quinta-feira, 31 de março de 2011

A vergonha de Deus

Por Nilton Bonder, 10/OUT/2001

O professor ouviu um ruído e foi olhar. No chão estava o Marquinhos filho do vizinho que tinha caído da varanda e sangrava profusamente. Mesmo sendo uma pessoa de idade tomou o menino nos braços e começou a correr desesperado para o Hospital a poucas quadras. No caminho vinha descendo a ladeira uma senhora que, ao vê-lo esbaforido, gritou: "Calma, professor... vai dar tudo certo. Não se apresse tanto. Deus vai ajudar... e o senhor já não tem idade para correr assim com uma criança no colo!". Ela então se aproximou e, em pânico, constatou: "Ai meu Deus, é meu netinho! Corre professor, corre, pelo amor de Deus, corre."

O verdadeiro Deus está na urgência que reconhece no rosto "um netinho", um seu. Até então aparece o deus da idolatria, respaldado muitas vezes pela fé que não enxerga a urgência do outro. A base das religiões bíblicas é o reconhecimento de que o ser humano é a imagem e semelhança de Deus. Não reconhecer esta semelhança seja num executivo do mundo financeiro nova-iorquino, seja num fanático islâmico, seja num negro africano desnutrido, seja num chinês que não parece diferente de outro chinês, é a prova dos nove do sucesso ou falência do establishment religioso (de todas as religiões) de levar a verdadeira mensagem a seus adeptos.

Há vários inimigos invisíveis que estão ficando visíveis nesta crise pela qual passa o mundo. Há o inimigo de uma civilização que nos aliena em relação ao outro. Uma cultura de fobia do outro e de sonharmos com um mundo de privacidade. Uma espécie de des-socialização que nos leva a ser novamente nômades e coletores. Nômades porque podemos estar em qualquer lugar, sem apreço e carinho pelo lugar; e coletores porque não plantamos para o futuro, apenas para o nosso breve futuro pessoal.

E a América não é este mal, apesar de muitos simboliza-la como este mal. Afinal este mal pode estar mais vivo na Arábia Saudita com seus sheiks e monarcas trilionários do que numa Nova Iorque símbolo de integração entre raças, culturas e religiões. O mimado príncipe Bin Laden, que à moda de tantos filhos de nobres e milionários do Ocidente precisa de um hobby para dar sentido a sua pobre existência, é talvez mais Ocidental do que seus seguidores o percebam. Sem deixar de reconhecer que o presidente Bush tem nas mãos o potencial de uma Guerra Santa seja na crise em si ou seja em posturas como as assumidas nas questões de comércio internacional ou questões ambientais do planeta.

Mas o inimigo invisível maior está nas próprias religiões. Não que elas estejam em guerra. Elas nunca estiveram tão aliadas como na atualidade. Elas se compreendem porque funcionam de forma muito semelhante. São elas a maior fonte de doutrinação da juventude, mergulhadas que estão nas ideias de "certo" e "errado". Afinal não foi desta árvore do "Certo e Errado" que comeram no paraíso como pecado maior?

É claro que os fundamentalistas e os fanáticos de cada uma destas tradições são o rosto deste mal, mas as tradições religiosas não realizam Guerras Santas contra esta heresia maior que é não reconhecer a urgência do outro. As tradições religiosas não são proféticas na denúncia de si próprias, no compromisso absoluto com a ética e com uma visão universal. E se o Islã hoje está em evidência, por mérito próprio, não escapa também o judaísmo com o fomento de fundamentalistas-nacionalistas. Não escapa a Igreja com seu corporativismo e ideias subliminares de salvação por uma única porta. Ou o fundamentalismo evangélico que vê Satã por todos os lados, ou em outras palavras, inimigos por todos os lados.

Enquanto as religiões não cerrarem fileiras contra sua própria heresia (esqueça-se a do outro!) elas serão parte do inimigo invisível. E não se trata de encontros ecumênicos e inter-religiosos como um cenário de papelão à frente de bastidores de intolerância e soberba.

O mundo marcha à guerra e não há vergonha maior do que a das religiões. Elas não veem a urgência por que não ajudaram este mundo a compreender que qualquer morte é a de um netinho. Que se prestem hoje no século XXI como pano de fundo para terror e horror é um fracasso inominável, vergonha inocultável.

O século XXI chegou com esta surpreendente novidade: ou percebemos que é do "nosso netinho" que se trata a questão e não de um outro virtual, ou perecemos. Isto porque o futuro será cheio do "outro" ao contrário do que supunham os analistas. Falavam eles de um mundo de computadores, cada um trabalhando em casa, menos horas de trabalho, mais automatização, mais "eu" e menos "os outros" em nossas vidas. Porém o mundo globalizado não é um mundo grande, é um mundo pequeno cheio de gente. O século XXI estará repleto do outro. É um outro cada vez mais numeroso - nunca existiram tantos outros em nenhuma era. E esse outro vive muito - nunca viveram tanto os outros em nenhuma era. É chegado o momento de abandonar o vício da busca de inimigos.

Os inimigos somos nós mesmos. E as religiões que não buscarem este inimigo em si são as religiões idólatras desta nova Era. Não se trata mais de ser Monoteísta, isso é passado. Trata-se de saber como cada uma delas honra este Deus único pelo respeito máximo a seu semelhante. Dizia George Santayana que "O fanatismo consiste no ato de redobrar esforços por conta de se ter esquecido dos objetivos."

As religiões parecem esquecer seu objetivo maior que não é reconhecer Deus apenas como sendo Um, mas cada ser humano, Sua imagem e semelhança, como um ser único. E pelos que morreram, vergonha sobre nós religiosos. E pelos que irão morrer, mais vergonha! E quando estivermos vendo imagens pela televisão onde apareçam crianças ou jovens ensanguentados, olhemos mais de perto - "serão nossos netinhos".

quarta-feira, 23 de março de 2011

Gozamos juntos mas nunca fizemos amor

Por Jeyson Messias Rodrigues

As instituições não sabem fazer amor. Gozam e fazem gozar, mas sem laços afetivos. E sexo casual é muito bom, mas só pra quem não confunde as coisas. Algumas instituições iniciam relações com as melhores intenções e os mais belos discursos. São formalizadas pelos mais bem intencionados líderes. Mas a longo prazo, também estas criarão vida própria e não admitirão qualquer sinal de invasão ao seu espaço.

Note-se a distância entre os ideais reformadores e sua atual prática. Os próprios princípios batistas se tornaram meramente retóricos. Qualquer dia, algum desses engravatados mobiliza uma quadrilha de ovelhas e decide, democraticamente em Assembléia, acabar com a democracia batista. Não duvide! Conforme disse Rubem Alves, os protestantes precisaram daquele discurso de liberdade de crença e expressão naquele momento, depois, o discurso se tornou inconveniente [1].

Note-se a distância entre o próprio movimento de Jesus no primeiro século e o cristianismo, a posteriori. Jesus (reformador judeu e não um cristão, como muitos pensam) nunca excluiu ninguém (nem mesmo Judas) da mesa. Lavou os pés do Outro, lhe ofereceu a outra face, tocou sua lepra. Depois de engaiolar e monopolizar o Espírito Santo, o cristianismo (mais Paulino que evangélico) restringiu a Ceia. E ao Outro, ao invés de água para os pés, ofereceu perseguição, exclusão, cruzadas, intolerância, ódio e rancor.

Não acredito mais na instituição religiosa. Não acredito mais na igreja-instituição. Mas acredito no poder do Espírito que a todos os limites e fronteiras, transcende impetuoso, maravilhoso, soberano, autônomo e belo. Acredito no poder de sua voz aos corações daqueles que nem estão no monte nem no templo. Acredito na voz do Christos reivindicando subversão à ordem tão desigual, injusta e hostil à alteridade.

Mas acho que, de tempos em tempos, alguns cristãos deixam de ser cristãos ao ouvirem e atenderem à não-cristã voz de Cristo. Voz quase silenciada pelo poder do eclesial anticristo, que pôs palavras na boca do Filho do homem, tirando e distorcendo tantas outras; que lhe dicotomizou o discurso; que lhe anglosaxonizou a cultura; que lhe negou o romance erótico, madaleno; que lhe branqueou a pele; desalcoolizou-lhe o vinho; que lhe restringiu a salvação.

Já fui católico, luterano, pentecostal e batista. Já acreditei, fui desapontado e desapontei. Desacreditei de quase tudo. A duras penas, porém, recuperei e guardei a fé. Precisei desacreditar de algumas coisas para conseguir continuar acreditando em outras. Já não quero algumas crenças, já não quero algumas práticas, já não quero algumas posturas, já não quero alguns rótulos. Já não quero mais um monte de coisas.

Diversos sociólogos contemporâneos têm falado sobre como os sujeitos modernos têm se descomprometido com as instituições religiosas: individualização da experiência religiosa, trânsito religioso, secularização, infidelidade identitária etc [2]. Mas essa é somente uma resposta tardia de uma humanidade que cansou dessa relação desigual e encontrou novo amor. O descomprometimento com a religião decorre do descomprometimento da religião. Sempre foi sexo, nada mais.

Recentemente afastado do quadro docente do Seminário Batista de Alagoas, onde lecionava História do Cristianismo, por ser considerado “muito liberal”, me satisfaço com a insatisfação institucional, afinal, eu e a instituição religiosa já gozamos juntos inúmeras vezes, mas nunca fizemos amor.



[1] ALVES, Rubem. Religião e repressão.
[2] BAUMAN, HALL, GIDDENS etc.

sexta-feira, 18 de março de 2011

1926, Appoio moral

Por Paulo Brabo


“Assim como foi pela fraqueza da mulher que Satanaz logrou arruinar a raça, assim outra vez, no fim dos seculos, o mesmo inimigo está fazendo seu esforço derradeiro – pelas mulheres.”

O grande paradoxo do cristianismo é que os mesmos que professam-se seguidores daquele que disse “não julgueis para que não sejais julgados” (Mateus 7:1) mostram-se (na maioria histórica das vezes) os primeiros a emitir os julgamentos mais mesquinhos, preconceituosos, precipitados e injustos – e não acham dificuldade em encontrar outros crentes que se apressem em concordar com esses seus julgamentos.

“Esta ultima manifestação do desequilibrio feminino – de cortar os cabellos – é das peiores e das mais significantes.”

O grande paradoxo do cristianismo é que historicamente a ninguém mais do que os cristãos aplicam-se as críticas e advertências ferozes que Jesus promulgou contra os fariseus, que davam “o dízimo da hortelã, do endro e do cominho”, mas negligenciavam “o mais importante da lei: a justiça, a misericórdia e a fé” (Mateus 23:23) – isto é, preocupavam-se com ninharias ao mesmo tempo em que davam as costas à essência da mensagem: “coavam o mosquito e engoliam o camelo” (Mateus 23:24).

“Não deixa de ser um revolta, uma espécie de Bolchevismo feminino.”

As tentações do cristão não são, aparentemente, as paixões da carne, mas as do espírito: tolerar o erro em si mesmos e condená-lo sem misericórdia nos outros; confundir os sinais da passagem do tempo com sinais dos fins dos tempos; desonrar a memória do seu Mestre recusando-se a aprender de fato com ele; manchar a obra do seu Salvador usurpando o papel que ele mesmo permanece adiando assumir, o de Condenador e Juiz.

Leia o texto completo da carta de 1926 da qual extraí as passagens em destaque acima.

Curioso é que um cristão evangelicamente correto dos dias de hoje fatalmente julgará os argumentos e as conclusões do autor da carta muito rasos, obtusos e inconsistentes à luz da mensagem mais abrangente da Bíblia; ignoro se seremos capazes de avaliar tão rigorosamente e com tamanha lucidez os nossos próprios julgamentos – hoje.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Desiderata*

Por Max Ehrmann; tradução de Marcelo Carahyba

Vá placidamente por entre o barulho e a pressa,
e lembre-se da paz que pode haver no silêncio.

Na medida do possível, sem violar-se,
seja amigável com todas as pessoas.
Fale a sua verdade calma e claramente;
e escute os outros,
mesmo o estúpido e o ignorante;
eles também tem sua história.
Evite pessoas barulhentas e agressivas,
elas são tormento para o espírito.

Se você se comparar a outros,
pode se tomar vaidoso ou amargo;
porque sempre haverá grandiosos e medíocres em relação a você.

Desfrute suas conquistas assim como seus planos.
Mantenha-se interessado em sua própria carreira,
ainda que modesta;
é o que realmente se possui na sorte incerta dos tempos.
Exercite a cautela nos negócios;
porque o mundo é cheio de embustes.
Mas não deixe que isso o torne cego às virtudes que existem;
muitas pessoas lutam por altos ideais;
e por toda parte a vida é cheia de heroísmo.

Seja você mesmo.
Principalmente não finja afeição.
Nem seja cínico sobre o amor;
porque em face à toda aridez e desencantamento
ele é perene como a grama.

Aceite gentilmente o conselho dos anos,
renunciando graciosamente às coisas da juventude.
Cultive a força espiritual que o protegerá no infortúnio inesperado.
Mas não se desespere com perigos imaginários.
Muitos temores nascem da cansaço e da solidão.

Adote uma disciplina sadia,
seja gentil consigo mesmo.
Você é filho do Universo,
não menos que as árvores e as estrelas;
você tem o direito de estar aqui.
E, seja claro ou não para você,
sem dúvida o Universo se desenrola como deveria.

Portanto, esteja em paz com Deus,
seja qual for sua forma de concebê-lo,
e sejam quais forem suas tarefas e aspirações,
na barulhenta confusão da vida mantenha-se em paz com a sua alma.

Com todas as suas falácias, exigências, e sonhos desfeitos,
este é ainda um mundo maravilhoso.
Seja entusiasmado.
Lute para ser feliz.



* Desiderata (do latim: "coisas desejadas" ou "aspirações", plural de desideratum) é uma prosa poética do escritor estadunidense Max Ehrmann (1872-1945), datada de 1927. Aproximadamente em 1959, o Rev. Frederick Kates da Saint Paul's Church, em Baltimore, Maryland, utilizou o poema numa coleção de devocionais que havia compilado para sua congregação com a seguinte nota: "Old Saint Paul's Church, Baltimore A.D. 1692". Nos anos '60, o poema circulou amplamente com a crença de que havia sido escrito por um anônimo em 1692, ano de fundação da igreja, e de que lá fora encontrado. O verso "Muitos temores nascem da cansaço e da solidão" pode ser encontrado na música 'Há Tempos' da extinta banda Legião Urbana. No álbum da banda, 'As Quatro Estações', existe uma nota referenciando a "lenda" do antigo manuscrito da igreja de Baltimore.

Fonte: Acervo pessoal e Wikipédia.

segunda-feira, 14 de março de 2011

O impostor

Por Brennan Manning

O impostor vive com medo. (...) Impostores se preocupam com aceitação e aprovação. Por causa da necessidade sufocante de agradar os outros (...) fazem das pessoas, dos projetos e das causas extensões de si, motivados não pelo compromisso pessoal, mas pelo medo de não corresponder às expectativas das pessoas. (...) Para ser aceito e aprovado, o falso 'eu' anula ou disfarça os sentimentos, tornando impossível a honestidade emocional. A sobrevivência do falso 'eu' gera o desejo compulsivo de apresentar uma imagem de perfeição diante do público, de maneira que todos nos admirem e ninguém nos conheça. A vida do impostor se transforma numa montanha russa de júbilo e depressão.

O falso 'eu' se envolve em experiências externas para dispor de uma fonte pessoal de significado. A busca por dinheiro, poder, glamour, proezas sexuais, reconhecimento e status potencializa a autovalorização e cria a ilusão de sucesso. O impostor é aquilo que ele faz.

Durante muitos anos, o desempenho ministerial era um modo de me esconder de meu verdadeiro 'eu'. Criei uma identidade por meio de sermões, livros e histórias que contava. Raciocinava da seguinte maneira: se a maioria dos cristãos tinha um bom juízo a meu respeito, então não havia nada errado comigo. Quanto mais investia no sucesso ministerial, mais real se tornava o impostor.

O impostor nos predispõe a dar importância àquilo que não é importante de fato, revestindo de falso brilho o que é menos substancial e nos afastando do que é real. O falso 'eu' nos faz viver num mundo de ilusões. O impostor é um mentiroso.

(...) A identidade dos impostores não é resultado apenas de suas conquistas, mas também dos relacionamentos interpessoais. Querem ficar bem com pessoas de prestígio porque isso potencializa o currículo e o senso de valor próprio. (...) A triste ironia é que o impostor não sabe o que é ter intimidade em nenhum relacionamento. Seu narcisismo exclui os outros. Incapaz de intimidade consigo, desconectado dos próprios sentimentos, intuições e percepções, o impostor é insensível aos humores, às necessidades e aos sonhos de outras pessoas. Compartilhar alguma coisa é impossível.

O impostor construiu a vida a partir das conquistas, do sucesso, do ativismo e de atividades autocentradas que geram recompensas e elogios dos outros. James Masterson afirmou:

Faz parte da natureza do falso 'eu' nos impedir de conhecer a verdade sobre nós mesmos, de penetrar nas causas profundas de nossa infelicidade, de nos vermos como realmente somos: vuneráveis, medrosos, apavorados e incapazes de deixar que o 'eu' verdadeiro se exponha.

(...) O impostor tem pavor de ficar sozinho. Ele sabe "que se ficar quieto, por dentro e por fora, descobrirá por si que não é nada. Será deixado sem nada além de sua insignificância, e para o falso 'eu' que afirma ser tudo tal descoberta seria a ruína". (...) O falso 'eu' foge do silêncio e da solidão porque o lembram da morte. O autor Parker Palmer afirmou:

Ficar completamente quieto e inalcançável na solidão são dois sinais de que a vida se foi, enquanto a atividade e a comunicação intensa não apenas indicam vida, como também ajudam a esquecer que nossa vida um dia cessará.

O estilo de vida frenético do impostor não tolera a inspeção da morte porque ela o confronta com a verdade insuportável:

Não há qualquer substância sob suas roupas. Você é oco, e sua estrutura de prazer e ambições não tem base sólida. Nelas, você se torna um objeto. Mas todas estão destinadas, por sua própria contingência, a serem destruídas. E quando elas forem, não sobrará nada, além de nudez e vazio, para mostrar que você é seu próprio erro.

(...) O impostor precisa ser tirado de seu esconderijo, assumido e reconhecido. Ele faz parte de meu ser. Tudo o que é negado não pode ser curado. (...) A honestidade e a disposição de subjulgar o falso 'eu' tira do caminho a armadilha do auto-engano.

A paz reside na aceitação da verdade. Qualquer faceta do 'eu' obscuro que nos recusamos a reconhecer torna-se a inimiga e nos força a assumir posturas defensivas. Como Simon Tugwell escreveu:

E os pedaços descartados de nós rapidamente encarnarão naqueles que nos rodeiam. Nem toda hostilidade é decorrente disso, mas é o principal motivo de nossa incapacidade de competir com outras pessoas, pois elas representam exatamente aqueles elementos que nos recusamos a reconhecer.

Quando confrontamos o egoísmo e a estupidez, conhecemos melhor o impostor e, assim, podemos aceitar nossa pobreza e debilidade (...). Odiar o impostor é, na verdade, odiar-se. O impostor e o 'eu' constituem uma pessoa. Menosprezar o impostor abre espaço para hostilidade, que se manifesta numa irritabilidade generalizada - irritação com aquilo que odiamos em nós mesmos e vemos nos outros. Odiar-se sempre gera algum tipo de comportamento auto-destrutivo. (...) Judas não conseguiu encarar a própria sombra; Pedro conseguiu. Pedro reconheceu o impostor dentro de si; Judas enfureceu-se contra o impostor. "O suicídio não acontece num impulso repentino. É um ato ensaiado durante anos de um padrão de comportamento punitivo inconsciente".

Há anos, Carl Jung escreveu:

A auto-aceitação é a essência do problema moral como um todo e epítome de uma perspectiva integral para a vida. Que dou comida aos pobres, que perdôo um insulto, que amo meu inimigo em nome de Cristo - todas essas são, sem dúvida, grandes virtudes. O que faço para o menor dos meus irmãos, o faço para Cristo. Mas, e se descubro que o menor entre todos eles, o mais pobre de todos os mendigos, o mais pervertido de todos os infratores, o próprio inimigo em pessoa - todos estão dentro de mim, e que eu mesmo preciso das esmolas de minha benevolência; que eu mesmo sou o inimigo que precisa ser amado? E aí? Via de regra, nesse caso, revertemos a atitude cristã. Deixa de ser uma questão de amor ou longaminidade. Dizemos ao irmão dentro de nós: 'Raca'. Condenamos e nos enfurecemos contra nós mesmos. Escondemos isso do mundo; nos recusamos até mesmo a admitir que encontramos esse menor entre os menores dentro de nós.

Fonte: O Impostor Que Vive Em Mim, pp.36-49.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Trechos do livro 'Os Lucros da Religião' (1918)

Por Upton Sinclair

Verme maldito

Na mais significativa das lendas a respeito de Jesus, conta-se que o diabo tomou-o a uma montanha muito alta e mostrou-lhe todos os reinos do mundo num único momento de tempo; e o diabo disse a ele: “Dar-te-ei a ti todo este poder e a sua glória; porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quero”. Jesus, como sabemos, respondeu e disse “Vai-te para trás, Satanás!” E estava sendo sincero: ele se recusaria a ter qualquer coisa em comum com a glória do mundo, com “poder temporal”; ele escolheu a carreira de um agitador revolucionário, e morreu a morte de um perturbador da paz. E por dois ou três séculos a sua igreja seguiu os seus passos, promovendo o seu evangelho proletariado. Os cristãos primitivos tinham “tudo em comum, exceto suas esposas”; viviam à margem da sociedade, escondendo-se em catacumbas desertas, sendo atirados aos leões e fervidos em óleo.

Mas o diabo é um verme sutil; ele não desiste diante da primeira derrota, pois conhece a natureza humana e a intensidade das forças que batalham em seu favor. Ele não conseguiu pegar Jesus, mas voltou para pegar a igreja de Jesus.

Ele veio quando, através do poder da nova ideia revolucionária, a Igreja havia conquistado uma posição de tremenda influência no Império Romano decadente; e o verme sutil assumiu a aparência de ninguém menos do que o próprio Imperador, sugerindo que ele deveria converter-se à nova fé, de modo que a Igreja e ele pudessem trabalhar juntos para a maior glória de Deus. Os bispos e pais da Igreja, cheios de ambição para a sua organização, caíram no estratagema, e Satanás saiu rindo à valer consigo mesmo. Ele tinha conseguido tudo que havia pedido a Jesus trezentos anos antes; tinha conseguido a maior religião do mundo. O quão completo e rápido foi o seu sucesso pode ser julgado pelo fato que cinquenta anos mais tarde encontramos o Imperador Valentiniano vendo-se compelido a publicar um edito limitando as doações das sensibilizadas mulheres das igrejas de Roma.

Daquele tempo em diante o cristianismo tem se mostrado… o principal inimigo do progresso social. Dos dias de Constantino até os dias de Bismarck e Mark Hanna, Cristo e César tem sido um, e a Igreja tem servido de escudo e armadura para o poder econômico predatório. Com apenas uma ressalva digna de nota: a Igreja nunca foi capaz de suprimir por completo a memória de seu fundador proletário. Ela fez o máximo nesse sentido, naturalmente; temos visto os seus acadêmicos distorcendo por completo o sentido das palavras dele, e a Igreja Católica chegou mesmo a manter o uso de uma língua morta, de modo que suas vítimas não pudessem ouvir as palavras de Jesus numa forma que pudessem entender.



Das tais

O fundador do cristianismo era homem especializado em crianças. Ele não tinha medo de ver seus discursos perturbados por elas, e não as considerava supérfluas. “Das tais é o reino dos céus”, ele disse; e sua igreja herdou essa tradição – “apascentai meus cordeirinhos”. Havia crianças na Grã-Bretanha na primeira parte do século XIX, e podemos saber o que era feito delas recorrendo à História Industrial da Inglaterra, de Gibbins:

Algumas vezes traficantes comuns tomavam o lugar dos donos de indústrias e transferiam um certo número de crianças para uma região fabril e ali as mantinham, em algum porão escuro, até que pudessem repassá-las para um dono de moinho que precisasse de mão de obra, o qual então viria e examinaria sua altura, força e habilidades corporais, exatamente como faziam os proprietários de escravos nos mercados da América. Depois disso as crianças estavam simplesmente à mercê dos seus proprietários, nominalmente na qualidade de aprendizes, mas na verdade como meros escravos, sem direito a salário, que não valia à pena sequer alimentar e vestir de forma adequada, pois eram muito baratos e podiam ser facilmente substituídos. Normalmente as autoridades paroquianas providenciavam, a fim de livrar-se dos deficientes mentais, que um idiota fosse assumido pelo proprietário do moinho a cada vinte crianças sadias. O destino desses infelizes deficientes mentais era ainda pior que o dos outros. O segredo de seu destino final nunca foi revelado, mas podemos gerar uma idéia de seus pavorosos sofrimentos pelas tribulações enfrentadas pelas outras vítimas da ganância e da crueldade capitalistas. As horas de trabalho eram limitadas apenas pela exaustão, depois que diversos modos de tortura haviam sido aplicados sem resultado para obrigá-los a continuar trabalhando. As crianças freqüentemente trabalhavam dezesseis horas por dia, dia e noite.

No ano de 1819 foi proposta no Parlamento uma lei que limitava o trabalho de crianças de até nove anos de idade a quatorze horas diárias. Essa pareceria ser uma providência muito razoável, com grande probabilidade de ganhar a aprovação de Cristo; ainda assim a proposta foi violentamente oposta pelos empregadores cristãos, apoiados pelo sacerdócio cristão. Ela interferia na liberdade de contratação e portanto na vontade da Providência; era anátema para uma igreja estabelecida, cuja função era em 1819, como é em 1918 e como era em 1918 a.C., ensinar a origem e a sanção divinas da ordem econômica vigente. “Anu e Baal convocaram-me, ó Hamurabi, adorador dos deuses…” é como começa o código legal mais antigo que chegou até nós, de 2250 a.C., e a cerimônia de coroação da igreja da Inglaterra está fundamentada na mesma tese. O dever de submissão, não apenas ao rei divinamente escolhido, mas ao divinamente escolhido Latifundiário e ao divinamente escolhido Dono de Indústrias, está implícita em cada cerimônia da igreja, e explícita em inúmeros de seus credos. Na litania o povo suplica por mais abundante graça de modo a ouvirem mansamente “a Tua Palavra”; e transcrevo a seguir a “Palavra” na forma que obriga-se as criancinhas a decorarem. Se existe no mundo um sumário mais perfeito da ética escravagista, desconheço-o.

Meu dever para com meu próximo é [...] honrar e obedecer ao Rei e a todos que são colocados em posição de autoridade abaixo dele; submeter-me a todos os meus governantes, professores, pastores espirituais e mestres; conduzir-me de forma subserviente e reverente diante de todos que gozam de padrão social superior ao meu; não cobiçar os bens de outros homens, mas aprender a trabalhar verdadeiramente de forma a merecer meu sustento e cumprir meu dever dentro daquele nível social para o qual agradou a Deus chamar-me.

Fonte: Bacia das Almas => Verme maldito, Das tais

quinta-feira, 10 de março de 2011

Família doa metade de todas as suas posses para caridade

Por Huffington Post. Tradução: Agência Pavanews

Vamos começar assim: sabemos que a decisão de nossa família soa um pouco maluca. Afinal, quantas famílias escutam quando sua filha adolescente insiste em vender sua casa e doar metade do dinheiro para a caridade? Eu admito, nosso projeto parece bobo, impetuoso e talvez até irresponsável.


Mas foi o que fizemos. Um dia, no outono de 2006, estávamos parados em um cruzamento bem próximo de nossa casa em Atlanta. Hanna, nossa filha de 14 anos, notou uma linda Mercedes preta parada à sua direita enquanto um homem miseravelmente vestido pedia comida à sua esquerda. Perceber esse contraste a fez ficar com raiva e depois a incentivou a fazer algo.

Na urgência de Hannah em ajudar a diminuir as disparidades entre o “ter e o não-ter” de nossa sociedade, vendemos a casa de nossos sonhos e mudamos para outra com a metade do tamanho. Passamos também a doar metade dos nossos rendimentos para ajudar pessoas de diferentes partes do planeta.

Agora, três anos e meio depois, estamos eufóricos ao ver os agricultores de Gana que plantavam apenas para sua subsistência transformarem suas vidas. Eles estão saindo da linha de pobreza e alcançando a independência financeira com a ajuda do The Hunger Project [Projeto Fome]. O Hunger é uma ONG de Nova York sem fins lucrativos que ajudamos. Ao mesmo tempo, ficamos maravilhados ao ver como nossa família também mudou.

Há uma pergunta ouvida por nós seguidamente desde que começamos esta jornada: “Entendo que uma garota de 14 anos fique horrorizada com os problemas do mundo e por isso pediu para venderem sua casa… [Normalmente há uma pausa aqui, um velado “Isso pode soar brega”]. Mas, por que vocês, os pais, concordaram fazer isso?”

Minha esposa e eu discutimos essa questão e concluímos que nossas ações são perfeitamente coerente em dois aspectos: o conceito de abundância e a emoção do amor.

Vamos começar com abundância. Durante a vida, é fácil nos encontrarmos olhando o mundo pelas lentes da insuficiência. Por que eu fico sem dinheiro? E se eu não conseguir deixar o suficiente para meus filhos? E se meus colegas tiverem mais coisas do que eu?

Esse tipo de pensamento nos deixa muito enrolados. Eles nos levam a desenvolver uma mentalidade acumulativa – a crença de que poderemos perder tudo aquilo de que não guardamos. Talvez não agora, mas em algum momento sentiremos falta. São o centro de campanhas publicitárias que distorcem a realidade. Lembro-me de um famoso anúncio de uma loja de diamantes: “Ela já sabe que você a ama. Agora todos os outros também saberão”. Será?

Perdemos a noção do que realmente nos faz feliz, substituindo amor pela comunidade e pelos relacionamentos por amor a coisas. Nossa família também estava acostumada a acumular bens, desde carros modernos até a casa dos nossos sonhos, sempre crendo que precisávamos de mais coisas novas para completar nossa vida. Uma mentalidade competitiva, mas de insuficiência, tentando nos equiparar às famílias dos vizinhos de nossa rua, de nosso bairro e assim por diante.

No entanto, o pedido de Hannah paralisou a família naquele dia em 2006, nos forçando a reexaminar nossas motivações e decisões. Começamos a imaginar o quanto era o suficiente para nós. Do que realmente precisávamos? As respostas nos sacudiram. Estávamos cheios de dádivas. Mas Hannah pediu a coisa mais valiosa que tínhamos: nossa casa. Ela era um símbolo de nossa abundância, não de escassez. O mesmo não valia para todo o resto? Nosso tempo, nosso dinheiro, nossas posses. Nós tínhamos muito!

Desde aquele momento, o quanto mais examinamos essa vida abundante, mais compreendemos que todos têm mais do que suficiente em algum aspecto de sua vida. Você passa 6 horas por semana numa rede social como o Facebook? Corte isso pela metade e terá 3 horas para ajudar em uma casa de repouso ou limpar um parque em sua vizinhança. Comer fora 4 vezes por semana? Corte pela metade e invista o que economizou em um sopão para pessoas carentes. Se possível ajude a servir as refeições. Tenha uma vida de abundância, não de escassez.

Isso nos leva a pensar sobre o amor. Como disse antes, vivemos em uma cultura em que amor e consumismo estão entrelaçadas. Amamos nosso carro, amamos nossa TV nova. Amor significa nunca precisar dizer que sente muito não poder comprar para seu filho aquilo que ele queria.

Nossa família estava no centro da tempestade. Se você ama seus filhos, compra para eles aulas de dança, roupas novas, uma bicicleta reluzente. Em nosso caso, compramos a casa de nossos sonhos como expressão subconsciente de nosso amor. Aquela casa espaçosa ofereceria todo o espaço necessário para nossos filhos trazerem seus amigos e talvez até se exibirem um pouco.

Mas algo engraçado aconteceu. Em nossa grande casa, paramos de nos comunicar. Ficávamos espalhados em diferentes lugares, fisicamente e espiritualmente longe uns dos outros. A casa começou a enfraquecer nosso amor, ou pelo menos nossa habilidade de expressar esse amor.

Então, quando nossa filha nos instigou a vendê-la, estava nos empurrando para restaurar nossa comunicação, nossa conexão, nosso amor familiar. Em nossa nova e pequena “meia” casa, vivemos uns com os outros e não mais apenas perto uns dos outros. Interagimos mais, nos empenhamos mais, conversamos mais, debatemos mais, nos tocamos mais e amamos mais.

E mais uma coisa: com o dinheiro que ganhamos com a venda da grande casa, pudemos ajudar a gerar uma nova fonte de esperança para mais de 30.000 pessoas em Gana. É bom saber que todos compartilhamos o planeta e agora essas pessoas acordam pela manhã sabendo que podem oferecer mais oportunidades para seu filhos e netos.

Isso vale mais que o preço da casa.

*Kevin Salwen escreveu junto com sua filha Hannah, The Power of Half: One Family’s Decision to Stop Taking and Start Giving Back [O Poder da Metade: a decisão de uma família em parar de adquirir e começar a dar]. A obra ainda é inédita no Brasil.

Fonte: Pavablog

quarta-feira, 9 de março de 2011

Carta de um prisioneiro de Guantánamo

Por Jumah Al-Dossari, 11/01/2007
Base Naval Americana da Baía de Guantánamo, Cuba


Estou escrevendo na escuridão do campo de detenção americano de Guantánamo com a esperança de que eu consiga fazer com que nossas vozes sejam ouvidas pelo mundo. Minha mãos tremem enquanto seguro a caneta.

Em janeiro de 2002, fui apanhado no Paquistão, vendado, acorrentado, drogado e despachado em um avião para Cuba. Quando descemos em Guantánamo, não sabíamos onde estávamos. Eles nos levaram para o Campo Raio – X e nos trancaram em jaulas com apenas dois baldes, um vazio e outro cheio de d’água. Fomos instruídos a urinar em um deles e a nos lavarmos com o outro.

Em Guantánamo, soldados me agrediram, me colocaram em confinamento solitário, ameaçaram matar a mim e a minha filha e me disseram que eu iria passar o resto da minha vida em Cuba. Eles me privaram de sono, me forçaram a ouvir música em volume extremamente alto e iluminaram meu rosto com luzes fortíssimas. Eles me mantiveram em salas geladas durante horas, sem comida, água ou o direito de ir ao banheiro ou me limpar antes das minhas orações. Eles me embrulharam na bandeira israelense e me disseram que está havendo uma guerra santa da estrela de Davi e da Cruz contra a Lua Crescente. Eles me bateram até eu perder a consciência.

O que escrevo aqui não é fruto da minha imaginação ou algo ditado pela minha insanidade. São fatos testemunhados por outros detentos, representantes da Cruz Vermelha, interrogadores e tradutores. Durante meus primeiros anos em Guantánamo fui interrogado muitas vezes. Meus interrogadores me disseram que queriam que eu confessasse ser da Al-Qaeda e que eu estava envolvido de alguma forma com os ataques terroristas contra os Estados Unidos. Disse que não tenho conexão alguma com nada disso. Não sou um membro da Al-Qaeda. Nunca encorajei ninguém a lutar pela Al-Qaeda. Osama bin Laden e a Al-Qaeda não fizeram nada além de matar e denegrir uma religião. Nunca lutei ou carreguei uma arma comigo. Gosto dos Estados Unidos e não sou um inimigo. Já morei nos Estados Unidos e quis me tornar um cidadão americano. Sei que os soldados que fizeram mal a mim representam eles mesmo, e não os Estados Unidos. E eu tenho de dizer que nem todos os soldados americanos em Cuba nos maltrataram ou torturaram. Há soldados que nos tratam de forma humana. Alguns deles até choram quando nos vêem nessas situações. Uma vez, no Campo Delta, um soldado pediu desculpas a mim e me ofereceu chocolate quente e biscoitos. Quando agradeci, ele disse: “ Eu não preciso que você agradeça a mim”. Escrevo isso para que os leitores não pensem que acuso todos os americanos.

Mas, por que, depois de cinco anos, não há conclusões a respeito da situação em Guantánamo? Por quanto tempo pais, mães, esposas, irmãos e filhos irão chorar pelos seus entes queridos aprisionados? Por quanto tempo minha filha terá que perguntar quando irei voltar? As respostas só poderão ser encontradas entre as pessoas justas na América.

Eu prefiro morrer a permanecer aqui para sempre. Já tentei cometer suicídio várias vezes. O propósito de Guantánamo é destruir pessoas, e eu fui destruído. Não tenho esperanças, porque nossas vozes não são ouvidas aqui das profundezas do campo de detenção.

Se eu morrer, por favor lembrem-se de que houve um ser humano chamado Jumah em Guantánamo, cujas crenças, dignidade e humanidade foram abusadas. Por favor, lembre-se de que há centenas de detentos em Guantánamo que sofrem as mesmas coisas. Eles não são acusados de cometer crimes. Eles não foram acusados de praticar nenhuma ação contra os Estados Unidos.

Por favor, mostrem minhas cartas ao mundo. Deixem o mundo lê-las. Deixem o mundo conhecer a agonia dos detentos em Cuba.

Fonte: Revista Galileu - Abril/2007 - Nº189

sábado, 5 de março de 2011

As Variedades da Experiência Capitalista

Por Paulo Brabo

A fim de manter a sua supremacia por um período significativo de tempo, um sistema religioso precisa sustentar valores e idéias que parecem evidentes por si mesmos à maior parte dos membros de uma sociedade. As principais idéias de um sistema religioso têm de ser naturalmente transferíveis às novas gerações, sem que precisem ser ensinadas diretamente; os desvios da norma, os hereges, devem por sua vez ficar evidentes e ser excluídos por um mecanismo instintivo de rejeição logo que se manifestam.

Há pelo menos três séculos o cristianismo como sistema religioso formal da civilização ocidental foi substituído pela crença universal no capitalismo. O capitalismo (leia-se, e em inglês, way of life) provou-se por todos os critérios o sistema de crenças mais bem sucedido da história.

Isso porque, como qualquer muçulmano pode facilmente apontar, o capitalismo é uma religião como qualquer outra – apenas mais enraizada e muito mais difícil de converter. Embora a história do sucesso do cristianismo e do capitalismo ocidental andem até certo ponto de mãos dadas, os sistemas de segurança e multiplicação do capitalismo como sistema de fé são infinitamente mais estanques e bem amarrados do que os do cristianismo jamais foram.

Alguns valores subjacentes ao cristianismo (como, digamos, a ênfase na humildade e no sacrifício pessoal) nunca tiveram apelo diante do cidadão comum como as seduções embutidas no capitalismo.

Os mecanismos de defesa e autopropagação das duas religiões, no entanto, são muitos semelhantes e denunciam uma origem comum. Durante o período de supremacia do cristianismo institucional qualquer cidadão que ousasse propor uma alternativa ao cristianismo ortodoxo era imediatamente taxado, condenado e convenientemente eliminado da discussão como herege; nos dias de hoje, qualquer cidadão que ouse propor uma alternativa ao capitalismo ortodoxo (como fazem, por exemplo, os proponentes do software livre e os que advogam leis menos restritivas de copyright) é imediatamente taxado, condenado e convenientemente eliminado da discussão como comunista.

Já foi dito e comprovado que em outro tempo as esperanças instiladas pelo cristianismo permitiram que ele servisse como instrumento de dominação e controle por parte das classes superiores. O homem comum que acreditava na felicidade numa vida futura não precisava revoltar-se contra as injustiças desta vida. Enquanto o cristianismo era a religião das multidões, diz esse raciocínio, as multidões eram fáceis de controlar e de apaziguar: diante de qualquer insatisfação com uma injustiça presente, bastava acenar com a garantia da justiça eterna.

A verdade é que, com esperanças ainda mais artificiais (e garantias pelo menos tão irreais), o capitalismo alcançou sucesso ainda maior como religião. A diferença de ênfase do capitalismo é na verdade sutil, mas como sistema de domínio da população sua eficácia é infinitamente maior. O homem comum dos dias de hoje não precisa revoltar-se contra as injustiças desta vida porque ele acredita que o sistema é livre e eficiente, e nada impede que ele ascenda na escala social e econômica ainda nesta vida. Esta promessa de mobilidade social, com que lhe acena a sociedade “livre”, é a sua fé inviolável. Não importa quão poucos sejam os que de fato ascendem socialmente como resultado da livre iniciativa (talvez um ainda menor número dos que iam para o céu), mas para a permanência dos sistema basta que a ilusão persista.

As multidões hoje em dia são fáceis de controlar e de apaziguar porque, diante de qualquer insatisfação com uma injustiça presente, basta acenar com a liberdade e a justiça inerentes ao sistema: “se você não chegou ate onde eu cheguei”, dizem em silêncio as classes dominantes, “é porque não tem a mesma garra e a mesma competência que eu. Você poderia ter se esforçado mais, e na verdade ainda pode: a culpa pelo seu fracasso é sua e somente sua”.

Segundo o cristianismo, o mundo é justo porque qualquer pessoa, desde que realmente queira, pode alcançar o paraíso na eternidade. Segundo o capitalismo, o mundo é justo porque qualquer pessoa, desde que realmente queira, pode ficar rica. Acenando com promessas diferentes, os dois sistemas produzem resultado semelhante e que tende a manter o estado de coisas. No final das contas, quem crê nas promessas do capitalismo é pelo menos tão manipulável e conformado com a sua sorte quanto o mais devoto cristão.

O menor sucesso do capitalismo não foi ter apagado do próprio cristianismo qualquer traço de originalidade. Não importa que o Novo Testamento defenda, de uma a outra capa, a humildade, o altruísmo e o comedimento; não importa o “bem-aventurados os pobres” e o “ai dos ricos” de Jesus. O alvo de qualquer cristão ocidental contemporâneo está sincronizado com o capitalismo, não com a ousada mensagem de contracultura que permeia o Novo Testamento.

Para verificar o sucesso definitivo do capitalismo como sistema de crenças basta ver que até mesmo as seitas cristãs alteraram as suas ênfases ideológicas a partir do sucesso irresistível do seu antagonista. Hoje em dia nenhum sistema religioso cristão bem-sucedido ousa acenar com promessas para a vida futura. Para serem ouvidos, incansáveis mensageiros evangélicos despejam em rádios e programas de televisão as mesmas esperanças de prosperidade financeira e pessoal oferecidas pelo capitalismo.

Uma felicidade que não seja para esta vida não interessa aparentemente a ninguém, mas a felicidade prometida para esta vida pode controlar quem quer que seja.



O título deste artigo é chupado do instigante The Varieties Of Religious Experience – As Variedades da Experiência Religiosa, do psicólogo americano William James, publicado pela primeira vez em 1902. Para fins do seu estudo de “religião natural”, James definia religião como “os sentimentos, atitudes e experiências dos indivíduos na sua esfera privada, no que diz respeito à posição em que eles avaliam-se estar em relação ao que quer que seja que considerem o divino”.

James ficaria surpreendido com o rumo que o seu campo de estudo assumiu nas últimas décadas. O divino hoje em dia é o capital – o nirvana, o crédito ilimitado.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Da Servidão Moderna

Por Jean-François Brient, tradução de Elisa Gerbenia Quadros

Capítulo I: Epigrafo

“Meu otimismo está baseado na certeza que esta civilização vai desmoronar. Meu pessimismo em tudo aquilo que ela faz para arrastar-nos em sua queda.”


la terre
 

Capítulo II: A servidão voluntária

“Que época terrível esta, onde idiotas dirigem cegos.”
William Shakespeare


foule

A servidão moderna é uma escravidão voluntária, aceita por essa multidão de escravos que se arrastam pela face da terra. Eles mesmos compram as mercadorias que lhes escravizam cada vez mais. Eles mesmos correm atrás de um trabalho cada vez mais alienante, que lhes é dado generosamente se estão suficientemente domados. Eles mesmos escolhem os amos a quem deverão servir. Para que essa tragédia absurda possa ter sucedido, foi preciso tirar desta classe, a capacidade de se conscientizar sobre a exploração e a alienação da qual são vítimas. Eis então a estranha modernidade da época atual. Ao contrário dos escravos da Antiguidade, aos servos da Idade Média e aos operários das primeiras revoluções industriais, estamos hoje frente a uma classe totalmente escrava, que  no entanto não se dá conta disso ou melhor ainda, que não quer enxergar. Eles não conhecem a rebelião, que deveria ser a única reação legítima dos explorados. Aceitam sem discutir a vida lamentável que foi planificada para eles. A renúncia e a resignação são a fonte de sua desgraça.

Eis então o pesadelo dos escravos modernos que só aspiram a deixar-se levar pela dança macabra do sistema de alienação.

A opressão se moderniza estendendo-se por todas as partes, as formas de mistificação que permitem ocultar nossa condição de escravos. Mostrar a realidade tal qual é na verdade e não tal como mostra o poder constitui a mais autentica subversão. Somente a verdade é revolucionária.


Capítulo III: A organização territorial e o habitat

“O urbanismo é a tomada do meio ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver-se em sua lógica de dominação absoluta, refaz a totalidade do espaço como seu próprio cenário.”

Guy Debord, A sociedade do espetáculo



immeubles


À medida que o homem constrói seu mundo com a força do trabalho alienado, o cenário deste mundo se converte na prisão onde terão que viver. Um mundo sórdido, sem sabor, nem odor, que leva consigo a miséria do modo de produção dominante.

Este cenário está em eterna construção. Nada nele é estável. A remodelação permanente do espaço que nos envolve se justifica pela amnésia generalizada e pela insegurança na qual devem viver seus habitantes. Trata-se de refazer tudo a imagem do sistema: o mundo se torna cada dia mais sujo e barulhento, como uma usina.

Cada parcela deste mundo é propriedade de um Estado ou de um particular. Este roubo social que é a apropriação exclusiva do solo, se encontra materializada na onipresença de muros, barreiras, e fronteiras... São as marcas visíveis desta separação que invade tudo.

Mas ao mesmo tempo, a unificação do espaço, de acordo com os interesses da cultura mercante, é o grande objetivo da nossa triste época. O mundo deve transformar-se em uma imensa autopista, racionalizada ao extremo, para facilitar o transporte das mercadorias. Todo obstáculo, natural ou humano, deve ser destruído.

O ambiente onde se aglomera esta massa servil é o fiel reflexo de sua vida: se assemelha a jaulas, a prisões, a cavernas. Porém contrariamente aos escravos e aos prisioneiros, o explorado dos tempos modernos deve pagar por sua jaula.


“Porque não é o homem mas o mundo que se tornou um anormal.”
Antonin Artaud

Capítulo IV: A mercadoria

“A primeira vista, a mercadoria parece uma coisa simples, trivial, evidente, porém, analisando-a, vê-se complicada, dotada de sutilezas metafísicas e discussões teológicas.”

O Capital, Karl Marx, capítulo I, livro 4.


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E é neste lugar estreito e lúgubre, onde o escravo moderno acumula as novas mercadorias que deveriam, segundo as mensagens publicitárias onipresentes, trazer-lhe a felicidade e a plenitude. Porém quanto mais acumula mercadorias, mais ele se afasta da oportunidade de ser feliz.

“Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?
                    Marcos 8:36

A mercadoria, ideológica por essência, despoja de seu trabalho aquele que a produz e despoja de sua vida aquele que a consume. No sistema econômico dominante, já não é mais a demanda que condiciona a oferta, mas a oferta que determina a demanda. Então é assim que de maneira periódica, surgem novas necessidades que são rapidamente consideradas como vitais para a maioria da população: primeiro foi o radio, depois o carro, a televisão, o computador e agora o telefone celular.

Todas estas mercadorias, distribuídas massivamente em um curto lapso de tempo, modificam profundamente as relações humanas: servem por um lado para isolar os homens um pouco mais de seu semelhante e por outro a difundir as mensagens dominantes do sistema. As coisas que se possuem acabam por possuir-nos.


 Capítulo V: A Alimentação

“O que vem a ser alimento para um é veneno para o outro.”
Paracelso


nourriture
Porém é quando se alimenta que o escravo moderno ilustra melhor o estado de decadência em que se encontra. Dispondo de um tempo cada vez mais limitado para preparar a comida que ingurgita, ele se vê obrigado a engolir rápido o que a indústria agroquímica produz, errando pelos supermercados à procura dos ersatzes que a sociedade da falsa abundância consenti em dar-lhe. Ai ainda, só lhe resta a ilusão da escolha. A abundância dos produtos alimentícios apenas dissimula sua degradação e sua falsificação. Não são mais que organismos geneticamente modificados, uma mistura de colorantes e conservantes, de pesticidas, de hormônios e de outras tantas invenções da modernidade. O prazer imediato é a regra do modo de alimentação dominante, também é a regra de todas as formas de consumo. E as conseqüências que ilustram esta forma de alimentação se vêem em todas as partes.

Mas é frente a indigência da maioria que o homem ocidental goza de sua posição e de seu consumismo frenético. Em vista disso, a miséria está em todos os lados onde reina a sociedade totalitária mercante. A escassez é o reverso da moeda da falsa abundância. E num sistema que promove a desigualdade como critério de progresso, mesmo se a produção agro-química é suficiente para alimentar a totalidade da população mundial, a fome nunca deverá desaparecer. 

"Estão convencidos de que o homem, espécie pecadora por excelência, domina a criação. Como  se todas as outras criaturas tivessem sido criadas apenas para servir-lhes a comida, a roupa, para serem martirizadas e exterminadas.” 
Isaac Bashevis Singer

A outra conseqüência da falsa abundância alimentícia é a generalização das usinas de concentração e de exterminação massiva e bárbara das espécies que servem de alimento aos escravos. Esta é a real essência do modo de produção dominante. A vida e a humanidade não resistem ante o desejo de proveito de certos indivíduos.


Capítulo VI: A destruição do meio ambiente

«Que triste é pensar que a Natureza fala e que a espécie humana não a escuta»
Victor Hugo


puits de petrole en feu


E a espoliação dos recursos do planeta, a abundante produção de energia ou de mercadorias, o lixo e os resíduos do consumo ostentoso, hipotecam a possibilidade de sobrevivência de nossa Terra e das espécies que nela habitam. Porém para deixar livre curso ao capitalismo selvagem, o crescimento econômico nunca deve parar. É preciso produzir, produzir e reproduzir mais ainda.

E são os mesmo poluidores que se apresentam hoje como salvadores potenciais do planeta. Estes imbecis da indústria do espetáculo patrocinados pelas empresas multinacionais tentam convencer-nos de que uma simples mudança em nossos hábitos seria suficiente para salvar o planeta de um desastre.  E enquanto nos culpam, continuam poluindo sem cessar, nosso meio ambiente e nosso espírito. Essas pobres teses pseudo-ecológicas são repetidas pelos políticos corruptos em seus slogans publicitários. Porém nunca propõem uma mudança radical no sistema de produção. Trata-se, como sempre, de mudar alguns detalhes para que tudo fique como antes.

Capítulo VII: O trabalho

Trabalho, do latin Tripalium, três paus, instrumento de tortura.


horloge


Mas para entrar na ronda do consumo frenético, é necessário ter dinheiro e para conseguir dinheiro, é preciso trabalhar, ou  seja vender-se. O sistema dominante fez do trabalho seu principal valor. E os escravos devem trabalhar mais e mais para pagar a crédito sua vida miserável. Eles estão esgotados de tanto trabalhar, perdem a maior parte de sua energia e têm que suportar as piores humilhações. Passam toda sua vida realizando uma atividade extenuante e insidiosa que é proveitosa apenas para alguns.

A invenção do desemprego moderno tem como objetivo assustar-los e fazê-los agradecer sem parar a generosidade do poder que se mostra tão generoso com eles. Que fariam sem essa tortura que é o trabalho? E são essas atividades alienantes que são apresentadas como libertadoras. Que mesquinhez e que miséria!

Sempre apressados pelo cronômetro ou pela chibata, cada gesto dos escravos é calculado afin de aumentar a produtividade. A organização científica do trabalho constitui a real essência da desapropriação dos trabalhadores, seja do fruto de seu trabalho, mas também do tempo que eles passam na produção automática das mercadorias ou dos serviços. O papel do trabalhador se confunde com o da máquina nas usinas, com o do computador nas oficinas. O tempo pago não volta mais.

Assim, a cada trabalhador é atribuído um trabalho repetitivo, seja ele intelectual ou físico. Ele é um especialista em seu domínio de produção. Essa especialização encontra-se na escala do planeta, no âmbito da divisão internacional do trabalho. Concebe-se em Ocidente, se produz na Ásia, se morre na África.


Capítulo VIII: A colonização de todos os setores da vida

“É o homem inteiro que é condicionado ao comportamento produtivo pela organização do trabalho, e fora da fábrica ele conserva a mesma pele e a mesma cabeça.”

Christophe Dejours


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O escravo moderno teria sido capaz de se contentar de sua servidão ao trabalho, mas à medida que o sistema de produção coloniza todos os setores da vida, o dominado perde seu tempo com lazeres, com diversões e férias organizadas. Em nenhum momento de seu cotidiano, ele foge da influência do sistema que faz parte de cada instante de sua vida. É um escravo a tempo integral.


Capíulo IX: A medicina mercantil

"A medicina faz-nos morrer mais...”
Plutarco


laboratoire


A origem dos males do escravo moderno está na degradação generalizada de seu ambiente, do ar que respira, e da comida que ele consome; o stress provocado pelas suas condições de trabalho e pelo conjunto de sua vida social.

Sua condição subserviente é um mal que nunca encontrará remédio. Somente a total liberação da condição na qual ele se encontra, pode permitir ao escravo moderno se liberar de seus sofrimentos.

A medicina ocidental só conhece um remédio contra os males dos quais sofrem os escravos modernos: a mutilação. É à base de cirurgias, de antibiótico ou de quimioterapia que se trata os pacientes da medicina mercantil. Nunca se ataca a origem do mal, senão que a suas conseqüências, pelo motivo de que esta busca da origem do mal nos conduziria inevitavelmente à condenação fatal da organização social em toda sua totalidade.

Assim como ele transformou todos os detalhes de nosso mundo em simples mercadoria, o sistema atual fez de nosso corpo uma mercadoria, um objeto de estudo e de experiências para os pseudo-aprendizes de medicina mercantil e para a biologia molecular. Os donos do mundo já estão prontos para patentear os seres vivos.

A seqüencial completa do ADN do genoma humano é o ponto de partida de uma nova estratégia posta em ação pelo poder. A descodificação genética não tem outro objetivo que o de amplificar consideravelmente as formas de dominação e de controle.

Depois de tudo, nosso corpo também não nos pertence.

Capítulo X: A obediência como segunda natureza

“De tanto obedecer, adquirimos reflexos de submissão.”

Anônimo

rat de laboratoire
O melhor de sua vida foge entre seus dedos, mas ele prossegue assim, pois já está acostumado a sempre obedecer. A obediência se tornou sua segunda natureza. Ele obedece sem saber por qual razão, simplesmente porque ele sabe que deve obedecer. Obedecer, produzir e consumir, eis ai o trítico que domina sua vida. Obedece-se aos pais, aos professores, aos patrões, aos proprietários, aos comerciantes, obedecem-se também as leis, as forças da ordem e a todos os tipos de poderes, pois ele não sabe fazer outra coisa. Não existe algo que lhe dê mais medo que a desobediência, já que desobedecer, aventurar, mudar, é muito arriscado. Assim como uma criança que perde de vista seus pais, o escravo moderno se sente perdido sem o poder que o criou. Então ele continua obedecendo.

É o medo que nos fez escravos e que nos mantêm nesta condição. Baixamos a cabeça frente aos donos do mundo, aceitamos esta vida de humilhação e de miséria somente por medo.

No entanto, dispomos da força numérica frente a esta minoria que governa. A força deles não sai de seus policiais, mas de nosso consentimento. Justificamos nossa covardia diante do enfrentamento legítimo contra as forças que nos oprime com um discurso cheio de humanismo moralizador. A rejeição da violência revolucionária está ancorada nos espíritos daqueles que se opõem ao nome dos valores que esse mesmo sistema nos ensinou.

Porém, quando se trata de conservar sua hegemonia, o poder não hesita em se servir da violência.

Capítulo XI: A repressão e a violência

“Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é também a prisão.”
Henry David Thoreau, A desobediência civil


 foule 1984

No entanto, ainda existem indivíduos que escapam ao controle das consciências, mas estão sob vigilância. Todo ato de rebelião ou de resistência está de fato assimilada a uma atividade desviada ou terrorista. A liberdade só existe para aqueles que defendem os imperativos mercantis. A oposição real ao sistema dominante, infelizmente, é totalmente clandestino. Para estes opositores, a repressão é a regra em uso. E o silêncio da maioria dos escravos frente a essa repressão está justificado na aspiração mediática e política que nega o conflito existente na sociedade atual. 


Capítulo XII: o dinheiro

“O que outrora se fazia “por amor a Deus”, hoje se faz por amor do dinheiro, isto é, daquilo que hoje confere o sentimento de poder mais elevado e a boa consciência.”

Aurora, Nietzsche


billet

Como todos os seres oprimidos da historia, o escravo moderno precisa de seu misticismo e de seu deus para anestesiar o mal que lhe atormenta e o sofrimento que o sufoca. Mas este novo deus, a quem entregou sua alma, não é nada mais que nada. Um pedaço de papel, um número que apenas tem sentido porque todo mundo decidiu dar-lhe. É em nome desse novo deus que ele estuda, que ele trabalha, que ele luta e se vende. É em nome desse novo deus que abandonou seus valores e está disposto a fazer qualquer coisa. Ele acredita que quanto mais tem dinheiro mais se libertará dos problemas dentro dos quais ele está aprisionado.  Como se a possessão andasse de mãos dadas com a liberdade. A liberação é uma ascese que provém do domínio de si mesmo; um desejo e uma vontade de atuar. Está no ser e não no ter. Porém é preciso decidir-se a não mais servir, nem obedecer. É preciso também romper com esse hábito que, ao parecer, ninguém ousa recriminar.

Capitulo XIII: Não há alternativa na organização social dominante


Acta est fabula
(a peça está representada)


horloge

Ora, escravo moderno está convencido de que não existe alternativa na organização do mundo atual. Ele se resignou a esta vida porque pensa que não pode haver outra. E é ai mesmo que se encontra a força da dominação presente: entreter a ilusão desse sistema que colonizou toda a face da Terra é o fim da história. Convenceu a classe dominada que adaptar-se a sua ideologia é como adaptar-se ao mundo tal qual se mostra e como sempre foi. Sonhar com outro mundo se tornou um crime criticado unanimemente pelos meios de comunicação e os poderes públicos. O criminoso é na realidade aquele que contribui, consciente ou não, na demência da organização social dominante. Não existe loucura maior que a do sistema atual.


Capítulo XIV: A imagem

E, se não, fica sabendo ó rei, que não serviremos a teus deuses nem adoraremos a estátua de ouro que levantaste.

Antigo Testamento, Daniel 3:18


 panneaux

Frente à devastação do mundo real, é preciso que o sistema atual colonize a consciência dos escravos. É por isso que no sistema dominante, as forças de repressão são precedidas pela dissuasão, que desde a infância, realiza sua obra de formação de escravos. Eles devem esquecer-se de sua condição servil, de sua prisão, e de sua vida miserável. Basta olhar essa multidão hipnotizada frente as telas que acompanham sua vida cotidiana. Eles enganam sua insatisfação permanente com o reflexo manipulado de uma vida sonhada, feita de dinheiro, de glória e de aventura. Mas seus sonhos são tão lamentáveis como sua vida miserável.

Existem imagens para todos e por todos os lados. Essas imagens levam consigo a mensagem ideológica da sociedade moderna e serve de instrumento de unificação e de propaganda. Vão crescendo à medida que o homem é desapropriado de seu mundo e de sua vida.

A criança é a primeira vítima destas imagens, pois se trata de sufocar a liberdade desde o berço. É necessário tornar-los estúpidos e tirar-lhes toda capacidade de reflexão e de crítica. Tudo isso se faz, evidentemente, com a cumplicidade desconcertante dos pais que não buscam se quer resistir frente à força imponente de todos os meios modernos de comunicação. Eles mesmos compram todas as mercadorias necessárias para escravizar sua progenitura. Desapropriam-se da educação de seus filhos e deixam que o sistema alienador e medíocre, se encarregue dela.

Existem imagens para todas as idades e para todas as classes sociais. Os escravos modernos confundem essas imagens com cultura e, às vezes, com arte. Recorrem-se aos instintos mais baixos para vender qualquer mercadoria. E, é a mulher duplamente escrava da sociedade atual, que paga o preço mais alto. Ela é apresentada como simples objeto de consumo. A revolta foi também transformada em uma imagem que se vende para melhor destruir seu potencial subversivo. A imagem ainda é, até hoje, a forma de comunicação mais direta e mais eficaz: ela cria modelos, aliena as massas, menti, e promove frustrações. Difundi-se a ideologia mercantil pela imagem, pois o objetivo continua sendo o mesmo: vender, modelos de vida ou produtos, comportamentos ou mercadorias. Vender é o único que importa. 


Capítulo XV: A diversão

“A televisão aliena aos que a vêm, e não aos que a fazem.”

Patrick Poivre d’Arvor


public télévision

Estas pobres criaturas se divertem, mas esse divertimento só serve para distrair os mesmos do verdadeiro mal que lhes afeta. Deixaram que fizessem de suas vidas qualquer coisa e fingem sentirem-se orgulhosos por isso. Tentam transmitir uma satisfação, mas ninguém acredita. Não conseguem se quer enganar-se a si mesmos quando se deparam com reflexo frio do espelho da vida. Assim perdem tempo com estúpidos que lhes fazem rir e cantar, sonhar ou chorar.

Através do esporte midiatizado se representa o êxito e o fracasso, os esforços e as vitórias, que os escravos modernos deixaram de viver em seu cotidiano. Sua insatisfação lhe incita a viver por procuração frente ao aparelho de televisão. Assim como os imperadores da Roma antiga compravam a submissão do povo com pão e jogos, hoje em dia é com diversões e consumo do vazio que se compra o silêncio dos escravos.

Capítulo XVI: A linguagem

“Nós acreditamos que dominamos as palavras, mas são as palavras que nos dominam.”

Alain Rey


 bouche vendetta

O controle das consciências passa essencialmente pela utilização viciada da linguagem utilizada pela classe economicamente e socialmente dominante. Sendo o detentor de todos os meios de comunicação, o poder difusa a ideologia mercantil através da definição petrificada, parcial e falsa que ele dá das palavras.

As palavras são apresentadas como neutras e sua definição como evidente. Porém estando sob controle do poder, a linguagem designa sempre algo muito diferente da vida real.  É antes de tudo uma linguagem de resignação e impotência, a linguagem da aceitação passiva das coisas tais como são e tais quais devem permanecer. As palavras trabalham por conta da organização dominante da vida e o fato mesmo de utilizar a linguagem do poder nos condena a impotência.

O problema da linguagem está no centro da luta pela emancipação humana. Não é uma forma de dominação que se junta a outras, mas o coração mesmo do projeto de submissão do sistema mercantil totalitário.

Para que uma mudança radical surja de novo, é preciso uma retomada radical da linguagem, e também da comunicação real entre as pessoas. É nisto que o projeto revolucionário se une ao projeto poético. Na efervescência popular, a palavra é tomada e reinventada por grupos extensos. A espontaneidade criadora se apodera de cada um e nos reúne a todos.
   

Capítulo XVII: A ilusão do voto e da democracia parlamentar

“Votar é abdicar.”

Élisée Reclus


parlement

No entanto, os escravos modernos ainda se vêm como cidadãos. Eles acreditam que votam realmente e decidem livremente quem vai dirigir seus negócios. Como se eles ainda tivessem escolha. Apenas conservaram a ilusão. Vocês acreditam que ainda existe uma diferença fundamental quanto à escolha da sociedade na qual nós queremos viver entre o Partido Socialista e a Direita Populista na França, entre os Democratas e os Republicanos nos Estados Unidos, entre os Trabalhistas e Conservadores no Reino Unido? Não existe oposição, pois os partidos políticos dominantes estão de acordo sobre o essencial que é a conservação da atual sociedade mercantil.

Não existem partidos políticos susceptíveis de chegar ao poder que duvidem do dogma do mercado. E são estes partidos que com a cumplicidade mediática monopoliza as aparências. Discutem por pequenos detalhes esperando que tudo fique onde está.  Brigam por saber quem ocupará os lugares oferecidos pelo parlamentarismo mercantil. Estas estúpidas briguinhas são difundidas pelos meios na intenção de ocultar um verdadeiro debate sobre a escolha da sociedade na qual desejamos viver. A aparência e a futilidade dominam profundamente o afronto e as idéias. Tudo isto não se parece nem de perto nem de longe a uma democracia.

A democracia real se define primeiro e antes de tudo pela participação massiva dos cidadãos na gestão dos interesses da cidade. Ela é direta e participativa e encontra sua maior expressão na assembléia popular e no diálogo permanente sobre a organização da vida comum. A forma representativa e parlamentar que usurpa o nome da democracia limitam o poder dos cidadãos pelo simples direito ao voto, ou seja, a nada, tão real, que não existe diferença entre o cinza claro e o cinza escuro. As cadeiras do Parlamento estão ocupadas pela imensa maioria da classe econômica dominante, seja ela de direita ou da pretendida esquerda social-democrática.

O poder não é para ser conquistado, ele tem que ser destruído. O poder é tirano por natureza, seja ele exercido por um rei, por um ditador ou um presidente eleito. A única diferença no caso da democracia parlamentar é que os escravos têm a ilusão de que podem escolher eles mesmos o mestre que eles deverão servir. O direito ao voto fez dos mesmos cúmplices da tirania esmagadora. Eles não são escravos porque existem amos, senão que existem amos porque decidiram permanecerem escravos.


Capítulo XVIII: O sistema mercantil totalitário

“A natureza não criou amos nem escravos, eu não quero dar nem receber leis.”
Denis Diderot


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O sistema dominante se define então pela onipresença de sua ideologia mercante.  Ela ocupa ao mesmo tempo todo o espaço e todos os setores da vida. Ela não diz nada mais que: Produza, venda, consuma, acumula! Ela reduziu todas as relações humanas em relações mercantes e considera nosso planeta como uma simples mercadoria. O dever que nos impõe é o trabalho servil. O único direito que ele reconhece é o direito a propriedade privada. O único deus que ele adora é o dinheiro.

O monopólio da aparência é total. Somente aparecem os homens e os discursos favoráveis na ideologia dominante. A crítica deste mundo está afogada no mar mediático que determina o que é bem ou mal, o que se pode ver ou não.

A onipresença da ideologia, o culto ao dinheiro, monopólio da aparência, partido único disfarçado de pluralismo parlamentar, ausência de uma oposição visível, repressão sob todas as formas, vontade de transformar o homem e o mundo. Eis o verdadeiro rosto do totalitarismo moderno que chamamos “democracia liberal”, porém é necessário chamá-la pelo seu verdadeiro nome: o sistema mercantil totalitário.

O homem, a sociedade e o conjunto de nosso planeta estão ao serviço desta ideologia. O sistema mercantil totalitário realizou o que nenhum totalitarismo conseguiu fazer antes: unificar o mundo a sua imagem. Hoje já não existe exílio possível.


Capítulo XIX: Perspectivas

À medida que a opressão se estende por todos os setores da vida, a revolta toma aspecto de uma guerra social. Os motins renascem e anunciam a futura revolução.

A destruição da sociedade mercantil totalitária não é um caso de opinião. É uma necessidade absoluta num mundo que já está condenado. Pois o poder está em todos os lados, deve ser por todas as partes e todo o tempo que devemos combatê-lo.


A reinvenção da linguagem, o transtorno permanente da vida cotidiana, a desobediência e a resistência são as palavras mágicas da revolta contra a ordem estabelecida. Mas para que desta revolta surja uma revolução, é preciso reunir as subjetividades em uma frente comum.

É na unidade de todas as forças revolucionárias que devemos trabalhar. Isso só se pode conseguir quando temos consciência de nossos fracassos passados: nem o reformismo estéril, nem a burocracia totalitária não podem ser uma solução para nossa insatisfação. Trata-se de inventar novas formas de organização e de luta.

A autogestão nas empresas e a democracia direta na escala comunal constituem as bases desta nova organização que deve ser anti-hierárquica tanto na forma quanto no conteúdo.


O poder não é para ser conquistado, ele deve ser destruído.


Capítulo XX: Epílogo

“Cavalheiros, a vida é muito curta… Se nós vivemos, vivemos para andar sobre a cabeça dos reis.”

William Shakespeare, Henrique IV


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