domingo, 25 de dezembro de 2011

O Natal e o Cheiro de Deus

Por Edson Fernando, reverendo e escritor.

Disse Angelus Silesius: Nascesse Cristo mil vezes em Belém, mas não em ti, estarias perdido eternamente. Ou seja, para o místico polonês o Natal se plenifica quando o Logos divino é gerado também em nossa alma. Para tal é preciso que saiamos das superficialidades acidentais e mergulhemos na profundidade do essencial. E aquí penso a palavra essencial não no sentido filosófico, como algo imutável em contraposição ao mutante. Penso simplesmente na palavra essência, fragrância, o cheiro que subjaz aos diferentes perfumes da vida. Trata-se portanto de encontrar o verdadeiro cheiro das coisas.

Sair do mundo das perfumarias e penetrar o mundo das essências: Eis o convite da estrela guia, que cumpre o seu percurso ao projetar seu feixe de luz sobre uma criança em Belém. Aquele lugar onde a vida está despida de todas as perfumadas quinquilharias e o essencial se manifesta em sua crueza bela: a fragilidade, a necessidade de cuidado, o milagre da existência. Portanto o Natal é um dinamismo existencial que ultrapassa a Belém do primeiro século. Hoje mesmo o verbo continua sendo gerado. Onde?, pergunta-se Silesius. E responde: Aqui onde em ti perdeste a ti mesmo.

Nesse sentido Maria é para nós o grande modelo, por sua abertura, a radicalidade de seu despir-se para ser ventre do Logos.

Ave aboluto desapego! Ave absoltuta receptividade! Ave virgem de Deus. A virgindade de Maria é mais que um atributo biologico. É uma dimensão da alma que está para além dos gêneros. É preciso ser virgem, disse Silesius, pois só a alma que é virgem pode tornar-se grávida de Deus. Grávidos e grávidas de Deus são aqueles e aquelas que despidos de si mesmos fazem-se encontradiços do embriagante cheiro de Deus. No dizer paulino, o bom perfume de Cristo.

Feliz Natal e, como dizem os baianos, um cheiro pra todo(a)s vcs.

Fonte: Igreja Cristã de Ipanema

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A cultura cristã é superior à islâmica

Por Gabriel Bonis, da CartaCapital.

Em 1992, Ayaan Hirsi Ali foi para a Holanda fugindo de um casamento arranjado pelo pai. No pequeno país europeu, onde viveu como refugiada e depois cidadã, a somali viu seus valores islâmicos entrarem em colapso. Passou de militante da Irmandade Muçulmana à agnóstica, parlamentar e crítica ao Islã.

Na Holanda, despertou a ira dos muçulmanos ao produzir o curta Submissão (2004), no qual uma muçulmana aparece vestida com uma burca parcialmente transparente, enquanto reza e critica o Islã. O vídeo resultou no assassinato de Theo van Gogh, diretor holandês do filme, por um extremista religioso.

Mutilada genitalmente na infância, a autora do best seller de memórias Infiel virou alvo de extremistas religiosos. Atualmente vive sob escolta nos EUA, de onde conversou com o site de CartaCapital, por telefone, sobre seu novo livro, Nômade (Companhia das Letras, 392 págs., R$ 46,00).

O trabalho traz uma postura polêmica da autora: o Ocidente precisa enxergar o perigo do Islã. Ali sugere também que o cristianismo conquiste os muçulmanos para conter os extremistas.

Na íntegra da entrevista abaixo, a somali fala, entre outros tópicos, sobre os valores que enxerga no cristianismo, a proibição do uso de trajes cobrindo o rosto em diversos países europeus e do sexo para as muçulmanas no Ocidente.

CartaCapital – No livro Nômade, a sra. afirma que o Ocidente precisa reconhecer a ameaça do Islã e sugere uma aproximação da Igreja Católica para converter imigrantes muçulmanos. Sua justificativa é de que o cristianismo tem melhores valores que o Islã. Quais seriam esses valores?

Ayaan Hirsi Ali – Como analistas, podemos olhar para diversas religiões e culturas e dizer qual é melhor. Para os politicamente corretos, analisando a perspectiva do multiculturalismo, não há como compará-las, não se deve fazer isso. Contudo, creio que é um desperdício de oportunidade não fazê-lo devido aos desafios do Islã. Olho a cultura islâmica e a cristã e vejo que a cristã passou por um longo período de esclarecimento. As pessoas aceitaram a separação entre a religião, Estado e assuntos de sexualidade, embora isso não se aplique a todos os cristãos. Muitos deles são incapazes de fazer essa separação, mas em geral na cultura cristã ocidental essa separação foi reconhecida e aplicada. Neste sentido, creio que essa nova cultura cristã, que passou por uma reforma e esclarecimento, é superior à cultura islâmica, isenta desse processo. No Ocidente, a Igreja não é a legisladora, a lei é feita de forma independente no Parlamento e no Congresso. As pessoas que as produzem são eleitas por outras pessoas, o presidente dos EUA não é eleito por Deus. Isso é um grande progresso em termos de humanidade se compararmos o cristianismo ao islamismo, um progresso que os muçulmanos ainda não enfrentaram por completo.

CartaCapital – Mas esses itens apontados não estão relacionados apenas com o cristianismo, há aí valores da Revolução Francesa, por exemplo...

domingo, 18 de dezembro de 2011

Sobre manipular antônimos

Por Paulo Brabo, escritor.

As freiras nos ensinaram que há dois caminhos: o caminho da natureza e o caminho da graça. Você tem de escolher que caminho seguir. A graça não tenta agradar a si mesma. Aceita ser menosprezada, esquecida, escanteada. Aceita insultos e ofensas. A natureza só quer agradar a si mesma. Obriga os outros a agradá-la também. Tem prazer em controlar, em impor sua vontade. Encontra motivos para ser infeliz quando o mundo inteiro está resplandecendo ao seu redor, e o amor está sorrindo através de todas as coisas. [A narração inicial de Árvore da Vida, de Terrence Malick]

É sabido que critérios de classificação são coisa sempre arbitrária e artificial, pouco importando o que está sendo classificado, e que portanto as classificações prestam-se com facilidade a servir de ferramentas ideológicas de manipulação. Colocar rótulos sobre as coisas é simplificá-las, e simplificá-las é em si mesmo evitar uma discussão mais profunda (e possivelmente incômoda) sobre a natureza das coisas, do estado das coisas e do que é desejável e legítimo.

Mas não é só classificando, definindo e rotulando que se manipulam ideias e portanto pessoas; outro modo de sustentar uma ideologia é controlando-se os polos, manipulando-se artificialmente os antônimos de conceitos que são fundamentais para a manutenção do estado de coisas. “Qual é o contrário de [determinada coisa]” é uma pergunta que tem quase sempre uma resposta política.

Qual é o contrário de governo? Qual é o oposto de religião? Qual é o contrário de democracia[1]? As respostas ao mesmo tempo muito vagas e muito definidas que tendemos a imaginar para perguntas dessa natureza testemunham por si só o status de vaca sagrada de cada um desses conceitos, e explicam também porque é tão raro que nos façamos esse tipo de pergunta. “Qual é o contrário disso?” pode também significar “existirá uma alternativa a isso?”, e uma resposta não-determinada para questões desse tipo pode representar um risco muito real para o sistema.

Sendo assim, determinar-se em regime artificial o antônimo de um conceito pode equivaler a garantir que jamais se encontrará uma alternativa ideológica legítima para ele. É certificar-se que a reflexão não ameace o estado de coisas. Dizer-se, por exemplo, “o contrário de capitalismo é socialismo” é assegurar que grande parte da sociedade entenda que os horrores atribuídos ao segundo garantem que não há verdadeira alternativa para o primeiro.

Se digo tudo isso é só para declarar o óbvio, que o oposto de capitalismo não é socialismo. O oposto de capitalismo é vida, gentileza, liberdade e convivência – aquilo que em outro tempo se convencionava chamar de cristianismo.

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[1] Ou, ainda, qual é o contrário de heterossexual? O termo oposto preferencial tem sido “homoafetivo”, que alia à baixeza do politicamente correto as vergonhas da simplificação e da incorreção. Porque os heterossexuais, em especial os homens, são em geral grandes homoafetivos – no sentido de que sentem-se mais à vontade para demonstrar verdadeiro afeto a outros homens do que a mulheres, e (sem contar os confortos ou as esperanças da cama) tendem a procurar mais a companhia de outros homens do que a de mulheres.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Causa ecológica e causa antropólogica

por Lucien Sève, filósofo e escritor.

Tão urgente quanto a ecológica, a causa antropológica é, por ora, pouco pensada. Situação dramática. Uma tarefa crucial se impõe, portanto, aos que se aventuram em invocá-la: é preciso se arriscar a propor pelo menos um rascunho de temas principais suscetíveis de estruturar o pensamento da humanidade em perigo

O planeta Terra, essa forma de designar nosso hábitat natural, vai mal a um ponto alarmante; mas a consciência sobre o tema se ampliou e hoje não há formação política que não inclua em seu discurso a causa ecológica. O planeta Homem, forma de designar o gênero humano, está mal a um ponto também alarmante; porém, a consciência sobre o tema ainda não é equivalente a seu nível de gravidade e não há formação política que inclua a causa antropológica. Um contraste assombroso.

Pergunte aos menos politizados o que é a causa ecológica. Certamente, saberão dizer que o aquecimento global causado pelos gases de efeito estufa produzirá uma era de catástrofes; que a poluição da terra, do ar e da água atingirá níveis insuportáveis; que o esgotamento dos recursos naturais não renováveis condena nosso modo de consumo atual. Mais de um deles acrescentará as ameaças à biodiversidade para concluir sobre a urgência de reduzir a pegada ecológica dos países ricos.

Como eles sabem disso tudo? Pelos meios de comunicação, em que a informação ecológica é uma constante. Pelas experiências diretas, desde o clima até o preço do combustível. Pelo discurso de cientistas e políticos que constroem esses saberes parciais como visão globalizada e os convertem em programa político. Ao longo das últimas décadas, assim foi construída uma cultura que dá coerência às mais diversas motivações e iniciativas das quais é feito esse grande tema, a causa ecológica.

Pergunte agora aos menos politizados sobre a causa antropológica. Nenhum deles entenderá exatamente do que se trata. Explicitamos: pense que a humanidade está tão mal quanto nosso planeta, que a civilização do gênero humano está em verdadeiro perigo, de modo que, para salvar a natureza com urgência – causa ecológica –, é necessário, na mesma medida, salvaguardar a humanidade no sentido qualitativo do termo – causa antropológica. A interpelação pegará o interlocutor desprevenido. Muitos a considerarão excessiva. Certamente, a pessoa pensará em questões inquietantes, como a duração das condições de existência, a onda crescente de individualismo, a desmoralização da vida pública, as angústias em relação ao futuro. Mas a ideia de que nossa humanidade estaria em perigo na mesma medida em que o planeta soaria, sem dúvida, aberrante.

Insistimos. Em muitos sentidos, não estamos a caminho de um mundo humanamente inviável? A velha máxima “o homem é o lobo do homem” não tende a ser lei? O trabalho, exemplo maior, entrou em um declínio inquietante devido às dificuldades crescentes de proporcionar atividades gratificantes e de qualidade, à competição sistemática, à erradicação voluntária do sindicalismo, à pedagogia do “aprenda a vender-se”, à gestão empresarial baseada no terror (a ponto de gerar suicídios nos locais de trabalho), à ditadura onipresente da rentabilidade dos números, à voracidade acionária, à inflação e ao patrão criminoso. Não se trata de uma verdadeira desumanização em curso?

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Profissão: homofóbico

Por André Pacheco, jornalista.

É sempre assim. Basta mais um caso de violência com motivação homofóbica, ou qualquer notícia sobre a comunidade gay em portais de notícias, e vem uma enxurrada de comentários depreciativos. “A ideia é fazer parecer que toda a população brasileira odeia os homossexuais”, diz o paulistano Carlos*. Desempregado há três anos, há poucos meses recebeu uma oferta tentadora na igreja evangélica que frequenta em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo.

Ele é apenas mais um entre alguns brasileiros que recebem para “opinar” em caixas de comentários de grandes sites e blogs, também em redes sociais e fóruns. A prática, conhecida como seeding, existe há um bom tempo na internet. Mas o caso dele vai além de ideologias políticas – como aconteceu na eleição de 2010 – ou para elogiar ou negativar um produto. A briga dele é religiosa. “Deus condena os gays, não vejo o que faço como errado, mas como uma missão para moralizar o país”, justifica-se.

Carlos não conversou diretamente com o Vestiário, quando o entrevistei, disse ser alguém interessado em contratar o seu “trabalho”. Afinal, ele não iria falar abertamente com um veículo sobre algo antiético, e que deixa às mostras a guerra declarada de algumas seitas cristãs aos gays, por mais que muitas delas tentem assumir uma imagem imaculada e não batalhar diretamente com nenhum grupo.

Basicamente, o homem – casado e pai de duas meninas – fica antenado nos principais portais e em alguns blogs de médio porte para destilar trechos bíblicos entre palavras de ódio e depreciativas aos homossexuais. O valor recebido por mês não foi revelado, tão pouco qual grupo evangélico ele representa. Mas o preço que me pediu para algo semelhante foi de 2,5 mil reais por mês. Ele também garante conhecer “mais cinco irmãos do mesmo templo que fazem a mesma coisa”, e até ensaiou me indicar alguns caso eu precisasse.

O caso de Carlos não é uma exceção, e infelizmente, parece estar se tornando uma regra – seja também para criticar adversários políticos ou empresas concorrentes. A internet, que prometia ser um ambiente livre e neutro, trouxe às caixas de comentários de grandes sites e blogs o seu pior lado. Por isso, quando ver algum comentário contra os direitos dos homossexuais, fique atento. Pode não ser apenas uma opinião, mas um modelo de negócios.

* Nome substituído.

Fontes: (1) Vestiario.org, (2) Pavablog

sábado, 19 de novembro de 2011

Entrevista com Zé Celso

Fundador do Teatro Oficina dedica sua vida à libertação artística e sexual
Por Otávio Dias, da Revista Trip.

Aos 74 anos de uma vida dedicada à libertação artística e sexual, José Celso Martinez Corrêa, um dos maiores nomes da história do teatro brasileiro, faz seu manifesto a favor da diversidade: “A sexualidade é um mistério tão grande. O bicho humano tem atração por muita coisa, vai muito além do papai e mamãe, da homossexualidade. Não acredito na identidade, mas na mistura”

“Eu não acredito em gueto gay, gueto negro, gueto disso, gueto daquilo. Não acredito em ‘clube do bolinha’, em ‘cada macaco no seu galho’, em ‘não me toque’. A natureza é diversa, mas ao lado da diversidade tem a antropofagia, as coisas e os seres se entredevoram.”

José Celso Martinez Corrêa, daqui pra frente somente Zé Celso, sempre diz algo diverso. Nos últimos 50 anos, durante os quais ocupou papel central na cultura brasileira, incluído um período de mais de dez anos de “ócio criativo”, o criador, diretor, ator, autor e força motriz do Teatro Oficina, de São Paulo, vai sempre além do lugar-comum, do discurso do momento, daquilo que queremos ou não queremos ouvir.

Não seria diferente em relação ao tema que move esta edição: “Vejo a diversidade como algo que te devora. Sou contra a divisão, a afirmação de uma identidade. Não acredito em identidade brasileira, mas na mistura. Como diz João Gilberto, ‘o brasileiro não tem personalidade, ele não precisa.’”

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Ocupação patética, reação tenebrosa

Por Matheus Pichonelli, da Carta Capital.

Ao que tudo indica, a ocupação da reitoria da USP foi de fato patrocinada por um grupo de aloprados, que atropelou o rito das assembleias realizadas até então e, num ato de desespero (calculado?), fez rolar morro abaixo uma pedra que, aos trancos, deveria ser endereçada para pontos mais altos da discussão.

Uma vez que essa pedra rolou, como se viu, tudo desandou. Absolutamente tudo, o que se nota pela declaração do ministro-candidato-a-prefeito (algo como: bater em viciado pode, em estudante, não) e do governador (vamos dar aula de democracia para esses safadinhos), passando pela atitude da própria polícia (tão aplaudida como o caveirão do Bope que arrebenta favelas), de cinegrafistas (ávidos por flagrar os “marginais” de camiseta GAP) e de muitos, mas muitos mesmo, cidadãos que só esperavam o ataque aéreo dos japoneses em Pearl Harbor para, em nome da legalidade, arremessar suas bombas atômicas sobre Hiroshima.

O episódio, em si isolado, é sintomático em vários aspectos. Primeiro porque mostra que, como outros temas-tabus (questão agrária, aborto…), a discussão sobre a rebeldia estudantil é hoje um convite para o enterro do bom senso. O episódio foi, em todos os seus atos, uma demonstração do que o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle chama de pensamento binário do debate nacional – segundo o qual a mente humana, como computadores pré-programados, só suporta a composição “zero” ou “um”. Ou seja: estamos condicionados a um debate que só serve para dividir os argumentos em “a favor” ou “contra”, “aliado” ou “inimigo”.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Deus, unplugged

Por Peter Rollins, filósofo e escritor.
Tradução: Paulo Brabo

Perto do final da vida o teólogo e ativista Dietrich Bonhoeffer começou a preocupar-se com o fato de que a compreensão cristã de Deus havia sido em grande parte reduzida ao status de uma muleta psicológica. Ele descreveu essa compreensão como um “Deus ex machina”.

A expressão, que significa “deus proveniente de uma máquina”, refere-se originalmente a uma técnica usada na Grécia antiga, pela qual uma pessoa era descida ao palco através de um mecanismo, a fim de representar a entrada em cena de um ser sobrenatural. O processo, no entanto, ganhou uma má reputação quando muitos dramaturgos de segunda categoria começaram a usar esse artifício de modo indolente e arbitrário. Quando queriam matar um personagem, criar um novo desafio para o protagonista ou resolver um conflito do enredo, essas caras simplesmente arriavam um deus história adentro. Desse modo, o ser sobrenatural não era parte orgânica da história, mas uma presença intrusiva empregada unicamente para fazer o enredo avançar ou resolver alguma questão.

A expressão deus ex machina passou a significar a introdução de um elemento que não faz parte da lógica interna do desdobramento de uma história, mas que é na verdade um artifício deselegante despejado na narrativa só para desempenhar um papel específico.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A tinta vermelha: discurso de Slavoj Žižek aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street

Por Slavoj Žižek, filósofo e psicanalista.
Tradução: Rogério Bettoni.

Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem.

Então não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A solução não é o lema “Main Street, not Wall Street”, mas sim mudar o sistema em que a Main Street não funciona sem o Wall Street. Tenham cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já fazem de tudo para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tentarão transformar isto aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1% da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para nos fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros, é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nossos engajamentos políticos sejam terceirizados – mas agora nós os queremos de volta.

Dirão que somos “não americanos”. Mas quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os Estados Unidos são uma nação cristã, lembrem-se do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Confissões de um ex-apologeta

Por José Barbosa Jr, escritor e pensador.

Já faz algum tempo que quero escrever sobre este tema. Principalmente por causa da explosão de blogs e sites “apologéticos” nos últimos anos, a maioria deles de conteúdo, no máximo, razoável.

Fico à vontade para falar do assunto, pois logo após minha conversão, me transformei num “apologeta”. Estudei por mais de 15 anos seitas e heresias, tendo feito palestras sobre várias “seitas” e “heresias” em muitas igrejas nos Estados do Rio e do Pará. Especializei-me em Testemunhas de Jeová, Mórmons e Maçonaria. Também pesquisei bastante o material dos adventistas, considerado por muitos estudiosos uma seita “pseudo-cristã”. Em Belém do Pará cheguei a dirigir uma pequena missão “especializada” em dar palestras e equipar as igrejas com apostilas e material para a “evangelização” desses grupos religiosos.

Além disso, devido a minha experiência como católico praticante e fervoroso, tornei-me logo um defensor da “sã doutrina” evangélica, mostrando os erros da igreja católica em muitas palestras e apostilas. Fiz vários estudos sobre o tema e amizade com ex-padres e pessoas oriundas das mais diversas seitas.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O Livro da Vida, ou por que as pessoas morrem

Por Nilton Bonder, rabino e escritor.

No período de dez dias que vai do Ano Novo Judaico até o Dia do Perdão os judeus oram intensamente para serem inscritos no Livro da Vida. Rege a tradição que um grande Livro do Destino se abre neste período e nele se inscrevem os acontecimentos: quem viverá e quem morrerá; quem pela água, quem pelo fogo; quem pela espada (bala perdida), quem pela fome; quem pela tempestade, quem pela epidemia.

Mas vai aqui um grande mal-entendido universal: a vida nada tem a ver com destino. Ficamos fascinados pelo destino achando que ele é a nossa história. Muito pelo contrário: qualquer destino já decretado não é a nossa história, mas uma história. A nossa história tem a ver com escolhas. E é dessa responsabilidade que fala o tal Livro que se abre para todos e que expressam em rito os judeus neste momento de seu calendário.

Esse não é um livro das limitações (da Morte), mas das competências e incompetências (da Vida). Nele se registram as capacidades e incapacidades de viver nossas próprias vidas. E quando não vivemos nossa própria história, quando vivemos destinos, então experimentamos uma imagem de nós e do mundo distorcida. São os ditos fantasmas. São assombros de nós mesmos provenientes do mundo dos mortos — da vida não assumida, das oportunidades evadidas.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Pastor presbiteriano abandona preconceito e se torna uma das principais vozes contra a intolerância religiosa

Por Clarissa Monteagudo do Jornal Extra

Na primeira Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa em 2008, o pastor Marcos Amaral, da Igreja Presbiteriana de Jacarepaguá, aceitou o convite do babalaô Ivanir dos Santos, seu amigo dos tempos de articulação política, para representar os evangélicos. Foi na cara e na coragem, como diz. Ao ver a multidão em trajes afro, o pastor gelou. Até então, aquela imagem era associada ao demônio. Apavorado, Marcos Amaral buscou refúgio no alto do carro de som. Mas, ao descer, o pedido de uma senhora fez o líder mudar de rota e se tornar hoje uma das principais vozes em defesa da liberdade religiosa.

— Eu estava morrendo de medo. Nunca tinha estado em contato com “essa gente” porque, para mim, nessa época, não eram pessoas. Quando desci, pensei em ir embora. Quando estava saindo, uma jovem correu atrás de mim e me pediu para tirar uma foto com a mãe dela. Vi uma senhora negra com roupas de baiana. Ela me pediu: “O senhor pode orar por mim?” e botou a minha mão no turbante dela. Aquela velhinha me quebrou. Nunca mais a vi, mas ela nunca saiu de mim — lembrou o pastor.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Crise da Igreja lembra período da Reforma

Teólogo diz que excessiva concentração de poder nas mãos do papa impede as mudanças necessárias para conter fuga de fiéis

Crítico do papa Bento XVI e de seu antecessor, João Paulo II, o teólogo Hans Küng, de 83 anos, afirma que a Igreja Católica só vai recuperar os fiéis que perdeu nos últimos anos se abandonar o sistema centralizador na figura do papa - que ele compara a um monarca absoluto - e retomar o legado de reformas democráticas do Concílio Vaticano 2.º. "O momento é de mudança, e o papa e os bispos estão cegos, como há 500 anos, na época da Reforma."

Muitos católicos acham que o acobertamento dos abusos sexuais de crianças por padres afastou fiéis da Igreja. O que está errado na Igreja?

Se você encara a questão em palavras tão simples, darei uma resposta igualmente simples. O antecessor de Joseph Ratzinger (atual papa Bento XVI), João Paulo II, lançou um programa de restauração política e eclesiástica que contestava as intenções do Concílio Vaticano 2.º. Ele queria uma recristianização da Europa. E Ratzinger era o seu mais leal assistente, desde o início. Poderíamos chamar aquela época como um período de restauração do regime romano anterior ao concílio.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Por que os Evangélicos são tão crentes, mas tão feios?

Por Elienai Jr, pastor e escritor.

De tudo o que venho dizendo o que mais ofende aos meus irmãos evangélicos é o que digo com poesia. Quando moleque, ainda tão marcado pelo jeitão carioca, gostava de brincar com as pessoas que não entendiam a ironia. Fazia uma brincadeira, mas os sisudos entendiam tal e qual e se apavoravam, ou se irritavam e partiam logo para uma solução séria ou uma advertência. Percebia a surdez poética e divertia-me sadicamente com as ironias até o limite da paciência. Era o que na época chamávamos de “tirar uma casquinha”, uma molecagem.

A ironia é uma das tantas variações da mesma desistência, a da capacidade de expressar sentidos com as palavras ao pé-da-letra. Mas não uma desistência azeda, o que seria um silêncio lúgubre ou um queixume ranzinza, mas uma desistência bem humorada, leve e despretensiosa. A desistência dos poetas. Daqueles que preferem abrir mão do rigor da comunicação para não terem que ficar sem o prazer da comunhão. Já que nunca consigo traduzir tudo o que sinto e penso em palavras descritivas, divirto-me com as aproximações das metáforas. Modestas, mas cheias de beleza. Tão sugestivas, insinuantes e provocativas. Às vezes, os poetas exageram de tão felizes e se satisfazem apenas com o som das palavras, não dizem quase nada, mas tocam em quase tudo. Tão viçosas e livres dos caixotes semânticos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O capitalismo é a crise


Os cientistas estão dando à nossa era o nome de Antropoceno, para denotar o impacto sem precedentes que os seres humanos estão exercendo sobre o planeta, impacto que está causando a sexta extinção em massa da história do planeta.

Há mais escravos hoje em dia do que em qualquer outro período da história humana.

Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, o total de débito assumido por estudantes (que não entraram ainda no mercado de trabalho) é maior do que o total do débito assumido pelo público consumidor em geral.

Os gastos militares globais alcançaram uma cifra recorde em 2011.

O mundo está morrendo, e os capitalistas estão quebrando recordes de lucro enquanto ele morre.

Michael Truscello, em Capitalism is the Crisis

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Hereges e heresias

Por Ricardo Gondim, pastor e escritor.

Com quantos argumentos se estabelece uma questão? Os nazistas souberam demonizar os judeus, já os comunistas habilidosamente desmontaram a lógica de Hitler. Os americanos organizaram uma estrutura filosófica que justificou o bombardeio sobre o Iraque.

Richard Dawkins escreveu um livro em que criteriosamente procura desmascarar os evangélicos ocidentais. Mas já existem vários livros que denunciam a fragilidade dos argumentos desse ateu belicoso.

E assim se alongam as controvérsias.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Moralistas Imorais

Por Contardo Calligaris, psicólogo e articulista da Folha.

Uma queixa banal e barulhenta repete que a modernidade vai para a perdição. Aliás, parece que já foi: sumiram os valores que orientavam nossos pais ou, no mínimo, nossos avós. Dizem que ficamos como baratas tontas, sem rumo e sem critérios para distinguir o bem e o mal. Pois bem, penso o contrário. A modernidade é uma época profundamente moral, de uma maneira inédita pela forma e pela intensidade.

A novidade é que valores e princípios não são respeitáveis por sua origem. Se foi Deus quem disse ou foram os anciões que nos legaram, tanto faz: de qualquer forma, isso não basta. Cada um de nós, em seu foro íntimo, tem a responsabilidade de decidir o que é certo e o que é errado. Tarefa difícil: visto que recusamos a autoridade (divina ou tradicional) das normas, nosso julgamento é sempre concreto. Claro, adotamos princípios gerais, que são os mesmos de sempre; mas, para nós, a moralidade

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Deus criou a Mulher de que osso mesmo?

Por Gilbert SF e Zevit Z.

Outra condição genética, afetando 100% dos machos humanos, é a falta congênita de um báculo. Enquanto a maior parte dos mamíferos (incluindo espécies comuns como cachorros e ratos) e boa parte dos outros primatas (com a exceção de macacos-aranha) têm um osso no pênis, machos humanos não o possuem e precisam contar com a hidráulica de fluidos para manter ereções. O báculo de um grande cachorro pode ter 10cm de comprimento x 1,3cm de espessura x 1cm de grossura… Báculos humanos já foram relatados, comumente em associação a outras doenças congênitas ou anormalidades do pênis.

Uma das histórias de criação no Gênesis pode ser um mito explicatório onde a Bíblia tenta encontrar uma causa para a qual os machos humanos não possuam este osso particular. Nossa opinião é que Adão não perdeu uma costela na criação de Eva. Qualquer israelita na Antiguidade (ou, se for assim, qualquer criança) deve saber que há um número igual (e par) de costelas tanto em homens quanto em mulheres. Mais do que isso, costelas não possuem

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Pálido Ponto Azul

Por Carl Sagan, astrônomo e escritor.


Dessa distante perspectiva, a Terra pode não parecer significativa. Mas para nós, é diferente. Olhe novamente para aquele ponto. É aqui, nossa casa, somos nós. Nele, todos que você ama, todos que conhece, todos que já ouviu falar, cada ser humano que já existiu, viveu sua vida aqui. O misto de nossa alegria e sofrimento, milhares de religiões autênticas, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e ceifeiro, cada herói e covarde, cada criador e destruidor de civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal apaixonado, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada mestre de ética, cada político corrupto, cada celebridade, cada ditador, cada santo e pecador na história de nossa espécie viveu aí - num grão de poeira suspensa num raio solar.

A Terra é um palco muito pequeno na vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em sua glória e triunfo, pudessem se tornar senhores momentâneos duma fração desse ponto. Pense nas infinitas crueldades praticadas por habitantes de um canto deste pixel aos quase indistinguíveis habitantes de algum outro canto; quão frequentes seus desentendimentos, quão desejosos de se matar uns aos outros, quão intenso são seus ódios.

Nossas arrogâncias, nossa suposta auto-importância, nossa ilusão de termos alguma posição privilegiada no universo, são desafiadas por este ponto de pálida luz. Nosso planeta é uma partícula solitária numa enorme e envolvente escuridão cósmica. Em nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que alguma ajuda virá de algures para nos salvar de nós mesmos.

A Terra é o único mundo conhecido, até então, que pode abrigar vida. Não há nenhum outro lugar, pelo menos no futuro próximo, para o qual nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Colonizar, ainda não. Gostando ou não, por enquanto, a Terra é onde nós temos que nos manter.

É dito que a astronomia é uma experiência construtora de caráter e humildade. Não há talvez melhor demonstração de tolice da presunção humana que esta distante imagem do nosso minúsculo mundo. Para mim, ressalta a nossa responsabilidade de lidar mais amigavelmente uns com os outros, e de proteger e amar o pálido ponto azul, o único lar por nós já conhecido.

Tradução: Marcelo Carahyba

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Quantum no Século XXI

Por Nilton Bonder, rabino e escritor.

Vivemos num mundo carente de parâmetros no qual há insuficiência de identidades e de elementos que qualifiquem. Há uma crise moral que tem dificuldade em classificar se algo é benéfico ou maléfico, justo ou injusto, permitido ou proibido. Mas se a qualidade anda em baixa, o mesmo não podemos dizer das quantidades. Elas são inéditas - de gente, de consumo, de longevidade, de destruição, de informação e de tudo mais.

Passa desapercebido ao ser humano comum que a quantidade também qualifica. As quantidades representam fronteiras entre distintas qualidades. Diz um ditado: "uma mentira é uma mentira; duas, são mentiras; mas três, é política". Ou como observou W.Minzer: "se você rouba de um autor é plágio; se você rouba de muitos é pesquisa". Plágio e pesquisa ou mentira e política são

sábado, 27 de agosto de 2011

Eu creio na dúvida

Por Osvaldo Luiz Ribeiro, biblista e exegeta.

O título que este artigo leva não deve ser lido como se quisesse dizer “na dúvida, (então) eu creio”. Se quisesse ser lido assim, teria sido escrito assim: “Na dúvida, eu creio”. Se este fosse o título do artigo, escrito assim, então eu estaria dizendo que, na dúvida, é melhor crer. Dizendo isso, isso que eu dissesse poderia ser aplicado a uma série de situações e, principalmente àquela que se costuma remontar à Pascal, da tal aposta. Dois sujeitos comparam suas “fés”, uma, a de um cristão, a outra, não. Se por acaso o não cristão está certo, e daí? Que mal haverá passado, por ser cristão, o cristão? Nenhum, pelo contrário. Mas e se

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O fim da era de Gutenberg

Em entrevista, professor Thomas Pettitt defende que novas mídias levam humanidade de volta à era pré-Gutenberg, da cultura oral.
Por Fernanda Godoy.

NOVA YORK - Thomas Pettitt tem provocado discussão nos meios acadêmicos ao afirmar que a Humanidade está voltando à cultura de transmissão oral de informação e conhecimento, tornando a época da imprensa escrita e dos livros apenas um parêntese na História. Professor de história da cultura na Universidade do Sul da Dinamarca, ele construiu a Teoria do Parêntese de Gutenberg para analisar uma época que teria começado com a invenção da prensa, no século XV, e terminado com a era da mídia eletrônica. "Estamos caminhando para um futuro pós-imprensa", disse ele, para mais adiante acrescentar: "Alguém pode receber uma mensagem escrita quase tão rapidamente como se estivesse falando com a pessoa. É como se estivéssemos falando pelos dedos".

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Por que as religiões rígidas prosperam

Por Judith Shulevitz, da Slate Magazine

Não é coisa fácil explicar porque algumas pessoas submetem-se entusiasticamente à lei religiosa, especialmente quando se está falando com gente que não tem o menor desejo de agir da mesma forma. Por que limitar-se à “teologia do corpo”, como a chamava o papa João Paulo II, quando o controle da natalidade e a pesquisa de células-tronco prometem alívio para duas das mais dolorosas vicissitudes da existência física – a gravidez indesejada e as doenças degenerativas? Porque restringir-se a alimentos kosher, quando o cashrut baseia-se em classificações zoológicas que caducaram milhares de anos atrás?

sábado, 20 de agosto de 2011

Ortodoxos, conservadores e reformistas

Entrevista com Nilton Bonder, rabino e escritor.

Quais as diferenças básicas entre os ortodoxos e não ortodoxos? Como enxerga a sociedade multi-étnica que vem se construindo em Israel? Como conviver com as diferenças? E no Brasil, no Rio, como os judeus religiosos convivem com as diferenças?

A ortodoxia é um produto do mundo moderno tanto quanto os movimentos liberais. É uma reação a transformação profunda do mundo neste último século. A ortodoxia busca o cumprimento fiel dos princípios do judaísmo demonstrando grande intransigência em relação a tudo que é novo. Os não ortodoxos acreditam que é princípio fundamental do judaísmo o próprio processo de mudança e de renovação. A lei judaica é conhecida como halachá, literalmente: "a caminhada". É sobre esta "caminhada" que versam a discórdia entre

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O enigma da monogamia

Por Drauzio Varella, médico e escritor.

Monogamia social é uma coisa, monogamia genética é outra. A social acontece quando dois indivíduos de sexo oposto se unem para formar um casal. Já a genética é a monogamia sexual; para ocorrer, cada membro do par precisa garantir exclusividade de acesso sexual ao outro.

Monogamia social é fenômeno raríssimo entre os animais. Monogamia genética, então, nem se fala. Até nos pássaros que formam pares amorosos, como o joão-de-barro (acusado injustamente de emparedar no ninho a fêmea infiel), o DNA dos filhos muitas vezes não bate com o do pai social.

Na evolução, o enorme esforço exigido na construção do ninho conferiu vantagens reprodutivas aos pássaros que dividiam essa tarefa com suas fêmeas. Os folgados, que deixavam a fêmea trabalhar sozinha, podiam não ter o ninho pronto no momento propício ou serem preteridos por machos mais

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Santos entre taças de vinho

Entrevista com Luiz Felipe Pondé, filósofo e escritor.


Luiz Felipe Pondé, de 52 anos, é um raro exemplo de filósofo brasileiro que consegue conversar com o mundo para além dos muros da academia. Seja na sua coluna semanal na Folha de S.Paulo, seja em livros como o recém-lançado O Catolicismo Hoje (Benvirá), ele sabe se comunicar com o grande público sem baratear suas ideias. Mais rara ainda é sua disposição para criticar certezas e lugares-comuns bem estabelecidos entre seus pares. Pondé é um crítico da dominância burra que a esquerda assumiu sobre a cultura brasileira. Professor da Faap e da PUC, em São Paulo, Pondé, em seus ensaios, conseguiu definir ironicamente o espírito dos tempos descrevendo um cenário comum na classe média intelectualizada: o jantar inteligente, no qual os comensais, entre uma e outra taça de vinho chileno, se cumprimentam mutuamente por sua “consciência social”. Diz Pondé: “Sou filósofo casado com psicanalista. Somos convidados para muitos

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Na mesma moeda

Por Paulo Brabo, escritor.

(...)

Por motivos que terei de abordar em outra ocasião, os cristãos evangélicos fogem do COMUNISMO mais do que o diabo da cruz; dito de outra forma, fogem mais do COMUNISMO do que do diabo, e tendem também a substituir um pelo outro.

O capitalismo de certa forma sempre existiu, sendo devidamente denunciado por todos os profetas, até Jesus (na linguagem dele “vem fácil vai fácil” escreve-se “de graça recebestes, de graça dai”) e depois. O mérito de Marx está em que ele expôs claramente o mecanismo econômico da exploração: demonstrou que no capitalismo todos trabalham um preciso tanto a mais do que deveriam se trabalhassem apenas para merecer o que ganham. Essa “contribuição extra”, essa mais-valia, serve para sustentar o sujeito posicionado acima de cada um na Grande

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Bestices

Por 'Carrie, a Estranha'.

Eu tenho orgulhos bestas. Orgulhos bestas são orgulhos sem razão, sem justificativa. Porque existem os orgulhos-não bestas. Sim, existem. Nem todo orgulho é besta. Orgulho de ter feito um trabalho de qualidade, de ter contribuído para determinada coisa. Eu tenho um orgulho besta de ser quem eu sou. Eu me acho especial. Muito especial. Mais especial do que a maioria das pessoas - e também tenho a sorte e a bênção de ser cercada de pessoas especiais. Eu me isolo num campo gravitacional de pessoas especiais. Por mais na merda que eu esteja, e que eu reclame horrores (e eu reclamo por qualquer coisinha), eu sei, lá no fundo, que tudo vai dar certo, afinal eu sou eu. Porra. Veja bem: não é que eu me ache melhor do que as outras pessoas. Mas eu tenho orgulho de mim, das coisas que eu fiz e faço, das coisas que já enfrentei, das pessoas que eu atraio pra perto de mim, em suma: do que eu me torno a cada dia, a cada instante e do que eu ainda

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Ainda o fundamentalismo

Por Leonardo Boff, teólogo e escritor.

O ato terrorista perpetrado na Noruega de forma calculada por um solitário extremista norueguês, de 32 anos, trouxe novamente à baila a questão do fundamentalismo. Os governos ocidentais e a mídia induziram a opinião pública mundial a associar o fundamentalismo e o terrorismo quase que exclusivamente a setores radicais do islamismo. Barack Obama, dos EUA, e David Cameron, do Reino Unido, se apressaram em solidarizar-se com governo da Noruega e reforçaram a ideia de dar batalha mortal ao terror, no pressuposto de que seria um ato da Al Qaeda. Preconceito. Desta vez era um nativo, branco, de olhos azuis, com nível superior e cristão, embora o The New York Times o apresente “sem qualidades e fácil de se esquecer”.

Além de rejeitar decididamente o terrorismo e o fundamentalismo, devemos

sexta-feira, 29 de julho de 2011

38 maneiras de se vencer uma argumentação

Por Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do séc.XIX.

Nº 1. Leve a proposição do seu oponente além dos seus limites naturais; exagere-a.

Quanto mais geral a declaração do seu oponente se torna, mais objeções você pode encontrar contra ela. Quanto mais restritas as suas próprias proposições permanecem, mais fáceis elas são de defender.

Nº 2. Use significados diferentes das palavras do seu oponente para refutar a argumentação dele.

Exemplo: a pessoa A diz: “Você não entende os mistérios da filosofia de Kant”.

A pessoa B replica: “Ah, se é de mistérios que estamos falando, não tenho como participar dessa conversa”.

Nº 3. Ignore a proposição do seu

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Causas da homossexualidade

Por Drauzio Varella, médico e escritor.

Existe gente que acha que os homossexuais já nascem assim. Outros, ao contrário, dizem que a conjunção do ambiente social com a figura dominadora do genitor do sexo oposto é que são decisivos na expressão da homossexualidade masculina ou feminina.

Como separar o patrimônio genético herdado involuntariamente de nossos antepassados da influência do meio foi uma discussão que monopolizou o estudo do comportamento humano durante pelo menos dois terços do século XX.

Os defensores da origem genética da homossexualidade usam como argumento os trabalhos que encontraram concentração mais alta de homossexuais em determinadas famílias e os que mostraram maior prevalência de

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Babel: De volta à confusão

Por Nilton Bonder, rabino e escritor.

As guerras são sempre míticas. Nelas se revelam aspectos do imaginário humano que manifestam forças profundas da natureza e da vida.

O conflito no Iraque, entre tantos significados políticos e culturais, possui um elemento que o torna quase místico. É de lá que vem a história da Torre de Babel bíblica, inspirada em questões civilizacionais da antiga Mesopotâmia.

O relato do Gênesis tenta retratar a angústia de uma civilização diante das mutações externas e internas que caracterizam a própria vida. Claramente, uma polêmica entre o processo de urbanização promovido pelo advento da monocultura agrícola e a velha ordem de pastores e de agricultura de subsistência, contrastava a Babilônia e seus jardins suspensos com uma antiga ordem que questionava a ética do progresso baseado na matéria.

Tratava-se de um mundo globalizado — todos falavam, aparentemente,

sábado, 16 de julho de 2011

O Deus que não tem ninguém na sua lista

Por Paulo Brabo

Nesse momento entra em cena esse sujeito J. Harold Ellens, um psicólogo norte-americano que em seus livros e artigos defende essencialmente uma ideia: a de que a notícia evangelical da graça incondicional e do perdão universal dos pecados não representa apenas a única chance para a salvação espiritual da humanidade, mas a única chance para a salvação dos nossos distúrbios mentais. E que, de fato, não existe diferença entre uma coisa e outra.

Desde que a psicologia ganhou alguma reputação como disciplina e como prática seus méritos, seu vocabulário e suas ênfases tem sido apropriados (ou, alternativamente, questionados) por muitos cristãos a fim de legitimar suas próprias versões da ortodoxia. Ellens, no entanto, está a milhas de distância da banalidade de obras

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Violência contra homossexuais

Por Drauzio Varella, médico e escritor.

A homossexualidade é uma ilha cercada de ignorância por todos os lados. Nesse sentido, não existe aspecto do comportamento humano que se lhe compare.

Não há descrição de civilização alguma, de qualquer época, que não faça referência à existência de mulheres e homens homossexuais. Apesar dessa constatação, ainda hoje esse tipo de comportamento é chamado de antinatural.

Os que assim o julgam partem do princípio de que a natureza (ou Deus) criou órgãos sexuais para que os seres humanos procriassem; portanto, qualquer relacionamento que

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A Solução Final de Lutero

Por Paulo Brabo

“O que devem fazer os cristãos contra este povo rejeitado e condenado, os judeus?”

Há alguns anos perdi instantaneamente um amigo luterano quando citei, numa conversa, trechos das fortíssimas diatribes que Lutero escreveu contra os judeus. Ao mesmo tempo em que recusou-se a acreditar que Lutero tivesse dito aquilo, meu amigo decidiu que não queria ter nada com alguém como eu que recusava-se a crer que seu herói não havia sido infalível. Lembro ter achado curioso que Lutero, que lutou com todas as forças para derrubar o dogma da infabilidade papal, tivesse de alguma forma adquirido entre os seus seguidores a fama de infalível.

“Em primeiro lugar, queimem-se suas sinagogas e suas escolas.”

Lutero era um sujeito de extremos. Identifico-me às vezes com ele. Como eu, o reformador cometia a indiscrição de escrever demais, publicando às vezes centenas de panfletos por ano; como eu, ele caiu mais de uma vez na armadilha da própria retórica.

“Em segundo lugar, recomendo que suas casas sejam também arrasadas e destruídas.”

No começo da sua carreira, quando simpatizava com os judeus, Lutero chegou a identificar-se com eles:

Os judeus são parentes de sangue do Senhor; se fosse apropriado vangloriar-se na carne e no sangue, os judeus pertencem mais a Cristo do que nós. Rogo, portanto, meu caro papista, que se te cansares de me vilipendiar como herético, que comeces a me injuriar como judeu.

Essa atitude logo mudou quando os judeus recusaram-se a converter-se como moscas diante da sua pregação, e – pior – quando Lutero viu alguns de seus cristãos convertendo-se às “mentiras” do judaísmo. Embora seja lembrado como um ardente defensor da graça, Lutero, como todos, não foi capaz de viver à altura dela. Da mesma forma que incontáveis cristãos antes e depois dele, o reformador perdeu de vista o cerne escandaloso da mensagem do Reino, a espantosa notícia de que Deus não tem favoritos e derrama sua gentileza e sua graciosidade mesmo sobre os que o rejeitam da forma mais deliberada.

“Terceiro, recomendo que todos os seus livros de oração sejam tirados deles.”

Hoje em dia, lendo essas passagens, é muito fácil lembrar que a Alemanha de Lutero seria mais tarde berço de Hitler e das atrocidades nazistas. Somos tentados a associar rapidamente as duas coisas e, na verdade, ninguém deveria ousar separá-las. Duas observações importantes são no entanto necessárias: primeiro, Lutero não estava escrevendo algo de que seus contemporâneos discordariam. Quando maldizia os judeus ele apenas colocava a sua pena em favor da maré cultural do seu tempo. Na Europa medieval, em que todas as pessoas que se davam a algum respeito eram cristãos, os judeus eram (e apenas em parte trocadilho) tomados para Cristo. Judeus eram culpados de todos os males, acusados de todos os crimes, responsabilizados por todas as pragas. Quando uma colheita falhava, você não tinha duvidas sobre quem havia jogado sobre ela o seu mal-olhado. Quando uma criança desaparecia, você não tinha dúvidas de na faca de quem ela havia sido sacrificada. Os judeus eram “o outro”, os estranhos, aqueles dos quais a gente de bem desvia o rosto. Eram, em tudo e para todos, o bode expiatório.

“Quarto, recomendo que seus rabis sejam proibidos de ensinar, sob pena de morte ou de amputação.”

Segundo, há uma diferença importante entre a posição nazista e a hostilidade medieval aos judeus, tendência que o reformador apenas seguia. Lutero era anti-judeu, Hitler era anti-semita; a primeira questão é religiosa, a segunda, racial. Lutero abraçaria um judeu que se convertesse ao cristianismo; sob Hitler, os judeus convertidos ao cristianismo foram perseguidos e mortos.

“Quinto, recomendo que o salvo-conduto para o livre-trânsito nas estradas seja completamente negado para os judeus.”

Nenhuma dessas coisas, naturalmente, justifica as declarações e a posição de Lutero – mas devem ser levadas em conta na análise do que ele estava dizendo e das suas implicações.

“Sexto, recomendo que todo o dinheiro e peças de ouro e prata sejam tomados deles e colocados sob custódia.”

Vale ainda lembrar que, embora pareça extremamente virulenta, a posição radical de Lutero não difere muito das duríssimas objeções que muitos cristãos levantam nos nossos dias contra outros grupos. O “outro” nos nossos dias é outro. Os cristãos escolheram novos alvos: dependendo da sua inclinação, os bodes expiatórios são hoje em dia os comunistas, os homossexuais, os muçulmanos, os católicos, os evangélicos, os negros, os pobres, os ricos ou uma informe combinação de todos esses.

“Sétimo, recomendo que se coloque um malho, um machado, uma enxada, uma pá, um ancinho ou um fuso nas mãos dos jovens judeus e judias.”

Continuamos a agir como se houvesse diferença. São sempre eles que carecem da graça. O coração duro é sempre dos outros.

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Sobre os Judeus e Suas Mentiras
Por Martinho Lutero, 1543

O que devem fazer os cristãos contra este povo rejeitado e condenado, os judeus? Já que eles vivem entre nós, não devemos ousar tolerar a sua conduta, agora que sabemos das suas mentiras e suas injúrias e suas blasfêmias. Se o fizermos, tornamo-nos participantes de suas mentiras, sua injúria e sua blasfêmia. Portanto não temos como apagar o inextinguível fogo da ira divina, da qual falam os profetas, e tampouco temos como converter os judeus. Com oração e temor de Deus devemos colocar em prática uma dura misericórdia, para ver se conseguimos salvar pelo menos alguns deles dentre as chamas crescentes. Não ousamos vingar a nós mesmos. Vingança mil vezes pior do que qualquer uma que poderíamos desejar já os toma pela garganta. Quero dar-lhes minha sincera recomendação:

Em primeiro lugar, queimem-se suas sinagogas e suas escolas, e cubra-se com terra o que recusar-se a queimar, de modo que homem algum torne a ver deles uma pedra ou cinza que seja. Isso deve ser feito em honra de nosso Senhor e da Cristandade, de modo que Deus veja que somos cristãos, e não fazemos vista grossa ou deliberadamente toleramos tais mentiras, maldições e blasfêmias públicas tendo como alvo seu Filho e seus cristãos. Pois o que quer que tenhamos tolerado inadvertidamente no passado – e eu mesmo estive ignorante dessas coisas – será perdoado por Deus. Mas se nós, agora que estamos informados, protegermos e acobertarmos essa casa de judeus, deixando-a existir debaixo do nosso nariz, na qual eles mentem, blasfemam, amaldiçoam, vilipendiam e insultam a Cristo e a nós, seria o mesmo que se estivéssemos fazendo tudo isso e muito mais nós mesmos, como bem sabemos.

Em segundo lugar, recomendo que suas casas sejam também arrasadas e destruídas. Pois nelas elem perseguem os mesmos objetivos que em suas sinagogas. Eles devem ao invés disso ser alojados debaixo de um único teto ou pavilhão, como ciganos. Isso fará com que eles aprendam que não são senhores no nosso país, da forma como se vangloriam, mas que vivem em exílio e no cativeiro, da forma como gemem e lamentam incessantemente a nosso respeito diante de Deus.

Terceiro, recomendo que todos os seus livros de oração e obras talmúdicas, nos quais são ensinados tais idolatrias, mentiras, maldições e blasfêmia, sejam tirados deles.

Quarto, recomendo que seus rabis sejam de agora em diante proibidos de ensinar, sob pena de morte ou da amputação de algum membro. Pois eles perderam da forma mais justa o direito a tal posição ao manterem os judeus cativos com a declaração de Moisés (em Deutoronômio 17:10ss) na qual ele ordena que obedeçam os seus mestres sob pena de morte, embora Moisés acrescente claramente: “o que eles ensinam segundo a lei do Senhor”. Esses desprezíveis ignoram isso. Eles arbitrariamente empregam a obediência do pobre povo de forma contrária à lei do Senhor, infundindo neles esse veneno, essa maldizer, essa blasfêmia. Do mesmo modo o papa nos manteve cativos com a declaração de Mateus 16, “Tu és Pedro,” etc, induzindo-nos a crer em todas as mentiras e falsidades que provinham de sua mente diabólica. Ele não ensinava em conformidade com a palavra de Deus, e perdeu portanto seu direito a ensinar.

Quinto, recomendo que o salvo-conduto para o livre-trânsito nas estradas seja completamente negado para os judeus. Eles não tem o que fazer no campo, visto que não são proprietários de terras, oficiais do governo, mercadores ou coisa semelhante. Que fiquem em suas casas.

Sexto, recomendo que sejam proibidos de emprestar a juros, e que todo o dinheiro e peças de ouro e prata sejam tomados deles e colocados sob custódia. O motivo de tal medida é que, como foi dito, eles não possuem qualquer outro modo de ganhar a vida que não seja emprestar a juros, e através da usura furtaram e roubaram de nós tudo que possuem. Esse dinheiro deveria ser agora usado para nenhum outro fim que não o seguinte: quando acontecer de um judeu se converter, serão dados a ele cem, duzentos ou trezentos florins, da forma como sugerirem suas circunstâncias pessoais. Com isso ele poderá estabelecer-se em alguma ocupação de modo a sustentar sua pobre mulher e filhos e dar suporte aos velhos e fracos. Pois tais ganhos malignos são amaldiçoados se não colocados em uso com a benção de Deus numa causa digna e justa.

Sétimo, recomendo que se coloque um malho, um machado, uma enxada, uma pá, um ancinho ou um fuso nas mãos dos jovens judeus e judias, e deixe-se que eles ganhem o seu pão com o suor do seu rosto, como foi imposto sobre os filhos de Adão (Gênesis 3:19). Pois não é justo que eles deixem que nós, os gentios malditos, labutemos debaixo do nosso suor enquanto eles, o povo santo, gastam o seu tempo atrás do fogareiro, banqueteando-se e peidando, e acima de tudo isso vangloriando-se blasfemamente do seu senhorio sobre os cristãos através do nosso suor.

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sexta-feira, 8 de julho de 2011

Que uma serpente não decida por nós

Por Alex Sandro Carrari

Adão e Eva são o Todo Homem e Toda Mulher bíblicos, seu pecado é o nosso pecado

Deixemos de lado Adão e Eva como nomes próprios. Não os tratemos como indivíduos sobre os quais pese a total culpa do primeiro delito. Não pensemos que Adão e Eva eram invólucros de pleno purismo interior vivendo em estado de imperturbada perfeição (A perfeição do homem é a perfeição de uma vocação, não de uma situação, como escreve F. Varillon). Desprendamo-nos da idéia de um primeiro casal exemplar e puro sulcando delituosamente a maçã num paraíso primordial. Desconsideremos que a árvore ocultava uma ameaça. Que o mal estava contido no fruto. No lugar do casto e ingênuo casal das origens, coloquemo-nos a nós mesmos, com seco realismo, abocanhando nossa mais alucinada ganância, nossa mais ostentosa ambição, nosso mais agudo desejo de dominação.

Como Deus sereis. O prêmio é a conquista imediata da alteridade, o completo desimpedimento da percepção. A árvore não é boa nem má, a ciência é neutra, sua manipulação é que a inclina para o bem ou para o mal. Dependendo da vontade daquele que da ciência se apropria, pode ser que seja inventada a cura para o câncer, ou, pode ser que apareça uma bomba mais devastadora do que a de Nagasaki e Hiroshima. A cobiça gerada no coração, de onde procedem os maus desígnios como dizia o Nazareno, é que antecede a fatídica dentada. O gesto consumado só evidencia a mais ativa e sombria potencialidade que se abriga em nosso íntimo, o mal em estado embrionário.

Convidados a tomar parte na vida divina através do humilde acolhimento, inaugurando alvoradas, fruindo crepúsculos dias a fio no mundo, optamos pela via do rompimento; a negação de nossa humana vocação. Colocado em termos que diariamente arrazoamos sobre seus benefícios, nada mais tentador que inventarmo-nos como Deus. Quanto aos encargos de conhecer o bem e o mal fingimos não saber do que se trata, melhor ainda – e isso limpa a nossa barra – dizemos que tanto o bem quanto o mal pertencem a Deus, e que não nos compete arquitetar sobre o caso. O velho determinismo fatalista disfarçado de piedade.

Tapamos o entendimento para a evidência de que a Bíblia não fecha com a afirmação de ser o homem totalmente mau – totalmente depravado como queria o obscuro legista de Genebra – nem totalmente bom – como querem alguns educadores atuais –, mas que é dotado de ambas as tendências. Inclina-se tanto para uma quanto para a outra. Desconversamos quanto ao relato do Gênesis onde queremos ver uma “Queda”, a escritura não classificar, e não dar espaço, para compreendermos o ato de Adão como pecado. Parece que o melhor para nossa disposição ao cinismo é não sabermos que na opinião do Pentateuco o homem é dotado de “impulsos malignos”, quer dizer, há em seu caráter uma tendência para o mal.

Fazemos de conta que nunca ouvimos dizer que a expressão que a Bíblia usa para essa tendência para o mal é yetzer, palavra que deriva da raiz YZR, que significa “formar”, “modelar”, algo como o ceramista que modela o barro para fazer um vaso. Que a palavra yetzer tem como significado “forma”, “estrutura”, “propósito” com referência a imaginação. Yetzer, portanto, significa fantasias, sejam elas boas ou más. Não, não levamos em conta que estes impulsos só são possíveis à base daquilo que é peculiarmente humano: a imaginação. Ser bom ou mal é algo dado somente ao ser humano. A questão problema do bem e do mal surge quando há imaginação[1]. Jesus deixa isso às claras quando alerta para o enraizamento da maldade na profundidade de nosso ser, onde fervilham maquinações que quando colocadas para fora revelam o que realmente vai em nosso interior.

Está certo que o homem só desenvolve seu impulso para o mal após ter rompido sua unidade primordial com a natureza e ter adquirido autoconsciência e aprimorado, com malignidade, sua imaginação. Na concepção judaica – que não leva em conta as neuras de Stº Agostinho e Calvino – o homem nasce com a capacidade de pecar, mas pode também de voltar-se para Deus e se redimir alinhando seus passos ao desejo divino, sem que para isso precise ser forçado, ou predestinado. A idéia de escolha é fundamental na mentalidade judaica, pois, ela determina quais impulsos o homem vai seguir se para o bem, se para o mal.

Que uma serpente não decida por nós

Não levamos em consideração que o “pecado original” nos termos em que fomos treinados a acreditar se conforma à nossa ociosa falta de atitude e brio pessoal em nos colocarmos em nosso lugar e arcarmos com os desmazelos próprios do nosso ego avultado. Nossa preguiça, e, pouca ou nenhuma disposição para cingir tudo o que estamos destinados a ser, avoluma o débito impagável que Adão e Eva deixaram em nossa conta. Até polimos a expressão do Bispo de Hipona, não por ser coesa com o Sacro texto, mas por ser coerente com nossa anuência em deixar que uma serpente sempre decida por nós.

A noção de “pecado original” como enunciado dogmático provoca em nós uma resignação aliviante ao sugerir que entramos na vida com dois pontos a menos em nosso cômputo, ambos perdidos lá no Éden, sem sequer termos tido a chance de protestar – como se por um acaso fosse-nos dada a chance de fazê-lo fossemos mesmo capazes. No início não queríamos, com o tempo, deixamos de ser homens, falidos e descontentes com nossa sorte, porém, relutantes em assumir nossa responsabilidade pelo que fizemos no passado e pelo que faremos daqui em diante. A sublimação voluntária de nossa responsabilidade e consciência evolutiva do mal que nós mesmos gestamos, fizeram florescer imagens de Satãs e Luciferes heróicos como o de Milton ou patéticos como o de Goethe, tornando o pecado mais interessante e o pecador mais atraente que o santo, embora não admitamos publicamente.

Isolando o dogma, a necessidade de redenção pessoal foi arquitetada a partir da noção de “pecado original” e “Queda”, que não constam em Gênesis, mas para todos os efeitos é dito e ensinado que constam, tornando-se pedras fundamentais sobre as quais foi construída a mensagem cristã de salvação.

O pecado de todos nós e o que estamos destinados a ser

Passivos e trêmulos observamos da coxia Adão, o homem-pecador em cena, homem-insurrecionário, altivo e rebelde tumultuando o céu, instalando com apenas uma dentada a desordem cósmica como efeito do orgulho que lhe penetrou o coração. (Um início caricatural do mundo, em que Deus cria tudo perfeitamente e o homem abala essa perfeição introduzido o caos e a desordem). Daí as imagens de auto-afirmação – a cobiça de Adão no Éden ao pé da árvore da ciência – seguidas de sexo desordenado – fora dele quando foram expulsos – que povoam nossa mente quando pensamos no pontual primeiro delito e em sua extensão; e viram que estavam nus. Não por acaso, no imaginário cristão, o primeiro casal só foi conhecer o sexo após a "Queda" e a expulsão do paraíso. Uma definição prometéica do pecado, que nas obras de T.S.Eliot começou a ser redefinida.

Eliot expôs um mundo de lume fosco acinzentado, habitado por homens ocos e empregados de aparência débil, diagnosticando a verdadeira doença de nosso tempo, enquanto que nossa geração avança manquejando, não para sua realização, mas para o queixume e o tédio. Becket nos apresentou personagens que lançam olhares apreensivos das latas de lixo e dos montes de sujeira, onde chafurdam inertes e impotentes, trocando palavras desconexas e banais. Kafka nos fez apavorar com a parábola do ordinário empregado de escritório cuja primeira reação, ao ver-se transformado num terrível inseto, é calcular se ainda dará pra chegar a tempo ao trabalho. No século XXI a figura prometéica perdeu lugar na cena, que foi ocupada pelos fracos, passivos e trêmulos observadores da coxia.

Ao localizarmos a “Queda” com excessivo rigor na história do fruto proibido, nublamos o entendimento para o verdadeiro gerador do pecado no homem que consta, por exemplo, na paulada criminosa de Caim em Abel, na arrogância religiosa da Torre de Babel, na tentativa de homicídio contra José; a recusa do homem em viver em reciprocidade com seu próximo, compartilhando a terra e dividindo seus frutos e conquistas. O primeiro pecado humano não é um pecado de orgulho, é um pecado de condescendência. A má ação original de Eva – que representa o Todo Homem e Toda Mulher – não foi comer o fruto, pois, antes mesmo de esticar o braço e apanhá-lo seu coração já o havia cobiçado, renunciando a sua posição de domínio sobre si e responsabilidade sobre seus atos. A má ação original de Eva foi deixar que uma cobra lhe dissesse o que fazer.

A meia verdade da mítica serpente, não por acaso fálica, se confirmou, não morreram eles e não morremos nós ao comermos da árvore. Não se trata dessa morte que, acossados, tanto fazemos questão de desconversar. Não se trata desse nosso medo mais acirrado. Trata-se de outro tipo de morte. Da morte antecipada, da morte provocada, da vida abreviada, do fôlego extinto ao meio dia, das primaveras corrompidas. Asseveramos com tanta ansiedade a inauguração da morte física como um castigo divino, que ofuscamos o brilho de nossa mais fulgente virtude, emanar as qualidades invisíveis do Eterno antes que se rompa o fio de prata. Ambicionamos ser iguais a Deus sem acolhe-lho, então negamos, suprimimos, rejeitamos nossa humanidade, nos desumanizamos no processo; deixamos de ser homem. O homem é a criatura que está destinada a realizar seu próprio destino através do acolhimento do divino. Quando cede esse direito de decisão a outrem, e opta por não acolher o dom da reciprocidade divina, deixa de ser homem, se torna desumano.

O pecado que convencionamos chamar de “original” não é o pecado apenas de um, ou dois indivíduos num estranho e longínquo Jardim de Delícias, antes, é o pecado de todos nós na secularidade das nossas vidas, porque todos pecaram. No egoísmo somos solidários em pecado com o genérico Adão, para a morte. Na reciprocidade somos solidários em santidade com o Cristo ressuscitado, para a vida. O apático esquivamento de nossas responsabilidades, nossas decisões pessoais transferidas a outrem, a alienação de uma vida de harmonia com o semelhante, a passividade diante das varias expressões da maldade, a negação da nossa humana vocação; eis o pecado em sua origem. Eis o pecado original.

Notas
[1] Erich Fromm, O ESPÍRITO DE LIBERDADE, p 128-131