sexta-feira, 22 de junho de 2012

A aflição de uma vida líquida

Por Renato Nunes Bittencourt, filósofo e professor.

Zygmunt Bauman fala sobre a ansiedade e a angústia que é viver em nossa atual condição sociocultural, marcada por infinitas possibilidades de escolhas e pela falta de solidez e durabilidade

O mundo pós-moderno é marcado pela angústia das possibilidades, das escolhas e da falta de modelos. E ninguém melhor pensa o tema hoje que o polonês Zygmunt Bauman. Sua obra se caracteriza pela extrema perspicácia na análise dos problemas sociais que perpassam a experiência cotidiana do homem contemporâneo na conjuntura valorativa que é denominada pelo autor como “Modernidade Líquida”. A questão da especulação sobre o medo público, o uso das disposições consumistas dos indivíduos como suporte para a manutenção da economia e a fragmentação da experiência ética da alteridade são temas recorrentes na trajetória intelectual deste prolífico sociólogo de formação que, todavia, por sua riqueza de interpretação, muito contribui para o desenvolvimento de um estudo filosófico enraizado na crítica da ideologia da sociedade de consumo e na despersonalização de um mundo desprovido de ampla cooperação interpessoal. Bauman é professor emérito de Sociologia da Universidade de Leeds, no Reino Unido. Grande parte de sua obra está publicada no Brasil pela Jorge Zahar, que tornou acessível a obra do pensador, que é um exemplo de dedicação intelectual. Os problemas sociais destacados por Bauman em suas obras são apresentados de maneira clara e solidamente argumentada. Nesta entrevista, pontos cruciais de suas ideias são revisitados.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Sobre o Ver

Por Bianca Assis, educadora.

Sou defensora da autonomia e do desenvolvimento da capacidade de expressão própria. Como professora de Artes Visuais, meu objetivo não é somente possibilitar o reconhecimento de códigos gráficos e obras importantes, mais que isso, por militância, é a busca de uma identidade, e o empoderamento de instrumentos para a expressão do que se é genuíno a indivíduos, coletivos, povos.

 Acredito que a voz ativa seja um direito, e um símbolo da dignidade. [Como expressei no texto “sobre o ouvir”] Mas o texto que elogia a voz trata da importância da audição. Neste texto, sobre expressão visual, quero tratar da importância do saber ver.

É comum ouvir que o individualismo pós-moderno nos torna cada vez mais sozinhos em nossa caminhada. Eu discordo. É enorme a necessidade de adaptação e de culto ao “parecer”, se não fosse assim, não existiria o status quo, a vontade incontrolável de se trocar de carro ou de aparelho celular, a fórmula social de sucesso, a moda, os cabelos alisados, as fôrmas...

A individualidade neste sentido, nada mais é do que a forma de se obter recursos, ganhar vantagem, e passar por cima de interesses coletivos, para se mostrar aos outros o quão poderosos se é. Status. As mídias ditam o padrão estético nortista, europeu, dos grupos economicamente dominantes.

Neste ponto sou testemunha do poder que possuem, pois, muitas vezes vi meus alunos negros fazendo auto-retratos com a pele branca e os cabelos amarelos, mesmo segurando o espelho em suas mãos!

Já vi também, nos primeiros meses na Escola de Belas Artes, os olhos dos exímios desenhistas treinados pelas revistas de super-heróis norte-americanos, no primeiro dia de aula com um modelo vivo negro, pequeno, fora dos padrões com os quais estamos acostumados a ver representados, daqueles que exigiriam mais dos nossos olhos na produção do seu desenho, e os produtos finais depois de 30 minutos de observação e riscos no papel, serem bizarros super-heróis na posição que o modelo havia feito. Será possível que ninguém o enxergou? Ou os olhos não são suficientes para VER as coisas?

Eu sou muito distraída quando se tratam de lugares e referências geográficas. Meu mapa seria em branco, e os prédios surgiriam de um dia para o outro, depois que sou obrigada a repará-los. Faço o mesmo caminho em Macaé há 3 meses para chegar em certo ponto, e o prédio da UFRJ só surgiu depois que precisei dobrar a sua exata esquina.

Neste ponto preciso transcrever o que o Augusto Boal diz em seu último livro “A Estética do Oprimido” porque ele diz muito do que me move, enquanto profissional, e ser político:

“... O analfabetismo é usado pelas classes, clãs e castas dominantes como severa arma de isolamento, repressão, opressão e exploração. Mais lamentável é o fato de que também não saibam falar, ver, nem ouvir. Esta é igual, ou pior, forma de analfabetismo: a cega e muda surdez estética. Se aquela proíbe a leitura e a escritura, esta aliena o indivíduo da produção da sua arte e da sua cultura, e do exercício criativo de todas as formas de Pensamento Sensível. Reduz indivíduos, potencialmente criadores, à condição de espectadores...

...Temos que repudiar a ideia de que só com palavras se pensa, pois se pensamos também com sons e imagens, ainda que de forma subliminal, inconsciente, profunda! O pensamento sensível, que produz arte e cultura, é essencial para a libertação dos oprimidos, amplia e aprofunda sua capacidade de conhecer. Só com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis (som e imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia.

* Para que se compreenda com clareza que existem tantas estéticas quantos grupos sociais organizados, comparem estas duas imagens: Jesus com seus apóstolos vestidos com andrajos e com a alegria passional daqueles que sentem que dizem verdades; do outro lado, o Papa, envolto em ouro e ouropéis, no seu papamóvel blindado, cercado de guardas suíços, vestidos pela griffe Michelangelo, cercado pelos seus príncipes, ornados como ele. Jesus e o atual cristianismo têm pouca coisa em comum... Ou vocês acham que esses dois grupos estariam usando a mesma e única estética universal? Ou seriam seus caminhos tão exclusivos dos interesses e propósitos de cada grupo? Para que eu possa começar a acreditar em alguma coisa que ele diga, quero ver o papa quase nu, despojado de artifícios, pregando nas ruas e nos campos. Isso, sua estética não permite; a minha, exige!” [BOAL]

E como fechar um texto sobre a visão sem citar o Saramago em seu livro “Ensaio sobre a Cegueira”? Em algum sentido a visão norteia o coletivo e ajusta os interesses. A ausência dela no livro, revela a realidade. E a intrigante mulher do médico, única personagem na cidade que não perde a visão, do que se trata? Em certo ponto ela é advertida de que se revelar que consegue enxergar, poderia ser morta.

É o que a humanidade reserva aos que vêem. Os que entendem os mecanismos são perigosos. Vide a história de cada mártir. Seu maior instrumento não foram armas ou exércitos, foi a visão.

O perigo para as estruturas opressoras, dominantes, pecaminosas não é o fato dos cidadãos terem olhos. O perigo real é usá-los!


PS. Quero lembrar com doçura algo que ouvi da minha amiga cega, Camila: Enquanto trabalhávamos na exposição sobre o Miles Davis no CCBB em 2011, em uma das baias, separadas por cores, tocava o disco do Miles com mais influência do Blues. A sala era toda azul. Entramos, ouvimos por um tempo, sem que ela soubesse, a pergunta que fiz à Camila foi
-“Pra você, que cor teria esta sala?” no que ela respondeu
“Esta sala tem cor de chuva; de avião quando está no alto do céu”.

Ela leu a cor do som, e tudo ali era mesmo azul.
Os olhos precisam de todo o corpo para enxergar com ele.
Mais azul ainda foi o mar que me veio aos olhos!


sábado, 2 de junho de 2012

Do que roubamos de Deus e dos anjos

Por Osvaldo Luiz Ribeiro, biblista e exegeta.


1. Dos anjos, roubamos os sexos. A coisa é grave. Quando falamos "anjo", duvido que não nos venha à mente aquela coisa medieval, loira, de asas de ganso ou cisne, olhos de cor européia, forma grega... Anjos. Vestem túnicas, nessas representações, mas são... eunucos.

2. Mas não eram assim, antigamente. Gn 6,1-4 - a despeito das "exegeses acomodadoras da tradição" -, conhece uma antiga mitologia de sexo entre "anjos" e mulheres. É uma antiga tradição, que está por trás (sem trocadilhos!) do nascimento de Hércules e, até, de Jesus: os seres divinos - deuses, anjos - podem "conhecer" (em sentido bíblico), as mulheres.

3. Um - agora - apócrifo, Enoque, tomou essa passagem e fez, com ela, um famoso midraxe judaico, explicando, por inflação, criatividade e necessidade que foi aí e então, quando os "anjos" desceram dos céus a deitarem-se com as filhas de Eva, que aproveitaram e lhes ensinaram as "macumbarias".

4. Judas conhece Enoque e o cita com autoridade. Naqueles tempos, os anjos tinham, então, com o que se deitar com mulheres.

5. Pois bem, grande parte da tradição da Igreja castrou esses anjos, talvez para evitar cultos orgiásticos, cuja liturgia era encenada, certamente, pelos "anjos" das igrejas, conhecidos das Cartas de Apocalipse... Ali se emascularam anjos, expulsaram pessoas (gnósticas) e se excluíram livros sagrados ("apócrifos") - refiro-me à parte da crise gnóstica, essa, por trás de Judas.

6. Mas, na Idade Média, o imaginário cristão devolveu genitais aos anjos - e, agora, também às anjas. Íncubos e Súbucos visitavam muitas camas noturnas, provocando suores e gozos nas madrugadas européias, iluminadadas pelas fogueiras, que não eram de São João...

7. Mas, passou. Os anjos de hoje são andróginos, de novo, como o quis a boa prática cristã contra-gnóstica. Exceto aquelas anjinhas de vagina e barriga prenha da Igreja Matriz de Santo Antonio, em Tiradentes, Minas Gerais, impudicas, com as vergonhazinhas, pequenas, também elas, as anjinhas, esculpidas pelos cantos superiores das paredes da nave...

8. E de Deus, o que roubamos? Curiosamente, as duas histórias estão unidas. Antes de os judeus inventarem os demônios, a partir de Gn 6,1-4, seu Deus, Yahweh, podia fazer tanto o bem quanto o mau. Quem tem um Deus assim, que faz o bem e o mau, não precisa de crer em diabos, porque os diabos são explicações para uma fé que pensa que Deus faz apenas o bem, mas não o mau, mas como o mau acontece mais vezes do que o bem, então se precisa de uma explicação - os diabos! - para o mau, já que não pode ser um Deus que só faz o bem...

9. Não se castrou, literalmente, Deus. Alegoricamente, sim: era o Leão de Judá. Agora, o Gatinho de Roma/Wittenberg... Rugia, agora, mia. Isso foi há 2,5 mil anos, em Jerusalém. Corte profundo na alma daquele Deus de abrir barriga de grávidas, e tanto, que Marcião, comparando-o com o Deus de Jesus, negou que fossem o mesmo. Em certo sentido, era. Em certo sentido, não era.

10. E lá se vão, Deus e seus anjos, cada um roubado de uma parte preciosa de sua constituição - um, a capacidade de fazer desgraças e ser, por isso, Todo-Poderoso; os outros, bem, devem estar a chorar até hoje, coitados, eunucos, sendo as mulheres, admitamos, tão interessantes... Quem terá perdido mais? Deus, os anjos... ou as mulheres?

Fonte: Peroratio