quarta-feira, 21 de março de 2012

'Ninguém jamais viu a Deus' - o Pai e o Filho no outro

Por Osvaldo Luiz Ribeiro, biblista e exegeta.

O título deste artigo é uma citação de João 1,18. É uma afirmação importante no conjunto da teologia joanina, porque Jo 6,46 vai insistir nela: “não que alguém tenha visto o Pai”, e 1 Jo 4,12 vai praticamente repeti-la: “ninguém jamais contemplou a Deus”. Importante também porque ela sempre se faz acompanhar de um contraponto. Em Jo 1,18, diz-se que “o Filho Único, que estava voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer”; em Jo 6,46, inscreve-se uma ressalva teológica: “só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai”; e, finalmente, não tão evidentemente, 1 Jo 4,12 desenvolve o tema do “estar com Deus”, apesar de não se poder “ver Deus”, consoante o argumento do “amor ao outro” (1 Jo 4,11-16), porque Deus está no outro (cf. 11 Jo 4,17-5,4, especialmente 4,20).

Por essa linha de argumentação, a afirmação de que ninguém jamais viu a Deus parece deixar de ser apenas uma afirmação teológica, e se converte no arrimo de uma afirmação apologética, de defesa de uma determinada configuração de fé. Penso assim, porque, se ao mesmo tempo em que se diz que ninguém jamais viu a Deus, se diz que só o Cristo viu a Deus, devo inferir que o que se pretende é afirmar que só o Cristo tem algo a dizer efetivamente válido sobre o Pai, sobre Deus, porque só ele o viu. Só no Cristo o Pai está...

Aliás, toda a argumentação do prólogo do Evangelho, e do prólogo da primeira epístola joanina é justamente essa – dizer que o “verbo” foi encarnado (Jo 1,14), logo, visto, ouvido, tocado (1 Jo 1,1-3). Essa ênfase na encarnação do verbo, na carnalidade, na corporeidade do Cristo, condiz com o argumento de que o Filho viu o Pai, coisa que nenhum outro o teria feito. Sim, porque então se produz o seguinte efeito apologético, de defesa: ninguém jamais viu o Pai à o Filho viu o Pai à o Filho/Verbo se fez carne à “nós” (leia-se “João”, ou seja, a comunidade joanina por trás do Evangelho e das epístolas joaninas) viram e ouviram o verbo, e tocaram nele à “nossa” alegria pode ser completa, isto é, porque agora pudemos ver, ouvir e tocar, porque o Filho revelou o Pai.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Em nome de Jesus

Por Paulo Brabo, escritor.

O drama da narrativa bíblica reflete, em muitos sentidos, um árduo esforço divino para eliminar da mente humana o conceito de magia: a noção de que, através de fórmulas mágicas ou procedimentos estabelecidos, Deus ou o universo podem ser manipulados para atingirmos o objetivo que temos em mente.

Desde a primeira página, um dos traços mais distintivos do Deus das Escrituras é que ele não faz barganhas. Não há ritual ou palavra mágica que possa torcer o seu braço a fazer o que queremos. Se Deus concede o que homens lhe pedem é reflexo da sua magnanimidade e da intimidade de relacionamento que ele propõe, jamais da habilidade humana em manipulá-lo.

Essa obsessão divina em apagar da experiência humana a idéia da magia explica muito nas filigranas dos mandamentos e da Lei de Moisés. Israel não deve ter “outros deuses além de mim”, entre outras coisas, porque os deuses dos outros povos são entidades manipuláveis – aceitam suborno, dobram-se diante do ritual certo, vendem-se por um sacrifício, negociam, especulam e cedem a barganhas. Deus sabe que não é assim que o seu universo funciona, e não quer que seu povo adote essa visão distorcida do mundo. Pela mesma razão ele deita rigorosas proibições contra feitiçaria, amuletos e toda espécie de adivinhação.

quinta-feira, 8 de março de 2012

A Audição e o Dia da Mulher

Por Bianca Assis, educadora.

“Veja a única coisa maior que você”

Alex Haley, escritor americano do livro -Negras Raízes-, cresceu ouvindo histórias do seu avô sobre seu antepassado africano, Kunta Kinte, de nobres tradições tribais, raptado por quatro homens enquanto andava na floresta, sendo acorrentado e levado como escravo para a América. Contar histórias foi a forma encontrada para que as gerações não perdessem a identidade.

A frase que me marcou aparece no oitavo dia de vida do menino Kunta, após o ritual em que recebera seu nome. O pai, Omoro, sozinho com o filho o leva até a floresta, o levanta alto, voltado para o firmamento e diz em seu ouvido:
“Veja a única coisa maior que você”.

O homem e a mulher tem valor intrínseco. Inquestionável. Mas este texto foi importante por exibir a reverência pelo que é maior do que nós. O que não cabe no vocabulário.

“Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo.”
-Wittgeinstein-

O mundo que é do tamanho do que a razão consegue apreender é pequeno demais, no mínimo, menor do que você. [Neste texto vou focar nas relações humanas, mas eu poderia desenvolver esta ideia relacionando-a ao mistério do mundo, ao divino, ao indizível.] O fato de alguém nunca ter tido contato com qualquer tipo de opressão deve ser motivo de gratidão, mas não lhe dá direito de reduzir o empenho da luta dos oprimidos cruelmente em seus mais diversos contextos. Sendo minoria ou maioria. A linguagem é fruto de determinada vivência, e esta reflete as fronteiras de cada mundo.

Lamentar o fato de que algum ser humano se suponha maior ou menor é óbvia. As opressões provenientes de homens ou mulheres que alegaram ter algum direito de dominar outra vida e as diversificadas formas [conscientes ou não] de fazê-lo, é grave e repugnante.

Hoje, no dia 08 de março de 2012, Dia Internacional da Mulher, eu, mulher, queria sugerir que a fala e a audição são fatores marcantes na construção dessas relações.

A FALA:
“Os movimentos de vários músculos que fazem as cordas vocais vibrarem e produzirem sons.”

A fala é ativa. É a característica masculina. Vem de dentro para fora. Rubem Alves diria que a fala é fálica, é a capacidade de penetrar o vazio que a aguarda, em forma de palavras, ruídos, canções. A fala é o semear, é o fecundar: O cérebro engravida, floresce de ideias.

A AUDIÇÃO:
“É a capacidade de reconhecer o som emitido pelo ambiente. O órgão responsável pela audição é o ouvido. As ondas sonoras chegam até o aparelho auditivo, fazem o tímpano vibrar, as vibrações viram impulsos nervosos que são transmitidos ao cérebro pelo nervo auditivo.”

A audição é o vazio sem o qual a fala não faz sentido. É a característica feminina de receber a semente, de acolher em si o mundo, de conceber e transformar através do que se recebe. Não é exclusiva das mulheres, a audição é a manifestação feminina necessária em toda a humanidade, assim como a fala, a característica masculina que em todos deve se manifestar.

A fala representa a ideia. É instrumento de poder, que pode ser agradável, comovente e transformadora, mas quando abusiva e autoritária, fere, agride, violenta. Pode ser tanto a fonte das opressões quanto a representação da conquista da dignidade.

A audição é condição para alcance da mente. Só quando o vazio se oferece, há fecundação, frutificação, Vida.

Com isso, queria que a característica feminina celebrada do dia, e fundamental em cada homem e em cada mulher, imprescindível para o desenvolvimento do mundo, levasse seu merecido destaque. Nada de lógicas invertidas, e de mulheres impenetráveis abusando de suas falas. Nada de homens incapazes de serem fecundados e transformados pela contato com os/as semelhantes.

Feliz dia Internacional das Semelhantes.
Vamos todos OUVIR?

“O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas, o que sai da boca, isto é o que contamina o homem.” Mat. 15:11.

“Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele isto é o que contamina o homem.” Mar. 7:15

“Sabeis isto, meus amados irmãos; mas todo o homem seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar.” Tiago 1.19


terça-feira, 6 de março de 2012

Agressividade e comportamento sexual

Por Drauzio Varella, médico e escritor.

“Não existe atividade, movimento ou comportamento que não seja influenciado por um programa genético.” A frase é de Ernst Mayr, um dos maiores biólogos do século 20.

Há cerca de um ano comentei nesta coluna uma pesquisa publicada na revista Cell, sobre o papel de um gene (batizado de fru) no comportamento sexual das drosófilas, as mosquinhas que sobrevoam bananas maduras; modelo de inúmeros estudos genéticos.

O gene fru se caracteriza por coordenar um circuito de 60 neurônios responsáveis pela condução de estímulos sexuais. Basta lesar um deles para que o inseto não consiga se acasalar adequadamente.

Na pesquisa, autores austríacos transplantaram a versão masculina do gene fru das drosófilas, para um grupo de fêmeas. E, num experimento paralelo, a versão feminina do mesmo gene, para um grupo de machos.

Para espanto geral, as fêmeas que receberam a versão masculina de fru, quando levadas à presença de outra fêmea, adotavam os rituais de comportamento sexual masculino: quando colocadas em ambientes com moscas de ambos os sexos, perseguiam sexualmente outras fêmeas sem dar a mínima para o sexo oposto. Ao contrário, quando a versão feminina de fru foi transplantada para os machos, eles se tornaram mais passivos, indiferentes à presença das fêmeas e atraídos por outros machos.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Inseridas e entrelaçadas

Por Orígenes de Alexandria (185-254 AD), teólogo e filósofo.
Tradução: Paulo Brabo

Ora, qual pessoa provida de entendimento irá considerar admissível a declaração de que o primeiro, o segundo e o terceiro dia, nos quais são mencionados tanto tarde quanto manhã, tenham existido sem sol, lua e estrelas – o primeiro dia até mesmo sem um céu? E quem se mostrará ignorante o bastante para supor que Deus, como se fosse um lavrador, tenha plantado árvores no paraíso, no Éden no leste, e nela uma árvore da vida – isto é, uma árvore de madeira visível e palpável, da qual quem comesse com dentes físicos obteria vida, e se comesse também da outra árvore, adquiriria o conhecimento do bem e do mal? Não creio que alguém duvidará de que a declaração de que Deus caminhava ao entardecer no paraíso, e que Adão tenha se escondido debaixo de uma árvore, estejam narrados figurativamente na Escritura, e que algum significado místico esteja sendo indicado por ela. O afastamento de Caim da presença do Senhor irá manifestamente levar o leitor atento a ponderar sobre o que é a presença de Deus, e de que forma alguém pode afastar-se dela. Porém, sem estendermo-nos além dos devidos limites na tarefa que temos diante de nós, será muito fácil, para quem quiser, distinguir na Escritura sagrada aquilo que está registrado como tendo de fato acontecido, mas que no entanto não se pode crer tenha ocorrido de modo racional e concebível da forma como foi historicamente narrado.

O mesmo estilo de narrativa escritural ocorre abundantemente nos evangelhos, como quando se diz que o diabo levou Jesus a uma montanha muito alta, a fim de mostrar-lhe dali todos os reinos do mundo e a glória deles. Como poderia ter literalmente acontecido, quer que Jesus se deixasse levar pelo diabo a uma montanha muito alta, quer que o diabo pudesse mostrar a ele todos os reinos do mundo (como se jazessem todos debaixo de seus olhos mortais, e adjacentes à montanha), isto é, os reinos dos persas, dos citas e dos hindus? Como poderia ter-lhe mostrado os modos pelos quais os reis desses reinos recebem glória dos homens? E tantas outras instâncias similares a esta se podem encontrar nos evangelhos por qualquer um disposto a lê-los com atenção, que notará que nas narrativas que parecem ter sido ser literalmente registradas estão inseridas e entrelaçadas coisas que não podem ser admitidas historicamente, mas podem ser aceitas num sentido espiritual.