sexta-feira, 29 de abril de 2011

O porquê do fundamentalismo

Por Ricardo Gondim, pastor e escritor.

Ao terminar o culto, notei um rapaz, aparentando não mais que 25 anos, entre os que desejavam conversar comigo. Trajava um terno escuro, gravata sóbria e camisa bem engomada. Era meio-dia. O calor insuportável dava uma sensação de desconforto só em vê-lo apertado sob tantas camadas. Ele queria conversar sobre teologia. A hora era imprópria e havia mais algumas pessoas pedindo atenção. Sugeri que me procurasse durante a semana para um bate-papo mais calmo. Dito e feito. Na quarta-feira à tarde, José Antônio (nome fictício) estava em minha sala, novamente trajado com seu paletó grafite.

Logo nas primeiras frases, ficou claro que ele não fazia perguntas. Pela entonação dos questionamentos, bastava trocar os pontos de interrogação por exclamação e eu era severamente exortado. Vez por outra colocava o dedo em riste e pontificava como se acabasse de levantar da cadeira de Moisés. Tive pena daquele rapaz, tão jovem e tão caduco. Não julgo suas verdades, apenas me inquieto com sua postura rancorosa, anacrônica e trancada ao diálogo.

Os estudiosos deste tempo são unânimes em afirmar que experimentamos o recrudescimento do fundamentalismo. Não trato o fundamentalismo como uma categoria teológica, mas como uma atitude comportamental. O mundo experimenta uma crescente animosidade nas discordâncias.

As pessoas se entrincheiram com seus argumentos, não ouvem o arrazoamento dos outros e, ao se sentirem ameaçadas, partem para algum tipo de violência. O fundamentalismo tem se mostrado exuberante na radicalização ideológica dos Estados Unidos, tanto da esquerda como da direita, no isolamento de facções islâmicas e nos preconceitos entre movimentos cristãos, no xenofobismo europeu e nos nacionalismos africanos.

O fundamentalismo não respeita fronteiras de qualquer espécie -- geográficas, cronológicas ou culturais. Um jovem, que ainda não amadureceu sua reflexão, pode ser mais intolerante que um idoso, já bem enraizado em suas convicções. Eu ouvia o José Antônio e pensava: “Este rapaz lê pouco e, quando o faz, nunca terá coragem de aprender com quem não tem a chancela de sua igreja”.

Os fundamentalismos não aceitam contribuição de quem não comunga com os mesmos signos, com os mesmos cacoetes de seu grupo. Os diferentes podem até tentar comunicar alguma verdade, mas serão rechaçados por não serem identificados como “um dos nossos”. Romancistas, músicos, poetas e místicos de outros arraiais estão impedidos de ajudar um fundamentalista a arejar sua mente.

Fundamentalistas desprezam conteúdos e se espantam com rótulos. Aliás, lideranças fundamentalistas adoram xingar com estereótipos. Etiquetam uma pessoa como herege para que seus argumentos fiquem sob judice antes de serem articulados. O pavor de deixar-se contaminar por um apóstata encerra qualquer diálogo.

José Antônio tentava me persuadir de que o futuro da fé cristã jaz no passado. “Temos que voltar”, repetiu várias vezes. Como eu sabia que qualquer iniciativa de estabelecer uma conversa seria frustrada, apenas pensei: “Mas, voltar ao quê?”. A idealização do passado é arma bastante usada por aqueles que enxergam a coragem de pensar fora da caixa como pecado mortal. Veneram teólogos do século 17 como autênticos instrumentos de Deus e consideram os atuais pretensiosos por desejarem articular teologia para sua geração. Mal sabem que muito do que se considera ortodoxo hoje, soou esquisito para alguém do passado.

Depois de quase cinquenta minutos de monólogo, antes que José Antônio tomasse fôlego, consegui dizer que Jesus Cristo foi relativista. Ele relativizou a lei em nome da misericórdia ao perdoar uma mulher apanhada em adultério; relativizou a tradição ao curar no sábado; relativizou sua própria proibição de alcançar os gentios ao atender ao pedido de uma mulher aflita devido à doença da filha. José Antônio arregalou os olhos quando eu disse que Jesus foi um vanguardista. Ele estava à frente do seu tempo quanto à valorização da mulher e o trato com a riqueza.

Minha cartada final, que escandalizou até os fios de cabelo de José Antônio, foi quando eu disse que nem ele nem eu podemos nos arvorar de ter toda a verdade. Jesus afirmou: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Porém, há pelo menos três verdades para conhecermos, todas inexauríveis: a pessoal, subjetiva, a externa, do mundo, e a de Deus, transcendente. Quem se aventurar a conhecer a si, o mundo que o rodeia e a Deus, deve saber que nunca chegará à sua meta.

Abracei afetuosamente José Antônio quando nos despedimos, mas temi por sua alma. Vi que ele corria o sério risco de perpetuar uma fé amarga, obtusa e, crescentemente, isolada. No escanteio e sem credibilidade, seu cristianismo parecerá com o sal que perdeu seu sabor. Torço para que a geração que me sucederá seja tão assustadoramente revolucionária como foi Jesus de Nazaré.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

A Insegurança das Identidades Sob Ataque

Por Nilton Bonder, rabino e escritor.

O Eclesiastes diz que há um tempo para tudo, tempo de alegria, tempo de tristeza, tempo de paz e tempo de guerra. É muito possível que, quando ele foi escrito, o mundo vivesse um momento em que realmente a situação se assemelhasse a nossa experiência contemporânea.

Nos anos 90 vivemos com a nítida sensação de que o período de paz experimentado, ou os processos de pacificação que se estabeleceram, representava o início de uma definitiva forma de convivência pacífica. Estaríamos iniciando o tão esperado e milenarmente sonhado futuro de harmonia, justiça e paz. Somos então surpreendidos por tempos de guerra como se isso fosse realmente um destino sobre o qual não temos nenhum poder. A guerra seria como a chuva. Nossa sensação de impotência diante de tempos disso ou tempos daquilo pareceria fazer-nos fantoches da realidade.

Mas eu tenho a impressão que o Eclesiastes estava falando de uma outra coisa. Não se trata de resignação ou de uma proposta reacionária, mas algo similar ao que Morin nos diz ao falar que "não temos para onde ir". Isso porque o refrão marcante e chocante deste livro diz: Não há nada novo sob o sol.

À primeira vista esta frase parece extremamente pessimista: não podemos fazer nada; tudo vai ser igual; geração vem, geração vai os seres humanos são prisioneiros de uma natureza humana da qual não tem como "sair desse lugar". De certa maneira, mais do que nos percebermos como parte Gaia, de um planeta onde temos que conviver porque não temos para onde ir, compartilhamos mais do que tempo e espaço, compartilhamos naturezas.

Vivemos mais que no mesmo local cósmico, somos conterrâneos de essência. Eu acho que é isso que o Eclesiastes está dizendo: temos que lidar com uma estrutura humana que de geração em geração vai precisar de um processo de amadurecimento, vai precisar de uma educação para o futuro que não virá pronta, geneticamente feita. O bebê que, como o cachorro, identifica o outro como um igual, é o mesmo bebê capaz de grandes violências em disputas por posse ou atenção, e será este o bebê do futuro.

As diferenças do que experimentamos hoje não têm a ver com transformações de nossa natureza. Tem a ver com a maior compreensão e o aumento de recursos para que possamos promover nosso amadurecimento pessoal e coletivo. Um amadurecimento que sempre será um processo no qual teremos não só poderes, mas a responsabilidade de intervir. Vamos poder melhorar as condições de nossa civilização, mas mesmo assim teremos tempos de paz e tempos de guerra. Não necessariamente guerras em que a gente pegue avião e jogue bombas, mas guerras travadas dentro de nós mesmos. Seus armistícios serão celebrados pelo amadurecimento de não mais termos que recorrer a métodos infantis de posse, de controle e de triunfo, que hoje, como no passado, vemos tão presente na realidade.

Duas questões em relação ao diálogo me parecem importante compreendermos porque são, por um lado, a razão da existência do fundamentalismo, e, por outro, território eterno de batalhas. Transformar as espadas em arados, como o profeta Isaias sugeriu, é um processo, mas não de transformação da espécie humana e sua natureza.

Muitas vezes queremos viver no espaço da mágica ou da fantasia. Queremos exorcizar de nós o "eu" de que não gostamos, que identificamos como não sendo ideal. Isaias falava, no entanto, de substituir instrumentos de destruição por outros que propiciassem plantio. Referia-se ao processo de criar ferramentas para amadurecer as pessoas extinguindo os instrumentos que infantilizam as pessoas.

Não há dúvidas de que o mais importante instrumento é o diálogo, nos moldes que a professora Lia Diskin coloca: não pessoas em disputa, mas trafegando pelas idéias. A passagem desse diálogo de discórdia, de busca de triunfo para o diálogo verdadeiro se traduziria pela mudança do jargão da "tolerância", que é uma palavra horrível porque dela se infere um consentimento precário, para a idéia de "apreciação". Apreciar significa celebrar juntos e pensar juntos, independentemente de concordância. E este é o campo das "guerras de tempos em tempos" com as quais cada geração terá que lidar.

Há uma reflexão sobre o diálogo entre mestres Chassídicos que elucidam algumas das dificuldades e que ajudam a compreender, ou melhor, apreciar as "batalhas" que para sempre serão travadas. O Rabino de Kotzk dizia: "Se eu sou eu porque você é você, e se você é você porque eu sou eu, então eu não sou eu e você não é você e a gente não tem o que falar. Mas, se eu sou eu porque eu sou eu, e você é você porque você é você, então eu sou eu e você é você e podemos conversar".

O rabino aponta para o fato de que as inseguranças humanas se depositam todas no espaço das interações e das comparações. Quando eu sou eu porque você é você, significa que só consigo ter uma noção de identidade quando me comparo a você. A raiz desta relação de diálogo ou não-diálogo se fundamenta na questão da insegurança; uma insegurança tão profunda que na verdade nos coloca numa existência paralela, de impossibilidade de encontros e nunca poderemos conversar. Para o diálogo não importa se há discórdia ou convergência de idéias, é apenas fundamental que você esteja falando não de um lugar de insegurança, mas de um lugar de identidade, de crença, de visão.

O fenômeno do fundamentalismo em nosso tempo é basicamente produto da insegurança de identidades que se encontram sob ataque, identidades vacilantes e que se valem mais de aspectos daquilo que não são do que de suas próprias raízes e valores. Essa atitude torna as pessoas, as tribos e as identidades enganchadas a quem o outro é.

Vemos aqui nitidamente a batalha por amadurecimento que se trava em nós e que extravasa para a realidade social. Somos muitas vezes crianças transvertidas em adultos e reproduzimos relações sociais e políticas típicas desta infantilidade mascarada. A grande batalha é o fortalecimento das identidades individuais e coletivas para que possa existir mais diálogo - mais instrumentos para tornar espadas em arados. Precisamos fortalecer as culturas e as tradições religiosas para que não se sintam criticadas ou julgadas de fora, mas que elas mesmas possam fazer isso de dentro.

O primeiro passo para este mundo de diálogo é que cada um faça o seu dever de casa, o dever de casa de amadurecimento, de poder realmente desenvolver uma identidade, uma identidade que seja o fruto da sua própria história, produto de sua própria crítica e aperfeiçoamento.

O que nós vemos nas tradições religiosas do Ocidente (não falo do Oriente por sentir-me um leigo no assunto) é, por exemplo, a questão emblemática sobre Jerusalém. Essa briga por Jerusalém é basicamente uma disputa em torno de inseguranças internas das tradições ditas bíblicas. Jerusalém só será Jerusalém se ela for a Jerusalém dos judeus. Ou Jerusalém só será Jerusalém se ela for a Jerusalém dos muçulmanos, ou seja, contanto que não seja a Jerusalém dos judeus, ou então que não seja a Jerusalém dos cristãos.

Os textos sagrados que são matriz da reflexão religiosa, seja o Alcorão seja o Novo Testamento, ou o Antigo Testamento, refletem essa questão da insegurança na identidade. O Antigo Testamento precisa afirmar o quão diferente os hebreus eram da civilização egípcia ou dos povos dos canaãnitas. O Novo Testamento e o Alcorão, por sua vez são marcados por esta visão enganchada. Nestes textos os judeus, por exemplo, se prestam ao papel de um legítimo outro para estas tradições.

No Alcorão, judeus são apresentados como um modelo do "que não se é", mas mesmo que esse judeu seja um judeu simbólico, que não seja o povo judeu, a marca dessa insegurança é evidente. Já no Novo testamento o judeu é apresentado como aquele que você não quer ser, aquele que renega. Encontramos aqui resquícios desse recurso do qual todas as tradições lançam mão, umas mais outras menos, qual seja, a criação de teologias usando o outro para afirmar o que não eram, nitidamente visando fortalecer sua própria identidade.

Enquanto as tradições religiosas não entenderem que elas têm que fazer uma limpeza, livrando nossas identidades de suas inseguranças infundadas, ficará difícil o diálogo verdadeiro e processos de guerras mais internas e menos externas. Todos os líderes, sejam de uma cultura, uma nação ou uma tradição espiritual, têm como obrigação se envolver nesse processo de autodiagnóstico de suas inseguranças e buscar vencê-las com maturidade, distanciando-se de processos infantis de apontar o outro e dizer: "foi ele!".

Uma segunda questão em relação ao diálogo e que raramente paramos para pensar, é um diálogo não entre os que estão aqui na nossa geração, mas o diálogo intergerações e suas violências. Outro dia eu escrevia sobre uma história no Talmud, uma história muito simples, mas que desperta para esta questão. Conta que um rabino comprou uma tâmara tão maravilhosa que impregnava o ambiente com sua fragrância. O filho do rabino entrou na casa e disse: que cheiro fantástico é esse? O pai disse: meu filho essa tâmara é para você. O filho ficou feliz e levou a tâmara. Como viviam na mesma casa o rabino ouviu quando seu filho no outro cômodo disse a seu próprio filho, a seu neto: Veja que tâmara fantástica, é para você! Imediatamente o rabino fez um comentário que reputo importante. Disse ele: "Quando meu filho cedeu a tâmara, por um lado estremeci de tristeza, por outro, fiquei extremamente feliz. Fiquei triste porque ele me preteriu ao seu próprio filho; mas fiquei feliz porque o que ele fez era certo".

Devemos prestar atenção na tensão que existe aqui. O que o rabino fez: ele abre mão de um prazer para possibilitá-lo a seu filho que por sua vez faz o mesmo com o seu filho. O pai se sente traído por que havia aberto mão do prazer, mas não esperava ser preterido pelo neto - para seu filho era mais importante o neto uma vez que privara o pai do prazer da tâmara, propiciando-o a seu filho. Ao mesmo tempo ele se contenta, pois compreende que seus próprios valores estão presentes em seu filho e que este procedeu da mesma maneira que havia feito. Ele reconhece um vetor de preocupação prioritário para com a geração do futuro e não para a geração do passado. Essa é uma tensão extremamente difícil. Quando os pais não elaboram esta tensão em si, como no caso do rabino, eles produzem mensagens contraditórias e extremamente violentas.

Não é simples honrar os diálogos entre gerações. Devemos respeito às gerações anteriores, mas é fundamental que estas gerações anteriores assumam a responsabilidade de uma atitude madura em relação à sua tristeza por ser preterida e ter que, por vezes, abrir mão daquilo que acreditam ser certo. Cabe a essas gerações temperar sua tristeza com a alegria de reconhecer processos que favorecem e renovam as gerações futuras. A exigência de lealdade para com as instituições e os poderes que representam o passado muitas vezes rompem o diálogo com as instâncias que representam o futuro.

Essas duas questões de amadurecimento influenciam a qualidade e a disponibilidade ao diálogo. E ambas as questões aparecem nitidamente no discurso fundamentalista: 1) identificar inimigos para fortalecer sua identidade e 2) promover um vetor de compromisso mais forte do pai para com o avô do que para com o neto.

Há um detalhe nessa questão de maturidade que gostaria de ressaltar. Quando o rabino de Kotzk dizia que "se eu sou eu porque você é você" então eu não posso ser eu e não podemos dialogar, um outro aspecto fica evidente. E outro rabino Chassídico, o Ishbitzer, se preocupou em apontar. Ele dizia o seguinte: se eu sou eu e você não é você, então você não gosta de mim.

Esse é um aspecto da natureza humana e que tange a frustração e a inveja. Quando não estamos bem, qualquer um que esteja bem é o nosso inimigo; qualquer um que esteja com uma identidade fortalecida nos lembra de nossas vulnerabilidades. Muitas vezes se chega a ponto de acreditar que nossa infelicidade é produto deste que nos lembra de nossa insatisfação ou de nossa insegurança. Guerrear com este inimigo externo fica mais fácil do que se defrontar com seus inimigos e fantasmas internos.

Em outras palavras, nossa luta é por propiciar o máximo de instrumentos culturais e tradicionais que visem ao amadurecimento das pessoas. Essa luta será constante. Fazer com que ela seja travada na esfera da educação e não das guerras é o desafio maior para nossa civilização. Haverá momentos mais propícios para que uma geração experimente essa maturidade, haverá outros, sejam no âmbito da sobrevivência ou da continuidade, que serão mais difíceis. Viver é lidar com tempos disso, tempos daquilo. Fantasiar que a vida possa ser uma homeostase, um equilíbrio permanente, é abandonar a própria definição de vida.

De que maneira nós geramos processos que infantilizam as nossas populações? Como engendrar uma educação que vise a este amadurecimento?

As conquistas da civilização, particularmente o avanço científico, que amplia nossa longevidade e nos faz sonhar inconscientemente com a possibilidade da imortalidade, não ajudam a promover este amadurecimento. O mundo fica muito marcado por este aspecto jovial e imaturo que se constrói da perspectiva de um futuro infinito. O jovem e o conquistador têm todos os lugares para ir e todos os prazeres por provar. A grande bênção de saber que não há para onde ir - não porque a Terra é limitada, mas porque somos todos inquilinos temporários da existência - é em si o lugar de encontro com todos esses conterrâneos e contemporâneos, com quem dividimos, acima de tudo, nossa condição finita. Precisamos de uma cultura amadurecida que ensine isso sem morbidez. Ao invés temos, por um lado uma cultura jovial que é uma cultura de consumo, uma cultura imatura que acha que a vida é ilimitada, que os recursos são ilimitados; por outro, uma cultura de anciãos que se sentem muito ameaçados em sua identidade e que não acreditam no que ensinaram a seus filhos. Daí a criação de culturas aprisionadoras ou fundamentalistas.

As ferramentas para esta educação estão hoje mais disponíveis do que nunca. Dispomos da psicanálise que nos traz um melhor conhecimento de nós mesmos, além de entendermos melhor os processos históricos e sociais e dispomos de forma globalizada de toda a herança sapiencial de nossa civilização.

Investir na possibilidade de tornar disponíveis estes instrumentos de amadurecimento a todos os seres humanos, visando as supri-los de recursos materiais e recursos pessoais para seu desenvolvimento parece ser a única chance de diálogo e paz. Só assim promoveremos uma "liberdade tranqüila" independente de se os tempos sejam de tranqüilidade ou adversidade.

terça-feira, 26 de abril de 2011

O gentil martírio dos desconversos

Por Paulo Brabo

Não teve por usurpação ser igual a Deus – ao contrário, aniquilou-se a si mesmo.
Filipenses 2:6,7

Que o ocidente encontra-se em franco processo de secularização a ninguém ocorreria negar. Cada dia se levanta e encontra Deus mais distante do centro do palco, onde uma vez incontestavelmente esteve. Menos gente se considera religiosa, menos gente acredita em Deus, menos gente fala com ele. Menos gente se mostra disposta a moldar o seu comportamento diante da ameaça do inferno e do pecado; menos gente acredita em milagres, menos gente os espera e os pede. Há menos orações públicas, menos crucifixos nas paredes, menos menções a alguma divindade na festa de entrega do Oscar. Menos gente recorre a Deus para prover ajuda, e mais gente duvida que Deus seja capaz de prover qualquer ajuda.

Porém, entre os que ainda creem, há uma linha de pensamento1 para a qual a secularização do mundo não representa uma vitória de Satanás e o lamentável afastamento da humanidade da promessa da salvação e dos exigentíssimos ideais do evangelho. Muito pelo contrário: o radical escanteamento de Deus, sua paulatina retirada do palco dos acontecimentos e das decisões, não deveriam ser encarados como derrota ou como ameaça, mas como a necessária consequência e a execução final daquele que era seu plano desde o começo. O divino afastamento seria o último e definitivo passo no processo de kenosis – o sacro esvaziamento vaticinado por Paulo no segundo capítulo da carta aos Filipenses e formidavelmente corporificado em Jesus.

Os cristãos, em especial os de matiz evangélico, costumam tomar por diretriz – sem de fato ponderar as implicações da coisa – que o planeta só deverá ser considerado realmente salvo quando todos sobre ele se mostrarem devidamente religiosos. Só diante da conversão completa, só depois que a religião ocupar cada espaço da vida, e em cada um, a boa nova do Reino será vitoriosa e seus arautos poderão descansar. Porém são cada vez mais numerosos os que acreditam encontrar, na Bíblia e na tradição, ampla evidência do contrário: só num mundo em que Deus não precise mais ser ensinado ou mencionado a sua boa nova se mostrará finalmente vitoriosa, finalmente relevante.

Ora, ambos os testamentos sonham com um momento em que a lei estaria gravada não em regras escritas mas nas tábuas do coração, um momento em que Deus seria adorado não em ritos ou palavras, não neste lugar de adoração ou naquele, mas em espírito – isto é, de verdade e na vida real. Apocalipse fala de uma Nova Jerusalém em que não haverá templo, e Bonhoeffer entreviu num fulgor que o cegava a aurora do cristianismo secular. Diante de tonalidade subversiva do Novo Testamento – que enxerga a cruz como vitória, que sustenta absurdamente que para ser grande é preciso ser o menor, e que insiste que Jesus deve estar ausente para que seu espírito esteja presente, – não é inconcebível que a morte de Deus no nosso mundo, aquela proclamada por Nietzsche, represente na verdade a sua incontornável vitória. Talvez a divindade seja humilde o bastante para sonhar com o momento em que será finalmente desnecessária; talvez seja magnânima o bastante para colocá-lo em prática.

Em outras palavras, o afastamento de Deus em palavras e rituais pode representar (ou ser requerimento para) a gradual assimilação de seu espírito por parte da humanidade. Se for assim, a secularização deve ser interpretada como a culminação de um processo apenas iniciado na Encarnação e na descida do Espírito. Quem sabe seja precisamente isso o que devamos entender em vertigens como “onde há o espírito de Jesus há liberdade” e “não os chamo mais de servos, mas de amigos”. É Jesus entendido com o arauto de uma formidável era na qual Deus não deseja servido; uma era na qual Deus não quer seguidores oficiais como o sacerdote e o levita, só quer amigos como o bom samaritano.

Se menciono o assunto, que requer melhor exposição e melhor defesa do que acabei de prover, é porque a coisa veio-me em mente enquanto pensava em dois caríssimos amigos que tomaram recentemente um passo semelhante de secularização. Os dois não se conhecem, mas em outro tempo trilhei com os dois o caminho cheio de recompensas do ativismo religioso. O que têm em comum, além desse espaço compartilhado na minha gratidão, é que no decorrer do último ano ambos encontraram espaço para me confessar – sem proselitismo, sem rancor e com toda a gentileza – que abriram mão não só dos confortos da igreja institucional, mas também os da crença na existência de Deus.

Em ambos os casos essa revelação representou um momento de infinita ternura; poucas vezes experimentei com essa inteireza a amizade, o amor e a comunhão com outro ser humano. Em especial, o instante foi pontuado pela singela graça do retrospecto e da antecipação: o fato de conhecer por experiência a integridade e o amor dessa gente, e a enormidade de saber que nada mudaria em sua postura a despeito da confissão de que haviam me achado digno.

A última vez que meu coração se enchera de ternura semelhante tinha sido diante da recatada conversão de Shayllon Marinho, que antes de dobrar-se à persuasão de Jesus era o mais cavalheiresco, articulado e gentil dos ateus militantes da internet brasileira – e que quando falamos pela última vez tivera apenas a porção ateu militante eliminada do seu caráter. Lembro ter sorrido sozinho ao concluir que Shayllon era figura tão evidentemente grande que nem mesmo o fato de estar tornando-se crente seria capaz de corrompê-lo.

A contradição – aparente contradição – está em que meus dois amigos moveram-se recentemente para longe da crença em Deus pelo mesmo motivo que levou Shayllon a mover-se em direção a ela: a irresistível influência da pessoa de Jesus.

Porque Jesus, debaixo de cuja sombra viveram a maior parte da vida, aparentemente acabou ensinando a meus dois amigos a mais libertadora e terrível das lições, a de que Deus é amor – é apenas e literalmente amor, – e que o amor não exige recompensa e não a espera. Se a prática da virtude depende da eterna vigilância e da promessa do céu, não é de fato virtude. Quem faz o bem esperando recompensa já recebeu, como diria o próprio Jesus, a sua recompensa. Os pecadores, afinal de contas, fazem o mesmo.

Em sua assustadora consistência pessoal, ambos aparentemente não encontraram alternativa de integridade além de recuar do espaço confortável da certeza da recompensa. Abraçaram, a seu modo, as assombrosas implicações do sacro esvaziamento, a kenosis.

Essa noção de recato como exibição de genuíno heroísmo cristão já havia sido, como todas as coisas, antecipada na literatura. Está presente, por exemplo, na conclusão do Três versões de Judas de Borges, em que o Salvador, recusando-se a assumir os méritos tão evidentes de Jesus de Nazaré, prefere aniquilar-se a si mesmo, “não tendo por usurpação ser igual a Deus”. Ao rebaixar-se à humanidade, Deus escolhe levar o princípio da encarnação às últimas consequências e abraça completas rejeição, incompreensão e ignomínia: escolhe ser Judas Escariotes.

O mesmo movimento de divino recuo está, de forma ainda mais singela e pungente, apresentado em São Manuel Bueno, Mártir, última obra de Miguel de Unamuno, à qual conduziu-me, com medidas iguais de inclemência e graça, o Alessandro Rodrigues Rocha. Manuel Bueno é a história desiludida (pelo menos na superfície) e avassaladoramente terna de um pároco de aldeia que deixa de acreditar em Deus mas escolhe não revelá-lo a ninguém, continuando a cuidar de suas ovelhas com todo o carinho e a exercer suas funções sacerdotais exatamente como havia feito quando ainda tinha fé. O peso da parábola está em que Dom Manuel deixa de acreditar em Deus mas muito evidentemente não deixa de acreditar no amor: se não revela aos seus paroquianos a sua falta de fé é precisamente porque os ama, porque não quer arrancar deles o único conforto universal que lhes resta, o da religião. O paradoxo, que todo leitor da parábola acaba intuindo, está em que nada pode haver de mais cristão do que essa atitude. O sacerdote que abandonou o cristianismo da fé mas não abandonou o cristianismo do amor torna-se emblema genuíno da encarnação, e Dom Manuel Bueno passa a representar uma nova estirpe de mártir, uma que abre mão até mesmo da consagração e do espetáculo. Sendo que a palavra mártir vem da raiz grega para “testemunha”, na perseverante integridade e no divino recato dos desconversos Deus talvez encontre o seu definitivo testemunho.

Não há credulidade ou incredulidade que resista à história do martírio de Dom Manuel, porque ela acaba demonstrando sem escapatória que diante da prática do amor tanto a incredulidade quanto a crença dissolvem-se em nada. No nosso mundo desiludido, a missão cristã pode ter de ser reescrita em “Dê evidência da existência do amor de Deus; se necessário, creia nele”. Porque se Deus é amor, Deus incrivelmente é amor.

E de fato, não é contraditório ao espírito do evangelho supor que há mais alegria no céu por um ateu que coloca o amor em prática do que por noventa e nove cristãos que dançam e cantam ritualmente ao redor dele. Ou, para fazer justiça aos meus dois amigos que abriram mão do lenitivo de Deus, para os quais “alegria no céu” pode não ser encarada como verdadeiro mérito: há mais fidelidade ao espírito de Jesus em fazer o que é certo sem esperar recompensa do que em quem forçar-se à integridade só para garantir a própria sobrevivência no paraíso.

Um Deus que faz tudo novo não deixaria de apreciar devidamente esta reviravolta. O próprio Jesus achou necessário insistir que, na avaliação final daquele dia, na divisão entre cordeiros e bodes, a integridade e o mérito não serão encontrados naqueles que julgavam-se seus abalizados portadores.

O reino só se descreve em comparações e a boa nova pode ser mais complexa e inesperada do que dão a entender nossas mais sensatas formulações teológicas. Na verdade, para que se faça justiça à inquieta herança do Jesus dos evangelhos, tudo na nossa fé que nos oferece tranquilidade pode ter de ser corajosamente colocado de lado.

Esta, afinal de contas, é a boa nova que esclarece que não basta dizer “Senhor, senhor”. Este, afinal de contas, é o Deus que quer misericórdia e não sacrifício, o Deus que é amor e não ortodoxia. Este, afinal de contas, é o homem que explica que quem quiser preservar a sua vida irá perdê-la, e que quem estiver disposto a perdê-la irá recebê-la de volta. Não me parece injusto supor, como já fez meu amigo Ivan Volcov, que a todos caberá receber o que não esperam: a salvação e a glória, se existirem, talvez estejam reservadas precisamente para aqueles que abriram mão de esperar esses confortos.


[1] Articulada, por exemplo, por Gianni Vattimo em Depois da Cristandade.

domingo, 24 de abril de 2011

O duelo entre a vida e a morte

Por Leonardo Boff

Num dos mais belos hinos da liturgia cristã da Páscoa, que nos vem do século XIII, se canta que "a vida e a morte travaram um duelo; o Senhor da vida foi morto mas eis que agora reina vivo". É o sentido cristão da Páscoa: a inversão dos termos do embate. O que parecia derrota era, na verdade, uma estratégia para vencer o vencedor, quer dizer a morte. Por isso, a grama não cresceu sobre a sepultura de Jesus. Ressuscitado, garantiu a supremacia da vida.

A mensagem vem do campo religioso que se inscreve no humano mais profundo, mas seu significado não se restringe a ele. Ganha uma relevância universal, especialmente, nos dias atuais, em que se trava física e realmente um duelo entre a vida e a morte. Esse duelo se realiza em todas as frentes e tem como campo de batalha o planeta inteiro, envolvendo toda a comunidade de vida e toda a humanidade.

Isso ocorre porque, tardiamente, nos estamos dando conta de que o estilo de vida que escolhemos nos últimos séculos, implica uma verdadeira guerra total contra a Terra. No afã de buscar riqueza, aumentar o consumo indiscriminado (63% do PIB norte-americano é constituído pelo consumo que se transformou numa real cultura consumista) estão sendo pilhados todos os recursos e serviços possíveis da Mãe Terra.

Nos últimos tempos, cresceu a consciência coletiva de que se está travando um verdadeiro duelo entre os mecanismo naturais da vida e os mecanismos artificiais de morte deslanchados por nosso sistema de habitar, produzir, consumir e tratar os dejetos. As primeiras vítimas desta guerra total são os próprios seres humanos. Grande parte vive com insuficiência de meios de vida, favelizada e superexplorada em sua força de trabalho. O que de sofrimento, frustração e humilhação ai se esconde é inenarrável. Vivemos tempos de nova barbárie, denunciada por vários pensadores mundiais, como recentemente por Tsvetan Todorov em seu livro O medo dos bárbaros (2008). Estas realidades que realmente contam porque nos fazem humanos ou cruéis, não entram nos calculos dos lucros de nenhuma empresa e não são considerados pelo PIB dos países, à exceção do Butão que estabeleceu o Indice de Felicidade Interna de seu povo. As outras vítimas são todos os ecossistemas, a biodiversidade e o planeta Terra como um todo.

Recentemente, o prêmio Nobel em economia, Paul Krugmann, revelava que 400 famílias norte-americanas detinham sozinhas mais renda que 46% da população trabalhadora estadunidense. Esta riqueza não cai do céu. É feita através de estratégias de acumulação que incluem trapaças, superespeculação financeira e roubo puro e simples do fruto do trabalho de milhões.

Para o sistema vigente e devemos dizê-lo com todas as letras, a acumulação ilimitada de ganhos é tida como inteligência, a rapinagem de recursos públicos e naturais como destreza, a fraude como habilidade, a corrupção como sagacidade e a exploração desenfreada como sabedoria gerencial. É o triunfo da morte. Será que nesse duelo ela levará a melhor?

O que podemos dizer com toda a certeza que nessa guerra não temos nenhuma chance de ganhar da Terra. Ela existiu sem nós e pode continuar sem nós. Nós sim precisamos dela. O sistema dentro do qual vivemos é de uma espantosa irracionalidade, própria de seres realmente dementes.

Analistas da pegada ecológica global da Terra, devido à conjunção das muitas crises existentes, nos advertem que poderemos conhecer, para tempos não muito distantes, tragédias ecológico-humanitárias de extrema gravidade.

É neste contexto sombrio que cabe atualizar e escutar a mensagem da Páscoa. Possivelmente não escaparemos de uma dolorosa sexta-feira santa. Mas depois virá a ressurreição. A Terra e a Humanidade ainda viverão.

Fonte: CEBI

sábado, 23 de abril de 2011

Mensagem de Páscoa de um ateu

Por Ricky Gervais, no The Wall Street Journal

No último Natal escrevi um texto chamado “Uma mensagem de festas de Ricky Gervais: porque eu sou ateu”.

O Wall Street Journal o reproduziu e isso causou um certo rebuliço. Pediram-me até para responder a alguns dos comentários. Nesta Páscoa pensei em fazer outro texto. Aqui está:

Mensagem de Páscoa de Rick Gervais: porque sou um bom cristão

O título deste texto pode parecer um pouco enganoso, ou pelo menos enigmático. Naturalmente, não sou um bom cristão como os que dizem acreditar que Jesus era metade homem e metade Deus. Mas certamente acredito que sou um bom cristão comparado com um monte de cristãos que conheço.

Não que acredite que os ensinamentos de Jesus, se fossem seguidos, não fariam desse um mundo melhor. É que eles raramente são seguidos.

Gandhi conseguiu resumir bem isso. Ele disse: “Gosto do seu Cristo, mas não gosto de seus cristãos. Seus cristãos são tão diferentes de seu Cristo”.

Sempre me senti assim, mesmo quando acreditava em Deus. De um modo estranho, sinto que ainda sou um “cristão” muito bom, que apenas não acredita em Deus.

Muitos cristãos acreditam que pelo fato de acreditar no Deus certo, são automaticamente bons e têm uma passagem só de ida para a vida eterna. Atrevo-me a dizer que suspeito ser essa a razão principal para eles acreditarem. Já ouvi tantos “crentes” dizendo: “Bem, já que não há como ter certeza se há um Deus ou não, é melhor acreditar em Deus do que não acreditar. Sendo assim, se você estiver errado não fará diferença, e se você estiver certo, ganha a vida eterna”. Assim todos ganham.

Este é o conhecido desafio de Pascal. Presume que Deus, se ele existir, recompensaria a fé cega mais que a lógica de viver uma boa vida sendo ateu.

Aliás, para o Deus dos cristãos é tão ruim acreditar no deus errado quanto não crer em deus nenhum. A ideia de outros deuses é certamente ridícula para os cristãos. Tolices sobrenaturais. Como se existisse um Zeus; superstição estúpida, antiga e ignorante. E mesmo que existissem outros deuses (e certamente não existem), então o Deus dos cristãos é o melhor. Mais forte, mais esperto… simplesmente melhor. Ele riria de Zeus e o chamaria de um bêbado grego. (Duvido que Deus seja racista e homofóbico, mas a Bíblia não é clara. Algumas vezes fala sobre amor e igualdade e outras diz que você não deve confiar em certas pessoas, e que deitar com um homem como faria com uma mulher é algo punível com a morte, um pouco doentio e maligno).

Então lembre. Se você é gay, está “dando pinta para Satanás” (isso daria uma camiseta bastante engraçada).

Jesus era um homem (e se você esquecer toda essa besteira sobre ser metade Deus e acreditar nos atos sobrenaturais atribuídos a ele; era um homem cujas palavras sábias muitas pessoas ainda seguiriam). Sua mensagem era geralmente sobre perdão e bondade.

Estas são virtudes maravilhosas, mas tenho visto elas serem rejeitadas por muitos dos chamados tementes a Deus, quando isso lhes convém. Eles basicamente escolhem o que lhes interessa obedecer do seu “livro de regras”. Tenho visto tanta crueldade e preconceito demonstrado em nome do Cristianismo (e de muitas outras religiões também) que me faz pensar se não há um exagero na leitura seletiva da Bíblia e na reinterpretação das doutrinas.

Deus ou não, se eu pudesse mudar uma coisa para um mundo melhor, seria que toda a humanidade seguisse essa pequena jóia: “Aquele que não tem pecado atire a primeira pedra”. Garanto a você que nenhuma pedra jamais seria atirada novamente.

Então, talvez devêssemos voltar ao básico, para tentar descobrir como tudo ficou confuso.

Os Dez Mandamentos

Os Dez Mandamentos são encontrados no Antigo Testamento da Bíblia. Livro de Êxodo, capítulo 20. Eles foram dados diretamente por Deus ao povo de Israel no Monte Sinai, depois que ele os libertou da escravidão no Egito:

“Então falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o Senhor teu Deus”.

Então vamos fazer o teste. Quantos desses você já quebrou?

UM – “Não terás outros deuses diante de mim.”

Eu definitivamente não tenho. Excelente. Ganho um ponto.

DOIS – “Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.”

Isso significa, basicamente, não fazer ou adorar uma estátua religiosa ou se prostrar diante isso pensando que é algo santo. Confere​​. Outro ponto para mim.

TRÊS – “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão.”

Nunca faço isso. Mas deixe-me explicar algo. A maioria das pessoas pensa que o terceito mandamento significa que não devem usar seu nome como palavrão, por exemplo gritando “Oh, meu Deus!” quando batem o dedinho do pé em vez de “Ah, que m****!”.

Esse não é o caso (embora eu goste da idéia de que Deus prefere que eles gritem “m****” em vez de falar “Deus”. Isso é legal. Mas não).

O mandamento também poderia ser: “Você não deve ter o nome do Senhor teu Deus por ‘vaidade’, por exemplo, quando o seu inimigo é ferido ou derrotado, dizendo: ‘isso é a ira de Deus’, ou quando você ganha um prêmio, dizendo: ‘graças a Deus’.”

Isso é usar o nome dele por vaidade. Sugere que você sabe que Deus o ajudou a ganhar algo porque merecia mais que os outros, ou porque estava do seu lado. Sempre me divertiu a ideia que Deus ganharia como ator favorito no Globo de Ouro, caso concorresse.

De qualquer forma, ganho outro ponto. Acho que a maioria dos não-ateus perderá um ponto aqui.

QUATRO – “Lembra-te do dia do sábado, para santificá-lo.”

Antes de pontuar isso, precisamos descobrir o que realmente significa quando Deus nos ordena a santificar o dia de sábado. Nessa compreensão o que vale é a verdadeira intenção da palavra de Deus, não importa que dia da semana celebramos o sábado.

Não havia calendários quando Deus criou os céus e a terra, logo não sei que dia ele começou e terminou. Não deixe que o “dia” torne-se mais importante do que a “intenção”.

Se olharmos para a parte de Os Dez Mandamentos que se refere a isso, Êxodo 20:8-11, parece ser algo bem específico:

8 Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. 9 Seis dias trabalharás, e farás todo o teu trabalho; 10 mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas. 11 Porque em seis dias fez o Senhor o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou; por isso o Senhor abençoou o dia do sábado, e o santificou.

De acordo com a Bíblia, Deus mandou santificar esse dia. Mas o que isso realmente significa?

O trabalho é basicamente o que fazemos para ganhar a vida, ou o trabalho que fazemos em casa, ou qualquer trabalho que tomemos parte diariamente. Então, se nunca trabalhamos significa que todo dia seria santo? Não. Isso absolutamente não é ser santo. Em vários lugares na Bíblia somos informados de nossa necessidade de trabalho, que nosso trabalho honra a Deus. Então, basicamente você tem de trabalhar o equivalente a seis dias por semana com um dia de folga.

Eu faço isso. Logo, recebo um outro ponto.

CINCO – “Honra a teu pai e a tua mãe.”

Acho que ganho um ponto se mais alguém ganhar também com esse aqui.

SEIS – “Não matarás.”

Não faço isso. Confere.

SETE – “Não adulterarás.”

Não faço isso. Confere.

OITO – “Não furtarás.”

Não faço isso. Confere.

NOVE – “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.”

Não faço isso. Confere.

DEZ - “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.”

Não faço isso. Confere. Outro ponto para mim.

Nada mau para um ateu.

Eu fiz 10 dentre 10.

E você, como foi?

Mesmo que isso não prove que sou um bom cristão, prova que a Bíblia é um pouco inconsistente, aberta à interpretação e até mesmo um pouco intolerante.

Isso não é característico do cristianismo, para ser justo. E eu gosto de ser justo. Porque ao contrário de TODAS as religiões, sendo ateu, eu trato todas as religiões do mesmo modo.

Fonte e Tradução: Agência Pavanews (PavaBlog)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Senhor, obrigado pelo herege!

Por Elienai Cabral Junior

Minha admiração pelos hereges é indisfarçável. Eles mexem com os meus desejos mais escondidos. São capazes de me sensibilizar mais que quaisquer outros. Falam a minha alma. Adrenalizam meus pensamentos. Suas déias desconcertantes é que me fazem continuar vivo.

Eu confesso, preciso de suas heresias como da endorfina espalhada pelo meu corpo ao fim de cada corrida. Como um prazer vital. A estética da alma. A cada exercício fico suado e mais feliz. A cada heresia, desestabilizado e mais humano.

Mas antes que minha declaração de amor e gratidão aos hereges seja confundida com um delírio, preciso expor meus motivos e compreensões. Estou certo de que ganharei sua companhia em meus afetos.

Heresia é uma escolha e essa é a sua gravidade. A conceituação não é aleatória. A palavra grega para a ‘heresia’ que conhecemos é haíresis, seu significado literal é ‘escolha’. Heresia é como chamamos algo que não deveria ser escolhido como algo a dizer. Herege é o que faz a escolha que, mesmo podendo ser feita, não deveria.

Mas heresia nunca é um nome que quem nela incorre se dá. É uma palavra que apenas se encontra na boca de quem se sente contrariado, nunca na boca de quem contraria. Herege não é como quer se sentir quem discorda de um pensamento.

Herege é como quem sofre a oposição de idéias precisa que se sinta quem ousa fazê-lo. Porque a escolha feita por quem sofre a sentença de que é um herege é a escolha de não se submeter à hegemonia representada por quem pode assim sentenciar. Portanto, heresia não é uma questão sobre a verdade das coisas. Mas sobre quem manda de verdade.

Rubem Alves fala dos fortes e dos fracos como uma relação marcada pela heresia. “A heresia é a voz dos fracos. Do ponto de vista dos sacerdotes, os profetas sempre foram hereges. Do ponto de vista dos fariseus e escribas, Jesus foi também herege. E, como as Escrituras sistematicamente se situam ao lado dos fracos contra os fortes, é melhor dar mais atenção às heresias do que às ortodoxias.

É preciso situar a heresia, portanto, nas relações de poder. Quem levanta a suspeita de heresia não é quem está ingenuamente interessado na verdade, mas quem precisa se livrar de alguém que ameaça sua condição de dono da razão. O herege assalta o que se sente no direito de ter a última palavra.

Quem se sente com a última palavra é aquele que pratica o poder mais que o pensamento. Quem pratica o poder busca sempre se afirmar em detrimento do outro, do diferente. É preciso esvaziar de valor aquele que ameaça sua condição de superioridade.

Declarar que alguém é um herege é bem mais que dizer que ele discorda de suas idéias. Mas é fazer convergir sobre ele toda a violência acumulada em uma sociedade por seus medos, culpas, inadequações, acidentes, injustiças, frustrações. O herege é como o “bode expiatório” de René Girard. Alguém sobre quem incide a violência de todos em um acordo social silencioso, em uma compensação inconsciente.

Como aconteceu na tradição cristã com a personagem Judas Escariotes, aquele que traiu. Todos vacilaram e negaram fidelidade a Jesus, mas apenas Judas encarnou, no imaginário coletivo, o mal da humanidade. Como as bruxas na Idade Média, responsabilizadas por todas as desventuras de uma sociedade, eliminá-las era livrar-se do próprio mal humano.

Com o herege parece ser repetida a mesma mística coletiva e inconsciente. Ele é o culpado pela instabilidade da vida. Declará-lo herege é eliminá-lo de sua influência no destino de uma comunidade, como quem se livra do próprio mal da humanidade. Em uma sociedade ocidental do século XXI a fogueira tornou-se simbólica, mas não menos violenta. Destruído em sua integridade, o herege tem sua humanidade apagada. Suas palavras são pulverizadas e perdem o poder legítimo de interação.

Alguém sob a suspeita de heresia é sempre ouvido por todos com pedras nas mãos. Como nas cenas freqüentes dos evangelhos, quando os religiosos acusavam Jesus de blasfemar contra Deus ao se afirmar como um ser que sua religião não concebia: Filho de Deus. Em suas mãos, registra bem o detalhe quem narra, já estavam as pedras preparadas para serem desferidas em punição contra o blasfemo. O herege é alguém cujas idéias são ouvidas com as pedras nas mãos.

Há quatro palavras que precisam se associar para uma melhor compreensão do fenômeno herege. Instituição, ortodoxia, contingência e heresia.A instituição é via de mão única para um ser finito não entrar em inércia. Ninguém segue em frente em nenhum projeto ou relação sem institucionalizar.

Ninguém precisa parar e organizar friamente uma instituição para que ela surja. Basta seguir em frente no desenvolvimento natural de qualquer projeto ou relação.

Porque instituir é estabelecer a memória de uma viagem feita em comum com outros viajantes. Esta memória é constituída pelos hábitos, critérios, compromissos, regras, objetivos e teorias confeccionados ao longo do caminho. Eles são o mapa do caminho que já se fez e o que ainda precisa ser feito.

Sem esses valores nos transformamos em Sísifos, cujos trabalhos nunca se concluem. Sísifo foi o deus da mitologia grega conhecido por sua esperteza.

Por várias vezes conseguiu enganar Tanatos e Hades, deuses da morte e dos mortos. Ao morrer de velhice, Sísifo foi condenado a rolar montanha acima uma pedra de mármore. Cada vez que se aproximava do topo a pedra rolava montanha abaixo de novo com uma força insuperável, obrigando a começar de novo sem nunca terminar a tarefa.

Uma instituição é assim. Uma igreja, para falar mais de perto, precisa de uma programação a ser cumprida como uma agenda sagrada. São seus cultos. De uma linguagem que expresse suas crenças nos cultos. É a sua liturgia. De um conteúdo que responda aos seus questionamentos. É a sua pregação. De idéias que solidifiquem sua fé.

São seus dogmas. De pessoas que zelem por seus valores. É a sua hierarquia. É a memória que se cria ao longo de um caminho de fé compartilhado. Esta memória é que dará condição de sustentar um projeto com o passar do tempo, conquistando a confiança daqueles que a ele aderem e que anseiam por estabilidade. Esta adesão em busca de estabilidade é que autoriza a instituição.

A autoridade de uma instituição é o modo como é mistificada. A instituição, seja ela casamento, igreja, estado, partido político, agremiação, clube, faz o discurso, sempre e necessariamente, convincente de que é a resposta mais confiável para satisfazer determinadas necessidades ou aspirações. É a resposta persuasiva de que veio para ficar de tão pertinente.

O que a torna, então, um valor que precisa ser religiosamente perpetuado, com o risco de se desperdiçar algo essencial para a vida. Não demoram tanto, muitos estarão persuadidos sobre sua hegemonia: ela é a melhor resposta.

Sua perpetuidade: parece que sempre foi assim e, portanto, não deve ser de outro jeito. Sua heteronomia (uma regra que vem de outro): um deus a determinou, logo, é sagrada. Sua intocabilidade: opor-se a ela é quebrar um ciclo sagrado e, por isso, provocar a ira dos deuses, ou de Deus.

Mas curiosamente, a força que a torna necessária, a princípio, é a mesma que a fará questionável, depois. A contingência. Essa é a dinâmica da vida, sua “irresistível leveza de ser”, como no romance de Milan Kundera. A vida é fluida demais para ser emoldurada por uma instituição. O que hoje é, amanhã não mais será. Lulu Santos e Nelson Mota compuseram uma das mais belas canções que conheço: “Como uma onda no mar”, nela os poetas retratam a fluidez da vida. Uma de suas estrofes diz: “Tudo o que se vê não é / Igual ao que a gente viu a um segundo / Tudo muda o tempo todo no mundo / Não adianta fugir / nem mentir pra si mesmo agora / Há tanta vida lá fora / Aqui dentro sempre / Como uma onda no mar!”

A vida não se repete. É inédita, imprevisível e incontrolável. As necessidades que geraram determinada instituição e suas respostas ou deixam de existir ou mudam.

Tornam-se mais complexas ou sem importância diante das outras e novas necessidades. Se mudam as necessidades, ou se deixam de existir para existirem outras, mudam também as perguntas ou novas questões se impõem. É nessa dinâmica que surgem os hereges, “como uma onda no mar”. Como aqueles que ousam sugerir as novas respostas para as perguntas que ninguém quer ouvir. Quebram o encanto da estabilidade falando do que não estava previsto ou do que não era plausível dentro das teorias da instituição.

O herege é um desritmado. Todos dançam na mística do que está instituído, em seu único ritmo. O herege por razões várias sai do ritmo. Viveu uma crise, divagou em um insight, sentiu-se entediado e insatisfeito, intuiu variações possíveis.

Qualquer ou quaisquer coisas que quebrem a seqüência e a unanimidade podem fazê-lo perceber o diferente. Ao sair do ritmo descobre uma nova possibilidade de dançar no mesmo salão. Descobre o improviso e o contratempo. Percebe que é possível, faz sentido e é bom ser diferente.

Thomas Kuhn chama o fenômeno que inicia a quebra de um paradigma de anomalia, um fator não explicado satisfatoriamente pela Ciência Normal. Até que um cientista, desprovido de muitas explicações, movido mais por intuição que por certeza, arrisca uma outra e heterodoxa explicação.

Logo terá em torno de si outros cientistas que também trabalharão com o candidato a novo paradigma até que ele venha a se tornar a Ciência Normal. O herege é como o cientista que, diante do acúmulo de perguntas não respondidas, destoa arriscadamente do modo como se vinha fazendo e explicando as coisas.

Mas há ainda outra palavra a ser associada para a compreensão do fenômeno herege, a ortodoxia. Ela é o discurso a serviço da instituição.

Tem o seu bom valor em seu tempo real. Em determinadas condições aquelas respostas eram boas o bastante para serem levadas a sério e às últimas conseqüências. Ninguém constrói uma crença sem acreditar que ela faz sentido, que precisa ser ampliada e deve ganhar a coerência interna de seus argumentos.

Tanto quanto é relevante o bastante para ser objeto de persuasão do maior número de pessoas. Mas o grande problema da ortodoxia não é ela mesma e sim os ortodoxos.

Os ortodoxos são aqueles que atrelam ao discurso da ortodoxia seus valores pessoais. Um discurso feito sempre se confunde com o valor próprio de quem o publica. Quem doutrina sente a necessidade de perpetuar o pensamento ora defendido como quem salva a própria pele. São os ortodoxos que por auto-afirmação precisam sustentar a hegemonia de um pensamento: uma ortodoxia.

A perpetuação de uma doutrina a todo custo é sempre auto-perpetuação. Os estudiosos da psicologia interativa tratam da relação da fala com as paixões ideológicas. Uma vez que alguém se pronuncie a favor de determinada posição tende a associá-la a seu valor pessoal e, em defesa deste valor, lutar incansavelmente. Por isso o engajamento e a passionalidade. Certamente é por essa razão que quando alguém discorda de uma ortodoxia sofre uma reação tão violenta dos ortodoxos. Porque feriu sua própria carne.

Sem os ortodoxos a ortodoxia seguiria seu curso finito e natural: a morte. Mas como a morte de uma ortodoxia é o fim dos valores de um ortodoxo e de sua auto-perpetuação, é preciso impedi-la como quem luta contra a própria morte.

Com o desenvolvimento das novas tecnologias na medicina, passamos a conviver com mais uma difícil ambigüidade. Algumas pessoas, ao fim anunciado de suas vidas, que já deram sinais de extrema debilidade física e, às vezes, de morte ‘existencial’, porque já não mais respondem às conversas, nem demonstram qualquer afetação emocional, mas estão tecnicamente vivas, sobrevivem mecanicamente.

São assim mantidas pelo enorme recurso tecnológico da ciência médica, com os antibióticos cada vez mais potentes, os aparelhos que substituem o funcionamento de órgãos vitais e o monitoramento fino que rastreia qualquer aproximação da morte. É a morte adiada. A complexidade está em definir até que ponto se pode manter um corpo vivo artificialmente sem o comprometimento ético da vida.

Afinal de contas somos seres finitos e a morte é o destino natural de todos. Fico sempre com a sensação de que se macula a dignidade de quem precisa se despedir com naturalidade da vida, mas é tecnicamente impedido.

Decidir por não usar recursos que vão apenas adiar a morte e protelar uma vida vegetativa, já tão bem anunciada, é muito difícil. Mas pode ser uma alternativa mais digna e, por que não, mais reverente à vida. Sei que o assunto é mais complexo do que minha intenção de que apenas sirva como ilustração.

A ortodoxia parece seguir a mesma terrível ambigüidade. Já não responde mais ao seu tempo como outrora. Tem aporias diversas em seu interior que comprometem sua pertinência. Não se comunica mais com as pessoas ao seu redor. Mas é mantida viva pela mística da instituição e o monitoramento zeloso dos ortodoxos. A ortodoxia morre existencialmente, asfixia quem a ela está sujeito, combate com altas doses de apologia seus oponentes, mantém com culpa muitos ao redor de si e impede que a vida prossiga com a fluidez que a torna tão surpreendente e bela.

A heresia é a reverência à vida quando se escolhe não adiar a morte de uma ortodoxia. São as línguas confundidas do mito da Torre de Babel na Bíblia. Desaba a torre com suas pretensões de poder eterno, mas a vida se espalha sobre a terra em sua rica diversidade. A confusão da linguagem libertou a humanidade da escravidão da ortodoxia. E no mito babélico, Deus é o grande herege: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros. (...) Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi lá que Iahweh confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi lá que ele os dispersou sobre toda a face da terra".

Mas não foi a primeira e a única vez que Deus agiu hereticamente ou se colocou ao lado dos hereges. A história dos profetas confirma a sacralidade das heresias. Chama à atenção a profecia de Jeremias. Enquanto grassa entre o povo a idéia otimista de que tudo estava bem e que o futuro seria de paz e prosperidade, Jeremias contrapõe. Denuncia as ruínas da nação dos judeus e anuncia a tragédia que bate a porta.

Todos se revoltam, alguém feriu a ortodoxia de uma ilusão. O profeta herege é lançado ao calabouço para que a sua voz não fale o que todos não aceitam que se diga. Somente depois, tudo o que o profeta-herege vaticinou fez sentido na mente de todos. Sem sua heresia, sequer haveria lucidez e aprendizado no meio da destruição da nação. Mas essa história é a história freqüente dos profetas, razão porque Deus se queixou do modo como o povo perseguia os profetas.

Mas a maior e redentora heresia de todos os tempos foi a encarnação de Deus. Deus feito gente, Cristo Jesus. Sua relação com a ortodoxia de então foi de profunda tensão: “ele veio para o que era seu e os seus não o receberam. Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus: aos que crêem em seu nome.”

Jesus não foi o que a ortodoxia de sua religião e cultura determinava que fosse, uma reafirmação sobrenatural e violenta do judaísmo frente ao poder ultrajante dos romanos. Ele foi uma negação pacífica e radicalmente humana da pretensão sempre perversa de qualquer tipo de dominação sobre quem quer seja.

Não foi pela prática da força que Jesus anunciou a chegada do Reino de Deus. Ele escolheu praticar a fraqueza em uma cultura de forças, o amor que amadurece contra o poder que infantiliza. Acolheu a humilhação em uma disputa cujas armas eram a imponência e a ovação popular. Espalhava quando todos queriam aderir. Escondia-se quando todos reivindicavam visibilidade. Pedia silêncio quando os resultados serviam a mais poderosa propaganda.
Questionava e afligia as mentes quando muitos pressionavam pelas respostas simplistas e conclusivas. Era agressivo quando o mais politicamente estratégico era a polidez. Era Jesus quando todos esperavam um outro Cristo.

Jesus foi o vinho novo que reivindicou um novo odre, ou um tecido novo em negação aos remendos que apenas adiavam o fim de uma cultura e espiritualidade esgarçadas por suas contradições.

A cruz era a mão mais pesada do poder dominante. A mão forte do Império que só se justificava contra a mais terrível ameaça. Tanta força e violência convergindo sobre alguém tão frágil e suscetível – "como uma ovelha muda que vai para o matadouro”, que não desejou os tronos instituídos de Roma ou dos judeus, tiveram ação reversa.

Refluíram contra os próprios autores, contra os poderosos de Roma e dos Judeus, como uma exibição de sua mesquinhez e tolice. A morte de Jesus foi a vitória da vida contra as forças mórbidas da ortodoxia. O Cristo morto desmascarou o perverso e tolo poder das instituições e ortodoxias sobre a vida e libertou a humanidade de sua tirania. O que parecia um poder inquestionável tornou-se um poder idiotizado.

A ressurreição de Jesus é muito mais que a vingança de Deus contra o mal. A ressurreição é insurreição. É Deus se insurgindo ao nosso lado contra toda e qualquer forma de sentença final sobre a vida humana. Jesus ressuscitando é Deus se insurgindo a favor da vida. Contra todas as forças que pretendem congelar a vida para perpetuar poderosos. A ressurreição é a heresia de Deus contra a ortodoxia da morte.

Por isso, Senhor, obrigado pela heresia.