segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Inteligência entomológica

Por Rogério Tuma, da Carta Capital.

Um estudo publicado na revista PLoS ONE em setembro mostra como a punição severa aos corruptos e a proteção e benefícios aos punidores promovem uma sociedade cooperante e sadia, sem corrupção. Quando olhamos um formigueiro em funcionamento, a primeira coisa que vem à cabeça é como uma sociedade de insetos pode ser mais produtiva e eficiente que a nossa. A resposta é simples: não existem corruptos, existem regras e elas são obedecidas.

A falha na sociedade humana é que quem pune quem não coopera pode ser punido por retaliação ou sofrer ameaças e acaba até correndo risco de extinção, e esse custo para o punidor acaba provocando uma tolerância maior à não colaboração dos outros e consequente deterioração da sociedade. Na grande maioria das sociedades de insetos não há perdão. Não colaborou, vira inimigo, o que é considerado cientificamente um sistema de retidão. Porém, algumas raras sociedades de insetos permitem que os punidores desertem, como ocorre em uma espécie de vespa e uma de formiga. Esse modelo é interpretado como corrupto: nesses dois casos a sociedade se beneficia dos desertores, pois, apesar de tolerantes, continuam contribuindo, mesmo que pouco, para o grupo.

Estudos mostram que entre humanos a corrupção deteriora os laços sociais, estimula a criminalidade e gera desconfiança na hierarquia, reduzindo investimentos e o desenvolvimento sustentável. A corrupção piora a saúde psíquica e física.

Os pesquisadores Duenez-Guzman e Sadedin entendem que na sociedade humana o interesse econômico promove a não punição para os não colaboradores, isto é, fomenta a corrupção, e a única maneira de evitá-la é promover benefícios financeiros para o agente punidor e infligir alto custo para o infrator. Baseados na teo­ria de que a punição a quem não coopera pode melhorar substancialmente a performance de uma sociedade, e que é fundamental que os punidores sejam poupados de retaliação e tenham um poder hierárquico maior, como na sociedade dos insetos, os pesquisadores criaram jogos teó­ricos com tipos de sociedades com interações diferentes entre seus personagens: punidores desertores, punidores não corruptos, corruptos e os colaboradores.

Os autores concluem que a sociedade humana existe com a interação de todos esses tipos, mas em um equilíbrio bastante instável onde a diferença entre o poder dos punidores corretos contra a soma de seus desertores com o número de corruptos é que define o sucesso. Mesmo uma discreta diferença a favor da honestidade, como um posto mais alto na sociedade para os corretos, pode fazer a diferença, pois a busca dessa posição social melhora a colaboração de todos contra os corruptos e reduz o número de deserções entre os punidores. 

Segundo o estudo, o caminho para a retidão social é um só: todos da sociedade precisam contribuir remunerando os punidores e precisam aumentar drasticamente os custos para corruptos e desertores. Os autores acreditam que, se a colaboração entre humanos fosse baseada apenas na punição, a corrupção seria universal, inversamente proporcional à deserção e diretamente relacionada ao bem-estar da sociedade. Mas ela cresce junto, alimenta o crime, e piora o desenvolvimento. Portanto, a sociedade ideal é aquela onde todos podem punir os corruptos e devem colaborar, e a pior sociedade é aquela onde existe um enorme número de colaboradores e o poder está na mão dos corruptos.

A democratização e o surgimento do aparato policial facilitou o aparecimento da corrupção na sociedade moderna. Mas as sociedades que mudaram o equilíbrio tendendo à correção obtiveram ganhos bem maiores que as que permaneceram corruptas. A chave para a mudança é uma punição equalitária, uma justiça sem distinção. Poupar alguns criminosos e condenar outros provoca desequilíbrio social e revolta entre os colaboradores. A melhor saída é a justiça e não a vingança.


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O ateísmo é a verdadeira aceitação da realidade

Por Paula Kirby, ateísta.
Tradução: Marcelo Carahyba

Até 2003, eu era uma uma cristã devota. E quero dizer devota mesmo. Eu acreditava piamente, e a fé era central em minha vida naquele tempo. Vários presbíteros pensavam que eu tinha um chamado ao "ministério"; um deles chegou a sugerir que eu tinha vocação para ser freira. Agora, sou ateísta. Daquele tipo de ateísta que é chamado pelos religiosos apologetas de "impertinente" ou "militante", como era de se esperar. Então, o que aconteceu?

O que aconteceu foram quatro pequenas palavras: "Como eu posso saber?"

Uma das coisas que me assolava durante meus anos cristãos era simplesmente quão tão diferentes as cristandades são. Não apenas o vasto número de diferentes seitas e denominações (mais de 38.000 chutando por baixo), mas também a enorme diferença entre indivíduos cristãos pertencentes à mesma seita ou denominação. As crenças e atitudes de um cristão evangélico, bíblico, literalista comparadas com a de um cristão liberal são tão absurdamente distintas que quase podemos afirmar que estamos lidando com duas religiões completamente diferentes - como descobri por experiência própria quando me transferi de uma igreja liberal no sul da Inglaterra para o antro presbiteriano das Terras Altas (Escócia) lá para o ano 2000.

Como qualquer outro cristão que conheci, eu tinha ideias claras a respeito do tipo de Deus que eu acreditava e, com base nessas ideias, eu aceitava uma pequena parte dos dogmas cristãos enquanto rejeitava totalmente outros. De novo, deixe-me enfatizar: isto é padrão no contexto. Na prática, a fé é sempre um self-service: crentes dão valor àquelas partes que se ajustam confortavelmente a eles, enquanto ignoram solenemente aqueles que não se ajustam, ou elaboram interpretações mirabolantes que permitem a eles dissimular que algumas partes não significam o que de fato significam. Logo, essa foi a questão que enfrentei em 2003: Que garantias eu teria de que a versão do Cristianismo creditada por mim era a verdadeira? Existiria qualquer evidência melhor para a versão que aceitei que para aquelas que neguei?

A Bíblia não podia me ajudar. Ambos tipos de cristãos - o ultraconservador e o ultraliberal - encontram abundante base para suas perspectivas na Bíblia através da leitura seletiva (e, claro, preenchem as lacunas que não se ajustam ao seu caso com convenientes "metáforas" ou "mistérios"). A tradição também não é confiável; uma falsa crença não se torna correta simplesmente por ter sido crida e sustentada por várias gerações.

Então, o que mais temos? Certa vez debati com um católico romano que argumentou: "Para aqueles que dizem não haver provas, há a questão do numinoso[1]. Eu sei que há um Deus, eu tenho um relacionamento com ele e diariamente me dedico à oração meditativa". Será que a resposta é por esse caminho?

Ora, evidentemente, eu também pensei que tivesse um relacionamento pessoal com Deus. Eu, também, me dediquei a ele em oração meditativa diariamente. E, como resultado, eu não apenas "sabia" que havia um deus; eu "sabia" como esse deus era. Eu não cria - eu realmente pensava que sabia.

Simplesmente todos os cristãos que tive contato "sabiam" que havia um deus também. Eles, também, se dedicavam em meditar e orar a ele diariamente. E, como resultado, eles, também, "sabiam" como Deus era. Logo, o que esse conhecimento nos diz sobre ele? Quão confiável são esses relacionamentos pessoais quando viemos a estabelecer a verdade sobre Deus?

Alguns de nós, com base no nosso relacionamento com Deus, sabem que ele é amoroso, compassivo, generoso, sempre estendendo a mão a nós, tendo piedade de nossos erros ao invés de condená-los. Outros, com base no seu relacionamento com Deus, sabem que ele é irado, ciumento e algoz.

Alguns de nós sabem que Deus tem coisas mais importantes para se preocupar que com nossas vidas sexuais; outros sabem que a impureza sexual humana é profundamente ofensiva a ele.

Alguns de nós sabem que Deus quer que nós ajamos para com os defeitos dos outros com tolerância e humildade; outros sabem que ele quer que o pecado seja feito de exemplo, deve ser reprimido e publicamente censurado.

Alguns de nós sabem que Deus se ofende com o consumismo quando tantos não possuem nada; outros sabem que Deus fez derramar riqueza e outras coisas boas sobre pessoas por ele escolhidas.

Alguns de nós sabem que Deus vê todas as religiões como diferentes formas de expressão da busca humana por ele; outros sabem que o Cristianismo ortodoxo, tradicional, é o único caminho até ele.

Alguns de nós sabem que o Diabo é somente um mito para explicar a existência do mal; outros sabem que o Diabo é absolutamente real e uma ameaça genuína às nossas almas.

Alguns de nós sabem que de maneira nenhuma Deus poderia ter criado algo como o Inferno; outros sabem que o Inferno é certamente parte dos planos de Deus.

Todos nós sabemos que estamos certos, e cada um de nós baseamos todo o nosso conhecimento no relacionamento pessoal que temos com Deus. Como poderia qualquer um de nós estar errado?

O que é impressionante sobre essas observações é que aqueles de nós cujas personalidades nos levam a abraçar o mundo e as pessoas num espírito de sinceridade, generosidade, cordialidade e tolerância, "sabem" que Deus fez o mesmo. E aqueles que carecem dessa confiança e consequentemente veem o mundo como ameaçador, mal e ruim, "sabem" que Deus o vê dessa forma também.

Este é o motivo pelo qual a experiência subjetiva não nos pode dizer absolutamente nada sobre Deus. Saber que tipo de deus alguém acredita nos diz muitíssimo a respeito dessa pessoa - mas de forma alguma nos diz sobre a verdade ou sobre a existência de qualquer deus.

E isto traz a nós algo muito importante sobre o ateísmo. O ateísmo não é em si uma crença[2]. Poucos ateístas seriam tão audaciosos em declarar que a existência de qualquer deus é absolutamente impossível. Ateísmo é, basicamente, a posição que é absurdo acreditar, quanto mais adorar, uma divindade para a qual nenhuma evidência válida foi demonstrada. Ateísmo não é uma fé: do contrário, é a recusa em aceitar reivindicações de fé[3].

Ateístas reconhecem que necessitamos de evidências para chegar a conclusões confiáveis sobre a realidade e que, até agora, aqueles que reivindicam que há um deus falham em provê-las. E ateístas se importam com a realidade: não com o que é confortável crer, ou com o que tradicionalmente tem sido crido, ou com o que fomos instruídos a crer. E este foco na realidade, longe de diminuir nossa experiência de vida, como tantos religiosos imaginam, na verdade torna nossas vidas deliciosas: uma vez que você encarou a realidade de que inexiste evidência que sugira que há outra vida além dessa, se torna ainda mais importante viver essa vida finita em toda sua plenitude, aprendendo e amadurecendo, e se importando com os outros, porque esta é a única vida deles também, e não há razão alguma para acreditar que haverá recompensas celestes para o sofrimento terrestre dessas pessoas.

Uma vida ateísta, bem vivida, leva ao único tipo de pós-vida de que há alguma evidência: a imortalidade de viver na memória afetiva daqueles que nos amaram.

Notas
[1] Dicionário Aurélio: Segundo Rudolf Otto (1869-1927), teólogo e filósofo alemão, numinoso é o sentimento único vivido na experiência religiosa, a experiência do sagrado, em que se confundem a fascinação, o terror e o aniquilamento.
[2] N.T.: Discordo da autora. O ateísmo é uma crença tanto quanto o teísmo. Ambos fazem afirmações sobre o que é inacessível para ambos. Um, voluntariamente, diz sim, o outro, voluntariamente, diz não, e ambos não podem fazer nada além disso. Mas concordo com a postura cética da autora, que, ao meu ver, seria traduzida melhor em agnosticismo ateísta (não sabe, tem consciência de que não sabe e nem é possível saber, e prefere não crer).
[3] N.T.: Fé, segundo o contexto da autora, está para afirmações dogmáticas, inquestionáveis, próprias das religiões sistematizadas e do pensamento medieval. Fé pode significar muitas outras coisas. Pode, inclusive, estar despojada de conteúdo objetivo ou normativo, estando relacionada à esperança e à aposta, por exemplo.

* O jornal online The Hibernia Times foi natimorto. Surgiu e logo saiu do ar. Nisso, eu só encontrava fragmentos desse texto. Então, trocando uma ideia com minha amiga Iara Vidal, bibliotecária, ela encontrou uma cópia dessa pérola nos porões da internet. Ela também achou a sequência deste texto, que em breve publicarei a tradução. Valeu, Iarinha! =)