilidade.

Isso é o que eu chamo de entendimento. Se você entender isso, a insegurança passa a ser uma parte intrínseca da vida - e é bom que seja assim, porque faz da vida uma liberdade, faz da vida uma contínua surpresa. Nunca se sabe o que vai acontecer. Isso faz com que você viva em constante assombro. Não chame de incerteza - chame de assombro. Não chame de insegurança - chame de liberdade.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Jesus é nascido em Chanuka

Por Nilton Bonder

Jesus, para o Judaísmo, é um personagem histórico, um judeu. Nasceu como tal, viveu como tal e morreu como tal. Não um judeu comum, mas um líder espiritual e mártir envolvido com a luta de sobrevivência de seu povo em meio à invasão romana. Uma invasão que não lavava as mãos, mas representava o poder vigente do conquistador. Jesus, que falava através de sua tradição e pregava o uso radical da solidariedade, falava ao fraco, ao órfão, à viúva e ao estrangeiro _ preocupação fundadora dos Salmos judeus.

Se o descrito acima é verdade, como explicar a relação de Jesus e o Judaísmo como uma das maiores questões mal resolvidas da civilização ocidental? Como é possível que Jesus seja o "divisor de águas'' entre o que é compreendido como judeu e não-judeu entre as tradições bíblicas? Para isso teríamos que analisar não tanto a religião, mas a história e a política. Gostaria mesmo é de me aprofundar nas similaridades e não nas distinções dos mitos judaico-cristãos.

É inverno e as noites são as mais longas do ano. É frio e a lua é nova. As trevas tomam conta do Hemisfério Norte. Um antigo ritual de celebrar as luzes em meio à escuridão fala da esperança, conhecida da experiência humana, de que as longas noites darão lugar a noites mais curtas. O inverno cederá à primavera e à luz, escassa no ápice do inverno, terá sua semente plantada justamente nesse breu. A noite seguinte ao solstício de inverno, a mais longa de todas as noites, graças a D'us, será menor.

Essa celebração antiga, de tempos imemoriais da civilização agrícola, havia ganho uma dimensão histórica para a nação judaica. Pouco mais de dois séculos antes de Jesus, sob a invasão militar e cultural helênica, um levante marcaria profundamente o imaginário da nação. Sob sanções que lhes impediam de preservar sua tradição além de sua autonomia política, um grupo liderado pela família dos Hasmoneus levantou-se contra o poderoso exército grego. Numa luta de escaramuças e subversão conseguiram o impossível _ não só venceriam, restaurando uma dinastia judaica, mas reconquistariam seu símbolo de unidade nacional _ a cidade de Jerusalém e o Templo sagrado. No Templo conspurcado pela intervenção invasora não havia mais óleo para acender a chama eterna que simbolizava o funcionamento da vida espiritual do povo. Eis que um último recipiente com óleo sagrado ainda estava lacrado. Seu conteúdo não supriria mais do que poucas horas. No entanto, a luz permaneceu acesa por oito dias.

Esta é a festa de Chanuká, a festa das luzes, para a tradição judaica, que ocorre no período do Natal. Ela comemora a certeza de que quando se pensa que não há mais como manter a chama acesa, se descobre o necessário para durar para além do tempo. O número oito (oito dias) é simbólico da transcendência do tempo. Para os judeus, a unidade principal de tempo _ a semana _ desmarcava que ao final do sétimo dia se seguisse o primeiro (domingo) e não o oitavo dia. O oitavo dia é o dia após o tempo. O candelabro ardendo por oito dias é símbolo do que não se apagará jamais. Os judeus passaram então a celebrar o acendimento de velas por oito dias, acrescentando uma a cada dia durante a festa de Chanuka. Essa era a sua maneira de vencer as trevas _ lembrar do ciclo que resgata as luzes. Ao olhar as velas, os judeus passam de geração em geração uma certeza de valor espiritual profunda _ D'us te ama.

A luz é esta presença que está até na mais escura das noites. A "noite'' passou a ser simbólica do exílio. O escuro é um lugar que fica a caminho da luz. Para chegar à alvorada é necessário viver-se a madrugada. E todo aquele que sensibiliza seus olhos na escuridão começa a enxergar. As luzes que vencerão a invasão, o exílio do passado, venceriam também a invasão do presente.


Jesus é nascido em Chanuka. Seu mito é o mito das luzes em meio à escuridão. É a luz que acolhe o fraco em meio à escuridão do poder e da opressão. Na dimensão individual representa a restauração do templo, da vida, em nossas almas. Quantas vezes estamos descaídos sem energia vital, sem direção e descobrimos em nós o "óleo lacrado'' para dar continuidade à luz? A surpresa dessa descoberta é a famosa "conversão'' de que muitas tradições cristãs falam e o judaísmo através da "teshuvá'' _ o retorno ao caminho.

Não é por acaso que os judeus acendem luzes em seu candelabro de oito braços. O candelabro é representativo da "árvore da vida'', com seus troncos abertos aos céus. Luzes em árvores. Árvores que estão nuas no inverno mas nas quais percebemos em meio a seu cinza a luz vibrante da vida. Reinaugurar a vida e manter a chama acesa são as mensagens de Chanuka e do Natal, do nascimento daquele que é luz para a tradição cristã. E por que os judeus não celebram a luz de Jesus? Porque a linguagem e o imaginário judaico não passam pela forma humana. Abraão, Moisés e David são sempre apresentados em seu aspecto humano. Essa foi uma fusão com a linguagem romana que aconteceria mais de dois séculos depois do tempo de Jesus. Para os judeus a "luz'' é filha de D'us e é assim que ele está em todos nós. A "luz'' vem do estudo, da inspiração e da ação junto aos outros.

Jesus guarda um grande segredo para judeus e cristãos. Para os judeus ele não é nada mais do que eles mesmos. Se presente entre nós, poderia assumir o culto de uma sinagoga e liderar na leitura da Torá. Para os cristãos, ele que é "filho de D'us'', o mais próximo de todos, é o "outro'' _ um judeu.

Um dia, tal como Jacób e Esaú fizeram, ao reencontrarem-se judeus e cristãos vão dizer a mesma coisa: Eis que olhar a tua face é como olhar a face de D'us. Ou talvez: Tu que eras o outro, nada mais és do que eu. Neste reencontro está o sonho de um mundo melhor. Onde a luz é transcender a escuridão da diferença. No entanto, não é nunca livrar-se dela. Pois a luz que dá esperança vem do meio do breu. Não é luz apenas, mas a luz que nos faz ver luz.

Deus repousava na manjedoura

Por Ricardo Gondim

Há algum tempo, intrigado, comecei a questionar porque Jesus Cristo escandalizou fariseus, saduceus e doutores da lei. Nenhuma novidade me ocorreu: há séculos os judeus aguardavam o Messias. Eles viviam na expectativa política de que um Ungido se levantaria em nome de Deus. Nos setores mais politizados, o Messias viria como o grande libertador – uma encarnação melhorada e glorificada de Moisés; um Dom Sebastião dos tempos antigos. Para segmentos religiosos ortodoxos, o Messias chegaria para renovar os princípios da Torá. O cumprimento da Lei representaria uma renovação espiritual que resgataria o povo para um novo tempo.

Mas além dessa grande espera, Paulo também diz que Jesus foi loucura para os gregos. O Nazareno se revelou um retumbante fracasso porque nunca deixou colar nele as expectativas judaicas e depois, nem as gregas, sobre as ações da divindade. Via-se claramente que em Jesus Deus não se parecia com o Movedor Imóvel de Aristóteles. Ele colocava teologia e filosofia de ponta cabeça.

Se o Deus dos fariseus zelava pelo cumprimento estrito da lei, Jesus a tornava flexível pela misericórdia. Quando perdoou a mulher apanhada no próprio ato do adultério, deixou claro que o poder do amor dobra a rigidez da lei: “Onde estão os teus acusadores. Eu não te condeno, vá em paz e não peques mais”. Nos casos da siro-fenícia, do centurião romano, da “impura” devido a uma menstruação crônica, do endemoninhado gadareno, do cego da calçada, fica claro que qualquer um pode aproximar-se de Deus sem exigências ou protocolos religiosos. Quando Jesus estava por perto, esvaziava-se a ideia de “não-eleito”.

Jesus não comparou Deus a um fiscal punitivo, mas a um pai machucado. No alpendre, enquanto espera a volta do filho perdido, os olhos úmidos do pai eram os olhos de Deus. Sim, mesmo desolado, o velho corre ao encontro do filho sujo, mal cheiroso e o cobre de beijos.

Ricardo Peter intuiu corretamente o porquê do ódio dos fariseus contra Jesus:
Os fariseus começaram a perceber que Jesus estava mudando radicalmente a maneira de entender quem é Deus. Este Deus teria podido provocar confusão e dispersão entre as pessoas religiosas. O comportamento do Deus anunciado por Jesus, do Deus que demonstra um amor incondicionado pelos pecadores, começava a colocar o Deus dos fariseus na sombra. Tinha início uma luta de ‘Deus contra Deus.
A religião judaica antecipara um Deus mais forte que os antigos baalins, que causaram tanto problema. Jesus andou na contramão, ele tomou sobre si a fragilidade dos serviçais. Os conteúdos de sua causa não lidavam com poder, mas com serviço. Os tempos exigiam um líder que convocasse exércitos com a força letal superior às legiões romanas. Mas o Galileu preferia colocar uma criança no colo e dizer: “Dos tais é o Reino de Deus”.

A ambição era posicionar Israel como nação líder. O messias, certamente, vingaria séculos de opressão impostos por egípcios, persas, gregos e romanos. Mas eis que ele abriu o rolo da lei numa sinagoga e leu: “O Espírito do Senhor está sobre mim e ele me ungiu para pregar boas notícias aos pobres”. Se um homem assim, radicalmente humano, comprometido com a escória do mundo, se dizia a expressa imagem de Deus, tal homem precisava ser assassinado. Um Deus fraco não servia aos interesses da religião – como ainda não serve.

Além desta enorme decepção entre os semitas, os gregos também se horrorizaram. Se Deus encarnou assim, como sustentar as ideias de Aristóteles? Jesus não se assemelhava em nada com o conceito de Deus como “Ato Puro” ou como “Motor Imóvel”. O Rabi de Cafarnaum se movia de “viscerais afetos” por uma viúva a caminho de enterrar o filho, chorava diante da sepultura do amigo (a dor de homens e de mulheres dói em Deus; Isaías é enfático- 63.9 -: “Em toda a angústia deles, foi ele angustiado”.), irritava-se quando a religião oprimia e se deixava molhar pelas lágrimas de uma prostituta. Deus não se mostrara apático.

Volto a Ricardo Peter com sua intuição sobre a revelação de Deus que Jesus brindou o mundo:
O Deus de Jesus assume o humano a tal ponto que liberta o homem da exigência de ser como Deus. Deus contém em si, agora o máximo de humanidade. Deus encontra-se imerso no humano. O ‘Reino’ de Jesus não requer seres excepcionais, melhores que o ‘resto dos homens’, que se preocupam em ser por eles contaminados.
Mas, o que verdadeiramente escandalizou no Deus que Jesus revelava foi sua tremenda inconsistência. Como assim, Deus inconstante? Misericórdia é sempre uma tremenda inconstância. A inconsistência de Deus em reverter sentenças, em anular destinos, em refazer histórias, em anular tragédias, foi a marca mais exuberante da vida de Cristo. Até o fato de seu ensino ser vazio de dogmatismos, desestabilizava qualquer teologia. E talvez tenha sido este o pingo que entornou a taça da ira dos fariseus: o Deus inabalável, rigoroso e severo do Antigo Testamento estava ausente nas palavras, gestos e atitudes do filho de Maria.

Ainda hoje, os que distinguem entre o Deus dos fariseus e o Deus de Jesus acharão boas razões para decretar sua morte. O reino que ele inaugurou entre os homens não encontra paralelo com os reinos deste mundo. Seus ensinos não são codificáveis.

Portanto, o Deus que nasceu em uma manjedoura continuará despercebido dos poderosos. Ele só será notado nas realidades singelas e pequenas: grãos de mostarda, meninos e meninas, ovelhas indefesas, desempregados em calçadas, servos inúteis, indignos, filhos pródigos, prostitutas, leprosos, cegos, mendigos, estrangeiros, soldados e exorcistas informais.

Deus poderia escolher muitas maneiras para mostrar-se real, mas preferiu nascer em uma periferia esquecida; optou viver de um jeito que pode ser, poeticamente, comparado ao de um cordeiro.

Depois de séculos, ainda vale a pena celebrar um natal desses.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Dez conselhos para viver a religião

Por Frei Betto

1. Religue-se. Evite o solipsismo, o individualismo, a solidão nefasta. Religue-se ao mais profundo de si mesmo, lá onde se cultivam os bens infinitos; à natureza, da qual somos todos expressão e consciência; ao próximo, de quem inevitavelmente dependemos; a Deus, que nos ama incondicionalmente. Isto é religião, re-ligar.

2. Tenha presente que as religiões surgiram na história da humanidade há cerca de oito mil anos. A espiritualidade, porém, é tão antiga quanto a própria humanidade. Ela é o fundamento de toda religião, assim como o amor em relação à família. Busque na sua religião aprimorar a sua espiritualidade. Desconfie de religião que não cultiva a espiritualidade e prioriza dogmas, preceitos, mandamentos, hierarquias e leis.

3. Verifique se a sua religião está centrada no dom maior de Deus: a vida. Religião centrada na autoridade, na doutrina, na ideia de pecado, na predestinação, é ópio do povo. "Vim para que todos tenham vida e vida em abundância", disse Jesus (João 10,10). Portanto, a religião não pode manter-se indiferente a tudo que impede ou ameaça a vida: opressão, exclusão, submissão, discriminação, desqualificação de quem não abraça o mesmo credo.

4. Engaje-se numa comunidade religiosa comprometida com o aprimoramento da espiritualidade. Religião é comunhão. E imprima à sua comunidade caráter social: combate à miséria; solidariedade aos pobres e injustiçados; defesa intransigente da vida; denúncia das estruturas de morte; anúncio de um "outro mundo possível", mais justo e livre, onde todos possam viver com dignidade e felicidade.

5. Interiorize sua experiência religiosa. Transforme o seu crer no seu fazer. Reduza a contradição entre a sua oração e a sua ação. Faça pelos outros o que gostaria que fizessem por você. Ame assim como Deus nos ama: incondicionalmente.

6. Ore. Religião sem oração é cardápio sem alimento. Reserve um momento de seu dia para encontrar-se com Deus no mais íntimo de si mesmo. Medite. Deixe o Espírito divino lapidar o seu espírito, desatar os seus nós interiores, dilatar sua capacidade amorosa.

7. Seja tolerante com as outras religiões, assim como gostaria que fossem com a sua. Livre-se de qualquer tendência fundamentalista de quem se julga dono da verdade e melhor intérprete da vontade de Deus. Procure dialogar com aqueles que manifestam crenças diferentes da sua. Quem ama não é intolerante.

8. Lembre-se: Deus não tem religião. Nós é que, ao institucionalizar diferentes experiências espirituais, criamos as religiões. Todas elas estão inseridas neste mundo em que vivemos e mantêm com ele uma intrínseca inter-relação. Toda religião desempenha, na sociedade em que se insere, um papel político, seja legitimando injustiças, ao se manter indiferente a elas, seja ao denunciá-las profeticamente em nome do princípio de que somos todos filhos e filhas de Deus. Portanto, temos o direito de fazer da humanidade uma família.

9. A árvore se conhece pelos frutos. Avalie se a sua religião é amorosa ou excludente, semeadoras de bênçãos ou arauto do inferno, serva do projeto de Deus na história humana ou do poder do dinheiro.

10. Deus é amor. Religião que não conduz ao amor não é coisa de Deus. Mais importante que ter fé, abraçar uma religião, frequentar templos, é amar. "Ainda que eu tivesse fé capaz de transportar montanhas, se não tivesse o amor isso de nada me serviria", disse o apóstolo Paulo (1 Coríntios 13, 2). Mais vale um ateu que ama que um crente que odeia, discrimina e oprime. O amor é a raiz e o fruto de toda verdadeira religião; e a experiência de Deus, de toda autêntica fé.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Asherah, a Deusa Proibida

Por Ana Luisa Alves Cordeiro, em 22/10/2007

Para a maioria das pessoas que lêem a Bíblia, a idéia de um único Deus de Israel, Yahweh, parece ser clara. No entanto, descobertas arqueológicas das últimas décadas vem demonstrando que Yahweh nem sempre esteve solitário. Antes da ascensão do monoteísmo em Israel, o Deus Yahweh fazia parte de um contexto politeísta onde havia um panteão de Deuses e Deusas, sendo que provavelmente foi adorado ao lado de sua consorte, Asherah.

Reconstruir a presença da Deusa Asherah na vida de mulheres e homens no Antigo Israel é um esforço de, a partir de uma perspectiva feminista e de gênero, trazer elementos que nos ajudem numa maior aproximação do que foram os espaços religiosos e vitais deste povo. Esta reconstrução é algo necessário, uma vez que estamos diante de textos sagrados marcados pelo sistema patriarcal que projetou historicamente um Deus masculino, legitimando práticas e funções masculinas, com isso silenciando as mulheres, suas representações sagradas, tudo aquilo que pudesse lhes garantir espaço e voz. Por isso, faz-se necessário a nossa reflexão

“voltar a um ponto anterior ao monoteísmo patriarcal, até religiões nas quais uma Deusa era a imagem divina dominante ou então era emparelhada com a imagem masculina de uma forma que tornava a ambas modos equivalentes de aprender o divino" (Ruether, 1993, p. 46).

Carol Christ (2005, p.17) ressalta que “re-imaginar o poder divino como Deusa tem importantes conseqüências psicológicas e políticas”, como caminho de desconstrução do pensamento que naturaliza a dominação masculina. Segundo Schroer (1995, p. 40), o culto à Deusa era exercido tanto por homens como por mulheres, mas veio sobretudo ao encontro das necessidades das mulheres, pois lhes oferecia mais espaço no âmbito religioso.

Através de uma “hermenêutica feminista de suspeita”, método proposto por Elisabeth Schüssler Fiorenza (1992, p. 89), queremos “re-imaginar” Asherah a partir de uma crítica ao patriarcado presente nos textos bíblicos, reconstruindo a memória da Deusa a partir dos dados arqueológicos e identificando na literatura bíblica a relação conflituosa que se estabelece com ela.

As origens do monoteísmo no Antigo Israel

Há uma grande problemática em torno do início do monoteísmo. Frank Crüsemann (2001, p. 780) aponta a época do profeta Elias (cf. 1Rs 18,19-40) como o momento histórico em que se começa a falar da exclusividade do Deus de Israel, principalmente no embate com o Deus Baal e no processo de sincretismo onde Yahweh incorpora as características de Baal. Os escritos bíblicos do Primeiro Testamento teriam em si a tendência de mostrar, do início ao fim, a realidade do monoteísmo, “a proibição de se adorar outras divindades já é pressuposta em Gênesis e formulada claramente no Sinai (Ex 20,2)” (Crüsemann, 2001, p. 781).

Haroldo Reimer (2006, p.115) aponta, sobretudo o século V a.E.C como o momento histórico marcante, em que Yahweh vai se constituindo como Deus único de Israel, desencadeando um “processo de diabolização de outras divindades”.

Num primeiro momento, a divindade Yahweh teria sido um elemento religioso que veio de fora do contexto cananeu. Nesta época, possivelmente era o Deus El que ocupava a cabeça do panteão divino. Yahweh passa a integrar o contexto israelita sem contudo negar a existência e diversidade de outras divindades.

No entanto, os conflitos religiosos começam a acontecer, sobretudo no Reino do Norte, no período que vai dos séculos IX a VIII a.E.C, com o Deus Baal, ocorrendo a transferência dos atributos da fertilidade de Baal para Yahweh, o que Crüsemann também aponta. Já no Reino do Sul, do final do século VIII até o final do século VII a.E.C, “a fé monoteísta javista é afirmada em um contexto nacionalista, na medida em que se pode retrojetar a idéia de nação para aqueles tempos. A diversidade religiosa passa a ser objeto de ações perseguidoras oficiais” (Reimer, 2006, p. 117).

A afirmação da exclusividade de Yahweh acarreta um processo de “diabolização” da própria Deusa Asherah, onde textos bíblicos serão instrumentos de justificação deste processo monoteísta. Frente a essa exclusividade de Yahweh, será impossível a sobrevivência de qualquer outra divindade, além de que a ênfase em Yahweh será critério de afirmação do sacerdócio masculino perpetuando uma sociedade patriarcal (Reimer, 2006, p. 117).

Neste contexto, a existência de outras divindades masculinas e femininas foi sempre uma ameaça ao monoteísmo estabelecido, sendo que as reformas religiosas em Judá, de Josafá (870-848 a.E.C), de Ezequias (716-687 a.E.C), de Josias (640-609 a.E.C) e as legislações do Código da Aliança (Ex 20,22-23,19) e do Código Deuteronômico (Dt 12-26) agiram como instrumentos que visavam assegurar a fé monoteísta (Reimer, 2003, p. 968).

A presença da Deusa em Israel (do Bronze ao Ferro)

Conforme a pesquisadora Monika Ottermann (2004), que traça o panorama da presença da Deusa em Israel, da Idade do Bronze à Idade do Ferro, no Oriente Médio, datando a Idade do Bronze Médio (1800-1500 a.E.C), a representação da Deusa é caracterizada como “Deusa-Nua”, destacando o triângulo púbico, emergindo também representações em forma de ramos ou pequenas árvores estilizadas, combinação que vem a ser denominada “Deusa-Árvore”.

Na Idade do Bronze Tardio (1550-1250/1150 a.E.C), a Deusa-Árvore apresenta duas mudanças, aparecendo em forma de uma árvore sagrada flanqueada por cabritos ou como um triângulo púbico, que substitui a árvore. Neste período, já se nota a tendência de substituição do corpo da Deusa pelos seus atributos, em especial a árvore.

A Deusa continua perdendo representatividade na religião oficial, onde divindades masculinas ganham cada vez mais força, principalmente a partir de características dominadoras e guerreiras. Na Idade do Ferro I (1250/1150-1000), a forma corporal da Deusa-Árvore vai desaparecendo enquanto que formas de animais que amamentam filhotes, às vezes com a presença de uma árvore estilizada, ganham cada vez mais espaços na glíptica, significando a prosperidade e a fertilidade. A presença da Deusa fica relegada aos espaços de religiosidade das mulheres.

Na Idade do Ferro IIA (1000-900 a.E.C), início da formação do javismo as Deusas passam a ser simbolizadas por seus atributos. A forma vegetal da Deusa confunde-se com seu símbolo, a árvore estilizada, sendo que muitas vezes é substituída por ele. Entendemos essas imagens como representações da Deusa Asherah.

Na Idade do Ferro IIB (925-720/700 a.E.C), Israel e Judá apresentam diferenças no âmbito simbólico. Os documentos epigráficos de Kuntillet Adjrud e de Khirbet el-Qom destacam um vínculo estreito entre Asherah e Yahweh, o que acima de tudo demonstra um contexto politeísta, onde se adoravam a várias divindades femininas e masculinas.

Na Idade do Ferro IIC (720/700-600 a.E.C), a Babilônia derruba a Assíria e passa a dominar Israel e Judá. Neste período encontramos o símbolo tradicional da Deusa, a árvore e o ramo. Vários selos ou impressões de selos que associam símbolos astrais com árvores estilizadas foram encontrados na Palestina e na Transjordânia, o que reforça interpretações sobre a existência de um culto a Deusa Asherah ao lado do Deus Yahweh. É principalmente na forma de árvore estilizada que, ao longo de séculos, Asherah esteve presente em Israel.

Evidências arqueológicas da Deusa Asherah

As primeiras evidências de Asherah aparecem em textos cuneiformes babilônicos (1830-1531 a.E.C) e nas cartas de El Armana (século XIV a.E.C) (Neuenfeldt, 1999, p. 5).

Para o pesquisador Ruth Hestrin (1991, p. 52-53), informações importantes sobre Asherah vêm dos textos ugaríticos de Ras Shamra (Costa Mediterrânea da Síria). Nestes textos, Asherah é chamada de Atirat, consorte de El, principal Deus do panteão cananeu no II milênio a.E.C, sendo mencionada também como ‘Elat, forma feminina de El. Nos textos ugaríticos, Asherah (ou seja, Atirat ou ‘Elat) é a mãe dos Deuses, simbolizando a Deusa do amor, do sexo e da fertilidade.

Também foram escavados vários pingentes ugaríticos que retratam uma Deusa, provavelmente Atirat/ ‘Elat. A figura humana estilizada nestes pingentes contém o rosto, os seios e a região púbica e uma pequena árvore estilizada gravada acima do triângulo púbico.

Em 1934, o arqueólogo britânico James L. Starkey encontrou o jarro de Lachish, datado aproximadamente no 13º século a.E.C, provavelmente ano 1220.

O jarro é decorado e contém inscrições raras do antigo alfabeto semítico. Na decoração há o desenho de uma árvore flanqueada por duas cabras com longos chifres para trás, que, segundo Ruth Hestrin, representa Asherah. Uma inscrição que segue pela borda do jarro tem sido reconstruída e traduzida por Frank M. Cross, como: “Mattan. Um oferecimento para minha senhora 'Elat”.

Não se sabe quem é Mattan, mas está claro que ele faz uma oferenda para 'Elat, que é o feminino para El, chefe do panteão cananeu no II milênio a.E.C, equivalente ao pré-bíblico Asherah. Nota-se um dado importante, o nome 'Elat está escrito logo acima da árvore, representação de 'Elat/ Asherah. Há uma possibilidade deste jarro e seu conteúdo terem sido uma oferenda à Deusa (Hestrin, 1991, p. 54).

No entanto, foi no templo de Arad, no Neguev, ao sul de Jerusalém, que se encontrou fortes evidências de Asherah. No santuário interno foram encontrados dois altares diante de um par de pedras verticais, possivelmente lugar de culto a Yahweh e Asherah. Um outro altar foi encontrado no pátio externo do templo com tigelas dos sacerdotes e cinzas de ossos de animais queimados, no canto uma irmandade local e altares com pedras duplas (Discovery, 1993). Segundo Elaine Neuenfeldt (1999, p. 6), o templo é datado aproximadamente da época do Bronze Recente, entre o 10º e 8º séculos a.E.C., quando possivelmente a reforma de Ezequias o extinguiu (2Rs 18).

Em Khirbet el-Qom, ao oeste de Hebron, em 1967, outro arqueólogo encontrou um túmulo judaico da segunda metade do século VIII (Discovery, 1993), com uma inscrição na parede interior que Croatto (2001, p. 36) traduz como:


“1. Urijahu [...] sua inscrição.
2. Abençoado seja Urijahu por Javé (lyhwh)
3. sua luz por Asherah, a que mantém sua mão sobre ele
4. por sua rpy, que...”


Segundo Hestrin, em 1975-1976, o arqueólogo israelita Ze’ev Meshel, em Kuntillet Adjrud, 50km ao sul de Qadesh-Barnea, na antiga estrada de Gaza a Elat, escavou uma pousada no deserto que continha várias inscrições. Controlado por Israel, este posto estatal encontrava-se em território de Judá, funcionando aproximadamente entre 800-775 a.E.C. No prédio principal, em sua entrada, duas jarras de armazenagem com desenhos e inscrições foram encontradas e identificadas como pithos A e pithos B. Na inscrição do pithos A se lê:


“Diz... Diga a Jehallel... Josafa e...”:
Abençoo-vos em YHWH de Samaria e sua Asherah”.


No pithos B se lê:


“Diz Amarjahu: Diga ao meu Senhor: Estás bem?”.
Abençoo-te em YHWH de Teman e sua Asherah.
Ele te abençoa e te guarde e com meu senhor ”.


Neste pithos aparecem três figuras, duas masculinas retratos do Deus egípcio Bes e uma claramente feminina (seios em destaque) tocando uma lira.

Em 1968, o arqueólogo americano Paul Lapp escavou um outro artefato muito famoso em Taanach, datando ao final do 10º século a.E.C (Hestrin, 1991, p. 57). Num dos quartos da instalação cúltica foram encontrados prensa de óleo, forma para fazer figuras de Asherah, sessenta pesos de tear e 140 ossos de articulações de ovelhas e cabras (Neuenfeldt, 1999, p. 7).

Um quadrado oco de terracota, aberto na base, composto de quatro níveis ou róis também foi encontrado. Conforme Ruth Hestrin (1991, p. 57-58), no rol inferior, uma mulher nua flanqueada por dois leões é mais uma representação de Asherah, Deusa-mãe. No segundo rol temos uma abertura vazia no meio (provavelmente a entrada do templo) flanqueada por duas esfinges (corpo de leão, asas de pássaros e cabeça de mulher). O terceiro rol traz uma árvore sagrada da qual saem três pares de galhos, simbolizando a Deusa principal, Asherah, consorte de Baal e fonte da fertilidade, sendo flanqueada possivelmente por duas leoas. No rol superior temos um touro sem chifres, com um disco de sol em cima, o que simboliza o Deus supremo não só na Mesopotâmia e no panteão hitita, como também no panteão cananeu. O jovem touro representa Baal, principal Deus do panteão cananeu, que no II milênio substituiu El, cabeça do panteão.

Em 1960, a arqueóloga inglesa Kathyn Kenyon descobriu centenas de estatuetas femininas quebradas em uma caverna perto do templo de Salomão em Jerusalém, para vários estudiosos essa descoberta sinalizou a existência do templo, para outros determinou o fim dos cultos pagãos pelo rei Josias, o qual ordenou a destruição de todos os vasos feitos para Baal e Asherah (Discovery, 1993).

Portanto, Asherah quase sempre foi adorada sob o corpo de uma árvore, seu culto era principalmente realizado ao redor de uma árvore natural ou estilizada, de um poste sagrado que podia estar ao lado de um altar seu ou de outra divindade.

“Porém, seu culto foi realizado, de preferência, debaixo de uma árvore natural, nos chamados 'lugares altos', santuários ao ar vivo no topo das colinas e montanhas. Na maioria do tempo, uma imagem ou símbolo de Asherah estava também presente dentro do próprio templo de Jerusalém" (Ottermann, 2005, p. 49).

Deusa Asherah: uma imagem a partir dos escritos bíblicos

Conforme Ruth Hestrin (1991, p. 50), Asherah é mencionada cerca de 40 vezes na Bíblia Hebraica, de três formas diferentes, ora como uma imagem que representa a própria Deusa, ora como uma árvore ou como um tronco de árvore, que a simbolizam.

O culto a Asherah foi muito popular em Israel e Judá. O rei Asa (912-871 a.E.C), que ficou no poder durante 41 anos em Judá, empreendeu uma restauração no culto a Yahweh e “chegou a retirar de sua mãe a dignidade de Grande Dama, porque ela fizera um ídolo para Aserá; Asa quebrou o ídolo e queimou-o no vale do Cedron” (1Rs 15,13; cf. 2Cr 15,16). O ídolo remete na palavra hebraica mifleset, a algum objeto de culto, provavelmente de madeira. É interessante perceber que o culto se dá no palácio, em ambiente oficial (Croatto, 2001, p. 40-41). Já na passagem de 1Rs 16,33 “Acab erigiu também um poste sagrado...” demonstrando que Asherah também foi adorada em Israel.

Em 2Cr 14,1-2, onde o rei Asa é lembrado como o rei que fez o que é “bom e justo aos olhos de Yahweh, seu Deus”, exatamente porque “eliminou os altares do estrangeiro e os lugares altos, despedaçou as estelas, destruiu as aserás...” ordenando o povo a praticar a lei e os mandamentos de Yahweh (cf. Jz 3,7).

Refletindo sobre os textos bíblicos que mencionam a Deusa Asherah teremos como pano de fundo o contexto que Silvia Schroer tão bem elucida,

“os/as repatriados/as da Babilônia tinham integrado a questão da culpa de tal maneira que consideravam sobretudo o culto às deusas como motivo da ruína de Israel. Os expoentes deste grupo conseguiram banir de Judá quase completamente o culto às deusas dentro de um século e de apagar, o máximo possível, as memórias dele. Não é por acaso que o culto clandestino à deusa acontece no contexto de proibições misóginas e xenófobas de casamentos mistos. Todas as tentativas que seguem, de integrar a deusa pelo menos na linguagem teológica, são tentativas assentadas dentro do sistema monoteísta” (Schroer, 1995, p. 40).

A partir desta perspectiva, de demonização da Deusa ou das Deusas, Asherah passa a se tornar a Deusa proibida, a causa dos males e da ruína de Israel.

A marginalização do feminino, das mulheres é um processo que também se dá e se sustenta por meio de escritos bíblicos justificadores de uma sociedade patriarcal, atuando assim no que podemos chamar de “desempoderamento” das mulheres a partir do sagrado, o que trouxe e traz fortes impactos nas dimensões culturais, religiosas, sociais, econômicas e políticas.

Há uma preocupação dos redatores bíblicos de excluir qualquer suspeita da Deusa Asherah ao lado de Yahweh, como sua consorte. No entanto, as inúmeras citações sobre Asherah demonstram seu peso no contexto religioso e isso fez dela uma grande ameaça ao monoteísmo javista em ascensão.

O rei Josafá (871-848 a.E.C), filho e sucessor do rei Asa, deu continuidade à política de seu pai, “Yahweh manteve o reino em suas mãos” (2Cr 17,5), pois “seu coração caminhou nas sendas de Yahweh e ele suprimiu de novo em Judá os lugares altos e as aserás” (2Cr 17,6). Em outra passagem, Josafá após combater contra Aram, apesar de ferido, volta com vida para Jerusalém sendo aclamado por Jeú, o vidente,

“deve-se levar auxílio ao ímpio? Amarias aqueles que odeiam Yahweh, para assim atrair sobre ti sua cólera? Todavia, foi encontrado em ti algo de bom, pois eliminaste da terra as aserás e aplicaste teu coração à procura de Deus” (2Cr 19,3).

Ezequias (727-698 a.E.C), filho e sucessor de Acaz, é lembrado como o rei que “fez o que é agradável aos olhos de Yahweh”. Durante o seu reinado, após a celebração da Páscoa e da festa dos Ázimos é empreendida uma reforma do culto,

“terminadas todas essas festas, todo o Israel que lá se achava saiu pelas cidades de Judá quebrando as estelas, despedaçando as aserás, demolindo os lugares altos e os altares, para eliminá-los por completo de todo o Judá, Benjamim, Efraim e Manassés. A seguir, todos os israelitas voltaram para suas cidades, cada um para seu patrimônio” (2Cr 31,1).

Nesta época o Reino do Norte, Israel, já havia sido destruído, sendo assim, Judá, Reino do Sul, tornou-se o único espaço onde a identidade religiosa do povo de Yahweh poderia ser mantida. Foi nesse contexto que Ezequias promoveu uma extensa reforma religiosa e política, com intenções de reunir o povo em torno de um só Deus e um só rei. Por isso, Ezequias é exaltado pelos redatores deuteronomistas como o rei que “fez o que agrada aos olhos de Yahweh” (2Rs 18,3). A reforma religiosa de Ezequias era baseada nas seguintes medidas: no combate a idolatria, na centralização do culto a Yahweh em Jerusalém e no cumprimento dos mandamentos. Tais medidas podem ter sido fundamentadas no documento trazido do Norte (Dt 12-26), que foi adaptado à reforma em Judá. Josias retoma 100 anos mais tarde este documento para empreender sua reforma religiosa e política (Gass, 2005, p. 78-83).

O rei Manassés (698-643 a.E.C), filho e sucessor de Ezequias, é lembrado pelos redatores como um rei que “fez mal aos olhos de Yahweh”, justamente porque reconstruiu os lugares altos que seu pai havia destruído, ergueu altares para os baais e fabricou postes sagrados, prestando-lhes culto. No entanto, foi construir altares dentro do Templo de Yahweh (2Rs 21,7) a maior abominação para os redatores, que ao final dos escritos sobre Manassés relatam sua conversão a Yahweh. “Sua oração e como foi ouvido, todos os seus pecados e sua impiedade, os sítios onde havia construído os lugares altos e erguido aserás e ídolos antes de se ter humilhado, tudo está consignado na história de Hozai” (2Cr 33,19).

O rei Josias (640-609 a.E.C) empreendeu uma reforma a partir de 622 a.E.C fazendo de Jerusalém o centro político e religioso de seu estado, destruindo os santuários de Yahweh que havia no interior e acabando com os cultos cananeus e assírios, que aconteciam no templo de Jerusalém e nos lugares altos. A reforma de Josias atingiu a liberdade religiosa popular, pois ordenou

“a Helcias, o sumo sacerdote, aos sacerdotes que ocupavam o segundo lugar e aos guardas das portas que retirassem do santuário de Yahweh todos os objetos de culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá e para todo o exército do céu, queimou-os fora de Jerusalém, nos campos do Cedron e levou suas cinzas para Betel” (2Rs 23,4).

com isso, o culto exclusivo a Yahweh é reafirmado pela corte e pela classe sacerdotal de Jerusalém, exclusividade que custou caro à religiosidade popular (Gass, 2005, p. 134-138).

Josias ainda “demoliu as casas dos prostitutos sagrados, que estavam no templo de Yahweh, onde as mulheres teciam véus para Aserá” (2Rs 23,7). Aqui provavelmente se trata de vestidos feitos para a estátua de Asherah (Croatto, 2001, p. 41).

As intenções daqueles que redigiram tais textos parecem claras, ou seja, querem demonstrar que o “bom e justo” rei e povo é aquele que elimina qualquer resquício da presença de outros Deuses e Deusas em Israel, que o rei ou povo que “faz mal aos olhos de Yahweh” seria justamente aquele que aceita a realidade politeísta.

Na citação a seguir além de derrubar, despedaçar e reduzir a pó os altares, Josias manda espalhar este pó sobre o túmulo dos que ofereciam sacrifício a Baal e Asherah, ou seja, está explicíto que pessoas foram assassinadas. Aqui o nome Asherah aparece no plural,

“no oitavo ano de seu reinado, quando ainda não era mais que um adolescente, começou a buscar ao Deus de Davi, seu antepassado. No décimo segundo ano de seu reinado, começou a purificar Judá e Jerusalém dos lugares altos, das aserás, dos ídolos de madeira ou de metal fundido. Derrubaram diante dele os altares dos baais, ele próprio demoliu os altares de incensos que estavam sobre eles, despedaçou as aserás, os ídolos de madeira ou de metal fundido, e tendo-os reduzido a pó, espalhou o pó sobre os túmulos dos que lhes ofereceram sacrifícios (...) Nas cidades de Manassés, de Efraim, de Simeão e também de Neftali e nos territórios devastados que os rodeavam, ele demoliu os altares, as aserás, quebrou e pulverizou os ídolos, derrubou os altares de incenso em toda a terra de Israel e depois voltou para Jerusalém” (2Cr 34,3-4.6-7).

Em Is 27,9 a Deusa Asherah é taxada de forma explícita como o pecado de Israel, a causa de sua iniqüidade e ruína, devendo ser banida por completo,

“porque, com isto, será expiada a iniqüidade de Jacó. Este será o fruto que ele há de recolher da renúncia ao seu pecado, quando reduzir todas as pedras do altar a pedaços, como pedras de calcário, quando as Aserás e os altares de incenso já não permanecerem de pé”.

Está claro que a ascensão do culto exclusivo a Yahweh não se faz de forma tranqüila, mas de forma violenta, a partir da intolerância religiosa, da destruição e da eliminação por completo do outro, que se torna uma ameaça.

A proibição “não plantarás um poste sagrado ou qualquer árvore ao lado de um altar de Yahweh teu Deus que hajas feito para ti, nem levantarás uma estela, porque Yahweh teu Deus a odeia” (Dt 16-21-22), conforme Croatto (2001, p.42), revela que o objeto que simboliza Asherah é feito de madeira, que está plantado, ou seja, é um poste ou uma estaca e não uma estátua, que sua colocação “ao lado de um altar de Yahweh” transparece o caráter cultual do símbolo e principalmente a associação da Deusa simbolizada junto com o próprio Yahweh.

Acab (874-853 a.E.C) construiu um templo de Baal para sua esposa fenícia, “erigiu também um poste sagrado e cometeu ainda outros pecados, irritando Yahweh, Deus de Israel, mais que todos os reis de Israel que o precederam” (1Rs 16,33).

Os redatores deuteronomistas se queixam que na época do rei Joacaz (813-797 a.E.C) o culto a Asherah esteve presente “todavia, não se apartaram do pecado ao qual a casa de Jeroboão havia arrastado Israel; obstinaram-se nele e até mesmo o poste sagrado permaneceu de pé em Samaria” (2Rs 13,6). A ruína da Samaria é então explicada em 2Rs 17,16 porque “rejeitaram os mandamentos de Yahweh seu Deus, fabricaram para si estátuas de metal fundido, os dois bezerros de ouro, fizeram um poste sagrado, adoraram todo o exército do céu e prestaram culto a Baal”.

Os redatores bíblicos tinham uma intenção nítida, contar a história a partir de Yahweh, único Deus, de tal forma que Asherah de consorte passe a ser sua rival, ou seja, a elite de escritores bíblicos tinham uma idéia clara daquilo que Deus deveria ser: único e masculino, Yahweh, negando assim toda a realidade politeísta em Israel.

Conclusões

Asherah possivelmente era uma Deusa e consorte de Yahweh no Antigo Israel e não um simples atributo deste. A proibição da Deusa Asherah é fruto de um dado momento histórico de elaboração e ascensão do monoteísmo javista, onde a identidade judaica, após a drástica experiência do exílio babilônico e na tentativa de reorganização da nação, passa a se constituir em torno de três pilares: um só Deus, um só Povo e uma só Lei. A centralidade em Yahweh se torna um fator importante de credibilidade e legitimação da nova identidade nacional em formação, resultado das reformas empreendidas por Esdras e Neemias. A idolatria se torna então a culpa da ruína de Israel e neste contexto Yahweh é triunfante. Isso irá se refletir no conflito que os textos bíblicos demonstram em relação a Asherah e a outros Deuses e Deusas, bem como, em relação principalmente às mulheres estrangeiras.

Podemos claramente perceber que a elaboração e instituição do monoteísmo não se deu de forma democrática e muito menos pacífica. A partir de um contexto politeísta, a centralidade em Yahweh é um processo violento, de destruição da cultura religiosa do outro e da outra, de proibição do diferente, demonizando-o e tornando-o uma ameaça. Um processo nítido de intolerância religiosa.

A supressão do culto e da imagem da Deusa Asherah traz consigo conseqüências profundas para as relações entre os gêneros, afetando em especial aos corpos das mulheres, que tinham na Deusa uma possibilidade de representação do feminino no sagrado. A religião judaica vai se constituindo em torno de um único Deus masculino, legitimando historicamente uma sociedade patriarcal. Este poder divino imaginado somente como Deus afetou as mulheres, as crianças, a natureza, pois quase sempre partiu de um pressuposto de dominação, opressão e hierarquização das relações, tanto humanas como ecológicas.

Afirmar Asherah como Deusa é polêmico, mas necessário à religião e à pesquisa bíblica. Dar voz a uma época em que Deuses e Deusas eram adorados, em que o próprio Yahweh foi adorado ao lado de Asherah, nos impulsiona a re-pensar não só as relações pré-estabelecidas entre homens e mulheres, bem como, a própria representação do sagrado estabelecida.

Re-imaginar o sagrado como Deusa é re-imaginar as relações de poder, não numa tentativa de apagar a presença de Deus e sim de dar espaço ao feminino no sagrado, novamente o feminino não como um atributo do Deus masculino, mas como Deusa.

Esta talvez seja uma grande contribuição da reflexão feminista, que nos desloca e nos provoca a re-imaginar o sagrado, como possibilidade de re-imaginar a sociedade e as estruturas cristalizadas secularmente.

Referências

BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2003.
CHRIST, Carol P. Re-imaginando o divino no mundo como ela que muda. Tradução de Monika Ottermann. Mandrágora. São Paulo, ano XI, nº 11, p. 16-28, 2005.
CROATTO, S. J. A deusa Aserá no antigo Israel. A contribuição epigráfica da arqueologia. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, nº 38, p. 32-44, 2001.
CRÜSEMANN, Frank. Elias e o surgimento do monoteísmo no Antigo Israel. Fragmentos de Cultura. Goiânia, V. 11, nº 5, p.779-790, 2001.
DISCOVERY CHANNEL. The Forbidden Goddess: Archaeology on the Learning Channel. Degravação de Ildo Bohn Gass. Documentário, 28 min, 1993.
FIORENZA, Elisabeth S. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992.
GASS, Ildo Bohn (Org.). Reino Dividido. 2 ed. São Leopoldo: Cebi; São Paulo: Paulus, V. 4, Coleção Uma Introdução à Bíblia, 2005.
HESTRIN, Ruth. Understanding Asherah, exploring semitic iconography. Biblical Archaeology Review, p. 50-58, 1991.
NEUENFELDT, Elaine. Yahweh- Deus único?, evidências arqueológicas de cultos e rituais à divindades femininas e familiares no antigo Israel. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso de Teologia) – IEPG/EST, São Leopoldo, 1999.
OTTERMANN, Monika. Vida e prazer em abundância: A Deusa Árvore. Mandrágora. São Paulo, ano XI, nº 11, p. 40-56, 2005.
______. A Iconografia da Deusa em Canaã e Israel/Judá nas Idades do Bronze ao Ferro. Ensaio para a disciplina de Colóquio de Literatura e Religião no Mundo da Bíblia, UMESP, 2004.
REIMER, Haroldo. Sobre os inícios do monoteísmo no Antigo Israel. Fragmentos de Cultura. Goiânia, V 13, nº 5, p. 967-987, 2003.
______. A serpente e o monoteísmo. Hermenêuticas Bíblicas: Contribuições ao I Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: UCG, p.115-128, 2006.
RUETHER, Rosemary Radford. Sexismo e religião: rumo a uma teologia feminista. Tradução de Walter Altmann e Luís M. Sander. São Leopoldo: Sinodal, 1993.
SCHROER, Silvia. A Caminho para uma reconstrução feminista da História de Israel. Tradução de Monika Ottermann, (s.d.) 1995.

As portas do paraíso (revelações)

Jean-Luc Godard produziu um filme – Nossa Música (2004) – magistral sobre a pretensão norte-americana universal. Em uma de suas representações oníricas, os Marines – fuzileiros navais dos EUA – são os guardiões das portas do paraíso, filtrando quem pode entrar.
Por Luís Carlos Lopes, professor e escritor


As últimas revelações obtidas ilegalmente e publicadas na Internet pela Wikileaks não deveriam causar o estupor público e privado que vêm acarretando. Governos e indivíduos por razões distintas têm demonstrado imenso dissabor e se articula, nos parâmetros da lógica da vingança, uma reação punitiva contra a organização e seu líder. O ilegal pode ter maior moralidade do que é apresentado como justo e indiscutível, na forma da lei.

Obviamente, os mais descontentes são os que foram atingidos diretamente, isto é, os êmulos da política externa dos EUA. Surgem das sombras as atividades de espionagem, as alianças secretas com personagens dos países periféricos que fazem jogo duplo e uma miríade de outros atores da mesma política. Tudo isto contado com o vigor de uma antiga forma de comunicação: o telegrama.

O teor destes pequenos textos, mesmo não sendo a versão final da posição dos EUA no mundo contemporâneo, indica o que os mais informados já sabiam. O gigante do Norte tem antenas em toda parte. Escuta o que seus aliados nos governos de cada país dizem, vigiam as nações, tal como cães de guarda, e interferem ou tentam interferir na política interna de cada país.

Jean-Luc Godard produziu um filme – Nossa Música (2004) – magistral sobre a pretensão norte-americana universal. Em uma de suas representações oníricas, os Marines – fuzileiros navais dos EUA – são os guardiões das portas do paraíso, filtrando quem pode entrar. Deixa-se para o leitor imaginar quem são os eleitos, de acordo com este grande país, que a humanidade espera que um dia acene para a paz e para o entendimento entre os homens e mulheres da face da Terra.

Por mais que se tente esconder, o impacto é imenso. Comprova-se o que os engajados sempre souberam e ficou difícil, agora, dizer que é exagero ou mentiras ideologizadas. Quem fala são os operadores da política externa norte-americana. Os seus lugares de fala são órgãos públicos que devem obediência ao poder central. O que escreveram não era para ser lido fora do domínio interno. Possivelmente, a maioria destes telegramas seria destruída depois de ter cumprido o seu papel. Alguns seriam recolhidos ao magnífico Arquivo Nacional do país e liberados depois de, em média, trinta anos.

O problema da autenticidade destes papéis não foi levantado, até porque é difícil imaginar que não tenham saído da máquina pública. Quem os revelou é alguém que pertence a este mesmo mundo e que não está de acordo com seu governo. Não é a primeira vez que isto ocorre. É possível comandar guerras, influenciar governos e deter a hegemonia política do mundo. Entretanto, não é possível controlar completamente a consciência de todos. Sempre haverá alguém com um profundo senso humanístico que arrisque sua pele e encontre um modo de dizer a verdade.

O exame destes papéis está longe de ter terminado. E, ao que parece, virão outros em seguida, falando sobre novos e velhos assuntos. A crença subjacente a estas revelações é que não existe democracia real sem se ter acesso aos bastidores do poder. Democratizar é também tornar públicas as informações usadas para oprimir nações e preparar ou manter guerras injustas. O problema não está no método usado para se obtê-las e divulgá-las. O mais importante são os temas abordados nestes já famosos telegramas e suas implicações éticas na convivência entre nações.

No Brasil, o patriotismo arrogante de alguns foi lançado ao chão. Viu-se que a bandeira e amor a pátria não é bem o que organiza a vida de atores do drama histórico brasílico. Agitam a bandeira nacional com força e dizem que estão do lado do poder público nacional. Entretanto, nas sombras comungam com outros deuses, aceitando inclusive informar ao diabo o que se passa neste pedaço da Terra e da humanidade. São patriotas de araque, vendidos aos que têm maior poder na escala mundial. Isto é um problema da consciência deles e que ocorrerá em seguida, só deus sabe.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Libertação e o "ego" do pão

Por Nilton Bonder

Liberar-se é deixar de ser escravo; libertar-se é deixar de ser escravo e escravista.

O Pessach, a Páscoa judaica, ou a cerimônia que comemorava Jesus na "última ceia", é acima de tudo uma lição do inacabado.

A celebração recordando a libertação dos escravos no Egito, na verdade, só consolidou seu significado quando em meio a um novo período de opressão, cerca de mil anos depois. O processo reincidente de subjugação deixava claro que a escravidão não se extingue com a liberação. A escravidão não se extingue quando saímos dela, mas quando ela sai de nós. É por isso que, mesmo liberados, continuamos fazendo parte daqueles que escravizam. É por isso que, mais cedo ou mais tarde, tornamos a encontrar a opressão diante de nós.

Essa incômoda verdade está na nossa mesa. Pensamos que a liberdade e o respeito ao ser humano não existem por conta "deles": dos torturadores, dos inquisidores, dos assassinos, dos ladrões, dos escravistas, dos exploradores, dos mafiosos, dos corruptos, dos fascistas, dos terroristas e dos egoístas. Enfim, esses seriam os inimigos: "Eles", e não "eu". No entanto, tem se tornado cada vez mais difícil em nosso mundo identificar as forças externas que possam representar a fonte do "mal".

A falta de faraós está "democratizando" o mal, fazendo de cada um de nós faraós preocupados em construir suas pirâmides. Vivemos num mundo unificado econômica e politicamente cujo sistema traz bem-estar para alguns enquanto aumenta a miséria de outros.

Em 1960 os 20% mais ricos do planeta detinham 70% da riqueza; hoje são 86%. Os 20% mais pobres tinham apenas 2,3%; hoje, têm menos de 1%. Na noite em que celebramos o jantar do Seder (ritual judaico) e o da Sexta-Feira Santa, centenas de milhões irão dormir com fome. Milhões estarão à morte na África e no mundo, vítimas da alienação que se dissimula de "progresso".

É interessante lembrar que o jantar do Pessach, o jantar da última ceia, não era um jantar de pessoas livres como queria simbolizar. Era um ato subversivo de pessoas novamente subjugadas com o objetivo de ocultar o óbvio -o que não poderia ser dito. O "não-dito" era o ápice da celebração, e por isso a noite de Pessach terminava em prisões e repressão, como no acontecido também com o judeu Jesus.

O que não se podia falar naquela época e também nos dias de hoje é que a crueldade não é destino e que a maneira como as coisas são não é obrigatoriamente a maneira como têm de ser. A libertação começa sempre com o reconhecimento de que há possibilidade de outras possibilidades.

Liberar-se é deixar de ser escravo; libertar-se é deixar de ser escravo e escravista. Vivemos num mundo muito mais liberado, mas muito pouco libertado. Como diz um ditado iídiche: a maldição não é um telegrama, não chega assim tão rápido. Quanto mais liberados e não-libertos, maior a maldição. Trata-se da maldição de cairmos presas, todos, das relações de escravidão de um mundo não libertado sabendo disso e apreciando a vida de liberado.
Como chegar então à liberdade? Como vencer o mais terrível de todos os grilhões, a porta fechada e a alienação?

Talvez seja necessário dar-nos conta de alguns interesses próprios que nos levem a não querer escravizar.

1) Só posso ser livre se você for. Posso ser liberado sem que o outro seja, mas não posso ser livre. Martin Luther King brilhantemente apontou essa dependência ao despertar brancos e negros dizendo: "O negro necessita do homem branco para libertar-se de seus medos; e o homem branco precisa do negro para libertar-se de sua culpa". O que escraviza -medo e culpa- só pode ser libertado pelo outro. Qualquer outra tentativa trará mais medo e mais culpa.

2) A liberdade está menos naquilo que somos livres para fazer e mais no que somos livres para não fazer. A liberdade é uma conquista interna e nunca um ajuste externo. Quando não fazemos o que queremos por opção, com o mesmo prazer e convicção que fazemos o que queremos, então somos livres. Poderíamos dizer que liberado é aquele que faz o que quer. Livre é o que faz o que quer e o que não quer -liberto até da escravidão de seu querer.

O liberado teme a escravidão iminente porque vive num lugar estreito, repleto de medos do outro, de seu verdadeiro "self" e de perda de controle. O liberto reconhece e assimila seu ódio, sua tristeza, sua frustração e sua inveja e aceita a si e aos outros como humanos. A paz se faz de libertos; o conflito se faz de liberados ou dos que buscam ser liberados.

O pão ázimo (não fermentado) que é símbolo dessa celebração tem um gosto que desperta uma memória milenar: pão que é a essência, mas pão sem fermento. Pão sem o "ego" da essência. Sem inflar-se, na sua humildade, esse é um pão sem "eu". Símbolo de uma batalha milenar da civilização, esse pão aponta para a libertação do maior dos tiranos -desse "eu" que libera com o compromisso de não libertar.

É o pão inacabado, de um processo inacabado. Lembrança daquilo que não podemos falar.