quinta-feira, 18 de abril de 2013

Não se pode ter amado o que nunca se conheceu de fato

Por Osvaldo Luiz Ribeiro, biblista e exegeta.

1. José casou com Maria. Foram onze mil, setecentos e trinta e duas vezes e meia que José disse a Maria que a amava - a meia é porque, numa das vezes, ela o interrompeu com um beijo profundo... A lua-de-mel foi em Komodo, num hotel simples, mas confortável, e com longos passeios de barco e mergulhos em regiões paradisíacas. Ele a enchia de presentes e roupas caras - de lingerie, eram gavetas e gavetas. Maria era sua pequena boneca - e ele se derretia de amores...

2. No seu aniversário de casamento de sete anos, na manhã seguinte àquela segunda lua-de-mel, Maria disse a José que precisava lhe contar um segredo. Maria fora prostituta por dois anos, antes que José a conhecesse. Depois que Maria conheceu José, abandonou a profissão. Nunca revelou, com medo. Mas, agora, diante da prova de tanto amor, confessa seu passado...

3. José fica petrificado. O sangue lhe ferve. Esbofeteia-a. De novo. Outra vez. Maria chora, convulsiona-se, José a tem caída ao chão e não contém um chute. Cospe-lhe. Vira as costas e vai sair do quarto... Olha para ela:

_ Prostituta! E eu, que tanto te amei...

4. Maria levanta, retém todas as lágrimas que já encharcavam o chão. Sua respiração é profunda. Controlada, Maria dirige a José essas palavras, que me interessam dizer:

_ Você nunca me amou, nunca! Amou a imagem que fez de mim, seu brinquedo e bibelô. A mim, a mim você não amou foi é nunca! Eu, essa que aqui está e a quem você vê inteira e pela primeira vez como ela é, não, a mim você não ama nem nunca amou...

5. Essa história ilustra bem como se dá a relação entre crentes que nunca estudaram academicamente a Bíblia e a Bíblia. Casaram-se com ela. Contaram-lhes historinhas leves, tranquilas: ela é uma santa, seu passado não é pesado, não pode machucar. E eles, sem nunca terem conhecido o que ela de fato foi e é, sentem que a amam...

6. Um dia, sentam-se em bancos de estudo acadêmico. É seu sétimo aniversário de casamento. É o dia de a Bíblia lhes contar seu passado. Quando começam a descobrir, arregalam os olhos. O sangue lhes ferve. Têm ímpetos de esbofetear, de cuspir, de chutar. Fariam-no, se pudessem...

7. Nunca amaram a Bíblia, porque nunca a conheceram. O que tinham dela era uma paródia doutrinária, construída em catecismos muito mau montados, que não resistem a dez minutos de estudo sério. Não podiam amar o que nunca conheceram e, então, amaram uma leitura, uma história, uma interpretação. A Bíblia, mesmo, nunca amaram...

8. À medida que ela se lhes revela seu passado - montagens, interpolações, manipulações, erros, conflitos, contradições, mitos, contos, lendas, inverdades (tudo o que é humano diz respeito à Bíblia!) -, eles sentem seu amor desaparecer. É a imagem que tinham dela que eles amam - mas não ela mesma.

9. Sua situação será uma de duas: a) como o marido que nunca amou a esposa, eles a abandonam, ou b) como o marido que finge que não ouve a história, eles continuam a tratá-la como se não soubessem quem de fato ela é. De qualquer forma, ela, a Bíblia, tal qual ela é, é negada, recalcada: ou é jogada fora ou é fantasiada e falseada...

10. Se, de fato, amassem esse livro - e não amam, amam é sua interpretação -, ouviriam com interesse, curiosidade, atenção, zelo, buscariam informações, vasculhariam seu passado, para saberem exatamente quem ela é e, independentemente de quem ela se revelasse, a amariam do mesmo modo, a estudariam do mesmo modo.

11. Não há muita gente que ame esse livro.

12. Grande é, todavia, a multidão dos que enchem de lingerie sua imagem-esposa...