quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Sínodo dos Bispos atualizou o Concílio Vaticano II

Para o teólogo Johan Konings, o Sínodo dos Bispos de 2008 teve a intenção de continuar e de atualizar o Concílio Vaticano II. Ele afirma que o sínodo “foi uma oportunidade para conhecer a situação e os projetos das mais diversas regiões onde a Igreja está presente neste mundo globalizado”. E conclui que “não se deu um passo para trás em relação ao Concílio, mas que, pelo contrário, se mostrou uma vontade unânime de avançar”.

Johan Konings participou XII Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, realizada de 5 a 26 de outubro, no Vaticano. Ele classifica o evento como “fabuloso”. Na entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, Konings afirma que o sínodo “foi uma oportunidade para conhecer a situação e os projetos das mais diversas regiões onde a Igreja está presente neste mundo globalizado”. E conclui que “não se deu um passo para trás em relação ao Concílio, mas que, pelo contrário, se mostrou uma vontade unânime de avançar”.

Johan Konings é professor no Instituto Santo Inácio - Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus – ISI - CES, de Belo Horizonte, MG. Graduado em Filosofia e Teologia, Konings concluiu o doutorado em Teologia na Universidade Católica de Louvaina, na Bélgica. Entre seus livros publicados, citamos Ser cristão – Fé e prática (Petrópolis: Vozes, 2003) e Liturgia Dominical. Mistério de Cristo e formação dos fiéis (anos A – B – C) (Petrópolis: Vozes, 2003). É autor também do Cadernos Teologia Pública número 1, intitulado Hermenêutica da tradição cristã no limiar do século XXI.

IHU On-Line - Qual a avaliação geral que o senhor faz do Sínodo sobre a Bíblia realizado em Roma recentemente, considerando a sua importância no momento atual? Quais os principais avanços e quais os pontos que deixaram a desejar?

Johan Konings - O Sínodo é uma instituição para dar continuidade ao Concílio Vaticano II. Deve promover a recepção do Concílio pelo povo eclesial. A importância disso salta à vista quando se sabe que o Concílio de Trento levou quatrocentos anos para ser mais ou menos “recebido” no Brasil. Agora, estamos a mais de quarenta anos do Vaticano II (1962-1965), mas espera-se que a recepção não leve quatro séculos. As sucessivas Assembléias Gerais do Sínodo dos Bispos servem para fomentar e atualizar a realização na prática daquilo que o Concílio projetou. Assim, o Concílio fez um documento sobre a Revelação Divina: a constituição conciliar Dei Verbum, talvez o texto mais importante do Concílio. O último capítulo se intitulava: “A Palavra de Deus na vida da Igreja”. O Sínodo de 2008 teve como tema “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”. Nota-se a intenção de continuar e de atualizar o Concílio, insistindo na “missão”, termo que não estava no texto do Concílio. Pois, desde o Concílio, percebeu-se que missão não é apenas ir aos indígenas da Amazônia, mas às tribos de nossa juventude urbana e aos pagãos de nossas avenidas e campi universitários. Olhando assim, achei o Sínodo fabuloso. Foi uma oportunidade para, através da voz de 253 bispos, eleitos por seu confrades de cada região, conhecer a situação e os projetos das mais diversas regiões onde a Igreja está presente neste mundo globalizado. E pode-se dizer que não se deu um passo para trás em relação ao Concílio, mas que, pelo contrário, se mostrou uma vontade unânime de avançar.

IHU On-Line - Como foi a participação das 25 mulheres e do rabino chefe de Haifa, Israel, Shear-Yashuv Cohen, neste sínodo? Como o senhor avalia a presença deles neste importante evento?

Johan Konings - A participação das mulheres foi, acho eu, uma coisa normal. Participaram como observadoras, pois os participantes com direito a voto eram somente os bispos. Claro, lamenta-se que a atual estrutura da Igreja não tenha mulheres na hierarquia. Algumas deram testemunho impressionante. Lembro-me de uma africana que falou das pequenas comunidades do povo sofrido na África, e de uma russa, professora de artes plásticas, que testemunhou sobre o impacto que os ícones com cenas bíblicas evocam entre seus colegas descristianizados. A própria madre geral das Paulinas, brasileira, falou com clareza sobre a pastoral bíblica popular. Quanto ao Rabino de Haifa, deu um testemunho da veneração profunda com que o povo judeu - pelo menos os piedosos - escuta e rumina a palavra de Deus na Torá e nos Profetas. Há algo que se percebia o tempo todo: as tensões no próximo e Médio Oriente pesam muito sobre a Igreja. Assim, logo depois do Sínodo, o Papa teve de explicitar junto aos líderes muçulmanos o pedido de respeito pela liberdade religiosa. Quanto a Israel, o problema é que os cristãos na região são quase sempre palestinos, isso sem falar das perseguições abertas na Indonésia e na Índia.

IHU On-Line - Como o senhor avalia o Sínodo no que diz respeito ao processo de reunir os avanços da leitura Bíblica Pastoral nos diversos continentes? Isso foi alcançado?

Johan Konings - O Sínodo não era para “decidir” novidades. Era uma reflexão, um curso de teologia fundamental em torno da Palavra de Deus. Mas nas proposições, ou seja, nas sugestões votadas em plenário para serem apresentadas ao Papa, aparecem claros avanços: o desejo de que a Bíblia seja mais divulgada, estudada com os devidos métodos científicos que a Igreja vem fomentando com toda a força nos últimos cinqüenta anos, claramente expostos no importantíssimo documento da Pontifícia Comissão Bíblica de 1993; o desejo de que o estudo leve à contemplação, à oração e à prática da comunhão fraterna; a valorização do trabalho dois leigos, dos agentes de pastoral bíblica, especialmente das mulheres, para as quais se pede seja estendida a ordenação ao ministério de leitorado; que os pobres sejam “artífices de sua própria história”, impulsionados pela Palavra de Deus acolhida nas suas comunidades; que a Bíblia esteja em todas as famílias, inclusive nas línguas dos povos pequenos e pobres; que a pastoral bíblica não seja uma pastoral ao lado das outras, mas a inspiração que permeie todas as pastorais; que finalmente se leve a sério o enriquecimento bíblico da Liturgia a partir do Vaticano II e o valor de uma homilia bem preparada pelo estudo e pela oração - além de bem proferida; essas e tantas outras foram expressões do desejo praticamente unânime dos bispos de avançar na linha do Concílio Vaticano II.

IHU On-Line - Por que os livros Apócrifos atraem tanto o público? Não está na hora de fazer uma leitura de como foram selecionados os livros que hoje formam a Bíblia e revisar os que ficaram de fora?

Johan Konings - Falou-se da Bíblia que temos. Esta é a consignação por escrito do “evento da Palavra de Deus” no seu momento culminante, quando a Palavra se fez carne em Jesus de Nazaré. A Bíblia é o documento escrito desse evento a partir das testemunhas de primeira mão, no tempo dos Apóstolos. Esse testemunho inclui as Escrituras de Israel, que lhe fornecem a linguagem e que em Jesus encontram sua plenitude. É o documento referencial da fé das testemunhas de Jesus. Com isso não se mexe. Seria como destruir um monumento para colocar outra coisa no lugar. É verdade que a Palavra de Deus é maior que a Bíblia. A Palavra de Deus é um diálogo conosco que começou com palavra da criação, como lembra São João no prólogo que anuncia a encarnação dessa Palavra em Jesus - encarnação situada no tempo e no espaço, e que continua na Sagrada Escritura, situada ela também no tempo e no espaço, participando das limitações históricas humanas, sem, contudo, perder sua “confiabilidade” divina. Assim, fica claro que a Palavra de Deus é maior que a Bíblia, que é sua expressão “autorizada”. E ninguém pode proibir a Deus de dar-se a conhecer em outras oportunidades, em escritos não oficiais, em outras religiões. Mas a Bíblia que temos é o monumento seguro do evento Jesus Cristo atestado por seus seguidores de primeira mão, “o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos e o que as nossas mãos apalparam da Palavra da vida”, como diz a primeira Carta de João. Quanto aos apócrifos, estou estudando todos os apócrifos do tempo do Antigo e do Novo Testamento, e posso dizer que não gostaria de complicar a vida dos fiéis com esses escritos, sobretudo os que dizem respeito ao Novo Testamento, escritos num código gnóstico impenetrável.

IHU On-Line - Que hermenêuticas o senhor apontaria como importantes hoje na leitura da Palavra, para não cair em fundamentalismos, literalismos ou leituras ideológicas?

Johan Konings - Quanto à hermenêutica ou interpretação, toda escuta e toda leitura é uma interpretação, pois senão, não se entende nada. Os fundamentalistas pensam que eles não interpretam, mas interpretam sem que saibam, e reforçam interpretações subliminares sem se darem conta disso. Ora, interpretação sempre tem uma dupla interface - por isso se chama “inter”-pretação: é interlocução, mediação entre o texto que representa o evento Jesus no seu momento fundador, abordado com métodos históricos e literários, e o nosso texto de hoje, o texto de nossa vida, em nossa sociedade, em nosso mundo político-econômico-social-cultural-ecológico etc., assimilado com a nossa psicologia pessoal e coletiva. Colocar tudo isso em diálogo é hermenêutica, é leitura. Também no caso da Bíblia.

Fonte: IHU Online

.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Cura para a surdez espiritual

Com toda certeza, sabemos o que é relevante. O que aconteceria se pensássemos um pouco no que é irrelevante?
Philip Yancey

Houve um tempo em que eu considerava os eremitas reclusos intratáveis, caracterizados principalmente pela obsessão com eles mesmos e pela falta de traquejo social – pessoas parecidas com o Unabomber. Thomas Merton corrigiu meu erro. “Para ser loucos, precisamos de outras pessoas”, explicou ele. “Quando ficamos sozinhos, logo nos cansamos de nossa loucura. Ela é exaustiva”.

Um livro recente de Peter France, Hermits (Eremitas), ajudou a completar o quadro. France desistiu de uma carreira bem sucedida na BBC para se dedicar a uma vida de contemplação em uma ilha grega. Não fez isso como ato de sacrifício, mas sim para buscar a sabedoria que apenas os que vivem em solitude encontram. Viver longe da pressão da opinião popular “confere percepções que não estão disponíveis na sociedade”, concluiu ele.

Santo Antão do Egito, o famoso Pai do Deserto, escolheu a vida de eremita para um contraste deliberado com sua vida elitizada. Depois de 20 anos isolado, sem ver um rosto humano sequer, ressurgiu saudável, equilibrado e cheio de conselhos sábios. Daí em diante, passou a alternar períodos de isolamento com visitas pastorais. France compara esse padrão ao dos cientistas que trabalham sozinhos na busca de cura para doenças fatais.

Claro que não se pode ler sobre eremitas sem encontrar estranheza. Certo monge desejava uma bela mulher. Ela morreu e ele foi até o túmulo, tirou-lhe a túnica e secou com ela os fluidos do corpo da mulher. Com o mau cheiro perto dele, em sua cela, ele dizia a si mesmo: “É isso que você desejava – aproveite bem”.

Há monges que competem em um tipo de Olimpíada asceta, observando quanto tempo conseguem ficar sem alimento, água ou sono. Eles também possuem um método em sua loucura: as privações causam tanto sofrimento que não deixam espaço para pensamentos carnais.

France narra outras histórias que lançam uma luz diferente sobre esses eremitas. Um irmão se gabava de sua disciplina alimentar. O orientador espiritual respondeu: “Não me importa, filho, se você passou 30 anos sem comer carne. Mas quero saber a verdade: quantos dias você passou sem falar mal de seu irmão? Sem julgar o próximo? Sem permitir que seus lábios pronunciassem palavras vãs?”.

A sede de isolamento parece crescer toda vez que a sociedade entra em turbilhão. Os judeus essênios se retiraram para o deserto nos dias de Jesus; Buda afastou-se de todos para se purificar de ilusões sociais; Gandhi mantinha silêncio total às segundas-feiras, prática que não interrompeu nem para reunir-se com o rei da Inglaterra.

A solitude arranca todas as máscaras e disfarces e quebra dependências desnecessárias aos bens materiais. Henry Thoreau demonstrou uma mistura peculiar de ascetismo, amor à natureza e autoconfiança. Um dos amigos dele comentou que Thoreau aproveitava mais 10 minutos passados com um rouxinol do que a maioria dos homens desfrutaria em uma noite com Cleópatra. Thoreau insistia: “Nunca encontrei companheiro tão agradável quanto a solitude”.

No fim do século 18 e início do 19, os ingleses da baixa nobreza contratavam “eremitas de ornamentação”. Reconhecendo o valor da solitude, mas sem disposição para suportar os rigores que ela impõe, os ricos abrigavam esses substitutos em pequenas habitações nos jardins luxuosos. Se você não pode se dedicar a uma vida de simplicidade e oração, por que não pagar alguém para fazer isso em seu lugar?

Thomas Merton foi o melhor apologista da vida de solitude em nosso século. Considerava a vida em sociedade um verdadeiro sacrifício e solicitava constantemente o privilégio da solitude, que só lhe foi concedido após 24 anos. Merton ansiava por se unir aos “homens nesta terra miserável, tumultuada e cruel, homens que saboreavam a alegria maravilhosa do silêncio e da solitude, que habitavam em celas nas montanhas esquecidas, em monastérios isolados, onde notícias, desejos, apetites e conflitos do mundo não os alcançavam”. Ainda assim, insistia que “a única justificativa para uma vida de solitude deliberada é a convicção de que ela ajudará a amar não apenas a Deus, mas também o semelhante”.

Merton provou que a vida de solitude não leva, necessariamente, ao isolamento ou à estranheza. Nosso século não conheceu observador da política, da cultura e da religião mais preciso do que esse monge que raramente falava e não deixava quase nunca o monastério.

Fico surpreso por a Igreja não ter reagido ao tumulto do século que termina com um movimento rumo à solitude. Elias, Moisés e Jacó encontraram-se com Deus quando estavam sozinhos. O apóstolo Paulo, João Batista e o próprio Jesus saíram para o deserto em busca de alimento espiritual.

É fato certo que dominamos a relevância. As páginas de organizações religiosas na internet são um primor técnico. Novos grupos de música cristã brotam aos montes, em resposta à menor alteração cultural. O que aconteceria se buscássemos um pouco de irrelevância?

O que aconteceria se todos os cristãos fizessem uma caminhada de duas horas pela natureza todas as semanas, sem falar? Ou se, como Gandhi, observássemos um dia de silêncio? Ele escolheu as segundas-feiras. O que aconteceria se ficássemos em silêncio todos os domingos, depois da Escola Dominical? Sendo ainda mais radical, o que aconteceria se silenciássemos todos os eventos esportivos da televisão e do rádio nos domingos?

É melhor que eu pare por aqui. Como os eremitas nos mostram, essas disciplinas espirituais podem sair de nosso controle.

Fonte: Cristianismo Hoje

.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Novas descobertas sobre Jesus

Novas descobertas trazem à tona um homem simples, talvez analfabeto, difícil de ser rastreado e longe de se sentir uma entidade poderosa e onisciente. Como ficam as crenças cristãs diante desse Jesus histórico?


De volta ao laboratório:Cientistas investigam a vida de Jesus e trazem novas hipóteses, que vão da possibilidade de o nascimento não ter se dado em Belém até a provável inexistência do homem que teria resgatado o seu corpo

É um bocado irônico que o personagem mais influente da História também seja um dos mais misteriosos. Jesus de Nazaré não tem data de nascimento ou morte registrada com segurança (embora seja possível estimá-las com margem de erro de dois ou três anos). Não deixou nada escrito de próprio punho (há até quem argumente que ele provavelmente era analfabeto). Não restou um único artefato do qual se possa dizer com certeza que pertenceu a ele. Os relatos de seus seguidores, escritos entre duas e seis décadas após a morte na cruz, falam com riqueza de detalhes de um período curtíssimo de sua vida adulta, elencando seus atos e ensinamentos, mas nos deixam no escuro sobre a maior parte de sua infância e adolescência, suas angústias pessoais e seu relacionamento com amigos e familiares.

A situação pode soar desesperadora ao extremo para um historiador que, sem recorrer à fé cristã, queira reconstruir a vida e a mensagem desse judeu singular. Mas a situação é menos complicada do que parece. Por um lado, é preciso reconhecer que os Evangelhos, principais narrativas sobre Jesus na Bíblia cristã, não são livros históricos no sentido moderno do termo. "Os Evangelhos são uma combinação de elementos históricos e interpretações feitas posteriormente no âmbito das comunidades cristãs", afirma o padre Léo Zeno Konzen, coordenador do curso de teologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (RS). (Foto - É tudo mentira? O ossuário de Tiago (acima) tem inscrição falsa, feita no século 21. Estudiosos atuais questionam a existência de José de Arimatéia).

Trocando em miúdos: os evangelistas (conhecidos entre nós pelos títulos de Mateus, Marcos, Lucas e João, que não devem ter sido os autores dos textos) estavam tão preocupados em relatar o que tinha acontecido com Jesus e os apóstolos 50 anos antes quanto em tornar esses fatos relevantes para seu público, formado por cristãos nascidos depois que seu Mestre morrera na cruz. A boa notícia é que a leitura crítica dessas narrativas é capaz de resgatar grande parte da vida terrena de Jesus.

O retrato que emerge desse esforço é, em certos aspectos, familiar para qualquer cristão, ao mesmo tempo em que humaniza o Nazareno. O chamado Jesus histórico é uma figura humilde, que coloca sua mensagem - o anúncio da chegada do Reino de Deus - acima de qualquer preocupação com sua própria importância. Não se comporta como uma entidade superpoderosa ou onisciente. E coloca em primeiro lugar a história e o destino do povo de Israel, ao qual pertence. É um Jesus que pode ajudar os cristãos a repensarem a origem de sua própria fé - mas dificilmente é uma ameaça a ela, a menos que se acredite que todo versículo dos Evangelhos é verdade literal, como se fosse um filme do que aconteceu no ano 30 d.C. (Foto - "José de Arimatéia Apoiando o Cristo Morto", de Rogier van der Weyden (1399 ou 1400-1464).

Fraudes modernas

Volta e meia ressurge a esperança de que os Evangelhos não serão mais a principal (ou única) fonte sobre a vida de Jesus. Há quem coloque todas as suas fichas em achados arqueológicos, como inscrições, túmulos e textos antigos. Dois exemplos recentes não tiveram um resultado dos mais gloriosos. (Foto - "A Última Ceia", de Philippe de Champaigne (1602-1674)

Em 2002, foi a vez do chamado Ossuário de Tiago, uma caixa de pedra feita originalmente para conter o esqueleto de um homem que morreu em Jerusalém no século 1. No artefato havia uma inscrição em aramaico (língua aparentada ao hebraico que era a mais falada no tempo de Cristo), com os dizeres: "Tiago, filho de José, irmão de Jesus".

O ossuário, afirmavam alguns especialistas, teria pertencido a Tiago, irmão ou primo de Jesus que liderou a igreja cristã de Jerusalém até o ano 62 d.C. Análises mais detalhadas feitas posteriormente comprovaram que o pedaço crucial da inscrição ("irmão de Jesus") foi adicionado por um falsificador do século 21.

Um bafafá parecido cercou, em 2006, novas análises de outros ossuários de Jerusalém, originalmente desenterrados nos anos 1980. Num mesmo jazigo familiar estavam enterrados "Jesus, filho de José", Maria (a mãe dele?), Mariamne (supostamente, Maria Madalena) e outras pessoas cujos nomes lembram os de personagens do Novo Testamento. Um documentário produzido por James Cameron (ele mesmo, o criador de "Titanic") defendeu que os ossuários eram a prova de que Jesus tinha se casado com Maria Madalena. Os defensores da tese argumentam que seria muito improvável a ocorrência conjunta desses nomes na Jerusalém do século 1 d.C. sem que houvesse uma ligação com Jesus de Nazaré. Nenhum estudioso sério do Jesus histórico, contudo, dispôs-se a comprar a idéia - calcula-se que, só em Jerusalém, teriam vivido mais de mil "Jesus, filhos de Josés" nessa época.

Esses fracassos talvez tenham uma explicação muito simples: a pessoa de Jesus pode ser "invisível" para a arqueologia. "E não só ele como quase toda a primeira e a segunda geração de cristãos. São pessoas periféricas, gente muito simples, de origem rural", afirma André Leonardo Chevitarese, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Romanos e judeus de classe alta construíam palácios e tinham selos (carimbos) pessoais feitos com metal ou pedra preciosos; carpinteiros e pescadores da Galiléia (a terra natal de Jesus, no norte de Israel), por outro lado, podiam passar a vida inteira usando apenas materiais perecíveis. Chevitarese, aliás, é cético até em relação à idéia de um enterro formal para Jesus.

"Em todo o mundo romano, o costume era abandonar o cadáver na cruz, para ser comido por abutres ou cães", lembra o historiador da UFRJ. Ele também diz ser suspeita a figura de José de Arimatéia, judeu rico e simpatizante de Jesus que teria obtido seu corpo e organizado o sepultamento, segundo os Evangelhos. "Camponeses como os seguidores de Jesus não teriam como se dirigir a Pilatos para exigir o corpo. Assim, os evangelistas têm o problema de explicar o sepultamento de Jesus e usam a figura de Arimatéia, que praticamente cai de pára-quedas na narrativa", diz. Por outro lado, há pelo menos um registro de crucificado judeu que teve um sepultamento digno - Yehohanan (João), filho de Hagakol, cujo ossuário foi descoberto por arqueólogos israelenses em 1968. O osso do calcanhar de Yehohanan ainda continha o cravo usado para pregá-lo na cruz.

EXISTÊNCIA COMPROVADA?

Ateus ou religiosos, os estudiosos concordam: a teoria de conspiração de que Jesus não teria passado pela Terra é uma tremenda bobagem

Viciados em teorias da conspiração adoram a idéia: Jesus nunca teria existido. As histórias sobre sua vida, morte e ressurreição seriam mera colagem de mitos egípcios e babilônicos, com pitadas do Antigo Testamento para dar um saborzinho judaico. Na prática, Cristo não seria mais real do que Osíris ou Baal, deuses mitológicos que também morreram e ressuscitaram. No entanto, para a esmagadora maioria dos estudiosos, sejam eles homens de fé ou ateus, a tese não passa de bobagem. A figura de Jesus pode até ter "atraído" elementos de mitos antigos para sua história, mas temos uma quantidade razoável de informações historicamente confiáveis, englobando pistas de fontes cristãs, judaicas e pagãs.
Começamos, no Novo Testamento, com as cartas de São Paulo, escritas entre 20 e 30 anos após a crucificação do pregador de Nazaré. Cerca de 40 anos depois da morte de Jesus, surge o Evangelho de Marcos, o mais antigo da Bíblia; antes que o século 1 terminasse, os demais Evangelhos alcançaram a forma que conhecemos hoje. A distância temporal, em todos esses casos, é mais ou menos a mesma que separava o historiador Heródoto da época da guerra entre gregos e persas, que aconteceu entre 490 a.C. e 480 a.C. - e ninguém sai por aí dizendo que Heródoto inventou Leônidas, o rei casca-grossa de Esparta.

Outra fonte crucial é Flávio Josefo, autor de "Antiguidades Judaicas", também do século 1. O texto sofreu interferências de copistas cristãos, mas é possível determinar sua forma original, bastante neutra: Jesus seria um "mestre", responsável por "feitos extraordinários", crucificado a mando de Pilatos, cujos seguidores ainda existiam, apesar disso. Duas décadas depois, o historiador romano Tácito conta a mesma história básica, precisando que Jesus tinha morrido na época de Pilatos e do imperador Tibério (duas referências que batem com o Novo Testamento). Esses dados mostram duas coisas: a historicidade de Jesus e também sua relativa desimportância diante das autoridades romanas e judaicas, como um profeta marginal num canto remoto e pobre do Império Romano.

Homem invisível

Fora algum tremendo golpe de sorte, o máximo que a arqueologia pode fazer é iluminar a vida cotidiana no tempo de Jesus (indicando em que tipo de casa ele vivia ou que modelo de taça ele teria usado para beber vinho com seus discípulos) ou como era a religião judaica naquela época. Esse provavelmente é o caso de um misterioso texto do século 1 a.C., pintado numa pedra e analisado por Israel Knohl, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Em julho passado, Knohl apresentou sua interpretação do texto (o qual não está inteiramente legível e, por isso, tem de ser reconstruído hipoteticamente): ele mencionaria a morte e ressurreição de um Messias décadas antes do nascimento de Jesus. Ainda que a interpretação esteja correta, é difícil ver como ela mudaria nossa compreensão sobre as origens do cristianismo. Afinal, um dos grandes argumentos dos seguidores de Jesus é justamente que seu retorno dos mortos já tinha sido previsto nas profecias judaicas.(Foto - "Jesus Curando um Cego", pintura anônima da escola romana do séc. 17).

Se a invisibilidade arqueológica não ajuda, a imaginação e as preocupações modernas também atrapalham um bocado. No esforço de tornar o Jesus histórico relevante para a nossa época, ou como forma de polemizar com as atuais religiões cristãs, pesquisadores como o historiador irlandês John Dominic Crossan defendem que Cristo não se preocupava com a vida eterna ou o Juízo Final, mas pregava uma ética totalmente centrada no aqui e no agora, influenciada pela cultura grega. Outros enfatizam seu lado de revolucionário político, ou mesmo o retratam como uma espécie de mago itinerante, cujos milagres não passavam de truques. Na avaliação de Chevitarese, isso equivaleria a esvaziar Jesus. "Não se pode tirá-lo do seu contexto judaico nem eliminar seu lado apocalíptico e escatológico [o de um profeta que espera o final dos tempos e a consumação da história humana]", diz o historiador da UFRJ. Isso não quer dizer, por outro lado, que a pregação de Jesus fosse completamente isenta de idéias sobre a sociedade e a política.

"A própria escatologia judaica também tem um substrato político", afirma Luiz Felipe Ribeiro, professor da pós-gradua-ção em história do cristianismo antigo da Universidade de Brasília (UnB). Ele cita um exemplo cristão, o Livro do Apocalipse, que pode ser lido tanto como uma previsão do fim do mundo quanto como um ataque contra a opressão romana que afetava os cristãos.

Reinado de Deus

Para John P. Meier, professor da Universidade Notre Dame (EUA) e autor da monumental série de livros "Um Judeu Marginal" (ainda não concluída) sobre o Jesus histórico, o pregador de Nazaré resume e mistura o espiritual, o social e o político na frase-chave de seu anúncio profético: o "Reino de Deus". Essa é a tradução mais comum em português do grego "basilêia tou Theou", cujo sentido provavelmente está mais para "o Reinado de Deus" - a idéia de que Deus estava prestes a intervir dramaticamente no mundo, resgatando seu povo de Israel, instaurando seu domínio de justiça e paz e incluindo até os povos pagãos nesse Universo transformado.

"Isso explica por que Jesus parece relativamente despreocupado em relação a problemas sociais e políticos. Ele não estava pregando a reforma do mundo; estava pregando o fim do mundo", escreve Meier. No entanto, em vez de se concentrar nos tormentos que aguardariam os pecadores que não se arrependessem, o profeta da Galiléia ressaltava que o Reinado de Deus era um poder misericordioso, aberto a todos. Não é à toa que algumas autoridades judaicas ou o grupo dos fariseus (algo como "separados", em hebraico) ficavam escandalizados com o lado festivo da vida de Jesus e seus discípulos. Afinal, eles não hesitavam em comer e beber com cobradores de impostos, prostitutas e outros "pecadores notórios" da sociedade israelita, como sinal da proximidade e da inclusão do Reino.

"Proximidade", aliás, talvez não seja a palavra exata: ao mesmo tempo em que Jesus via o Reinado de Deus como uma promessa a se realizar no futuro próximo, também insinuava que esse reino já estava presente no ministério do próprio Cristo, diz Meier. "As curas e os exorcismos realizados por Jesus não seriam, portanto, meros atos de bondade e compaixão: estariam mais para demonstrações dramáticas de que o Reino de Deus já estava chegando a Israel", afirma o pesquisador. Não dá para forçar a mão de Deus, diz Jesus: seu Reinado é um ato espontâneo de misericórdia, voltado não para quem o merece, mas para quem mais precisa dele.

Barrados no baile

Mais importante ainda, Jesus se apresenta como o mediador para os que querem participar do Reinado de Deus: rejeitar sua mensagem equivale a rejeitar a ordem divina. E, como registram os Evangelhos, a proclamação é voltada exclusiva ou principalmente a judeus. Não é à toa que ele escolhe os Doze Apóstolos (provavelmente simbolizando as doze tribos de Israel, espalhadas pelo mundo, que Deus deveria reunir no fim dos tempos) e ordena que eles se dirijam apenas às "ovelhas perdidas da casa de Israel". Para Jesus, a imagem desse Reino de Deus consumado é a de um banquete - e, paradoxalmente, ele chega a afirmar que alguns de seus compatriotas judeus, os que não o aceitam, poderão ser os barrados no baile, enquanto gente "do Oriente e do Ocidente" - os pagãos - acabam sendo incluídos.

É possível extrair essas linhas gerais da missão de Jesus do material contido no Novo Testamento, mas é bem mais complicado afirmar se, durante sua vida terrena, Cristo considerava ser Deus encarnado, como defende o dogma cristão, ou mesmo se ele tinha consciência plena de que sua morte na cruz serviria para redimir a humanidade.

O interessante, afirma Chevitarese, é que os textos do Novo Testamento parecem mostrar a convivência de várias visões sobre como e quando os cristãos consideravam que Jesus teria assumido seu status de Cristo, ou seja, de "ungido" (escolhido) e filho de Deus. "Para Paulo [autor dos textos provavelmente mais antigos, datados por volta do ano 50], Jesus é o Cristo porque ressuscitou. O Evangelho de Marcos traz esse papel já para o batismo de Jesus feito por João Batista. Os Evangelhos de Mateus e Lucas recuam isso para o nascimento dele, enquanto João vê Cristo como preexistente ao próprio mundo."

Como judeu, seria impensável para Jesus se colocar publicamente como igual a Deus, afirma Luiz Felipe Ribeiro. "Agora, isso não quer dizer que não houvesse uma autocompreensão de Jesus na qual ele se via como mais do que humano, uma autocompreensão messiânica, digamos." Seria essa uma possível explicação para o misterioso título "Filho do Homem", aparentemente empregado por Jesus para designar a si mesmo. Esse personagem aparece em vários escritos apocalípticos judaicos, muitos dos quais surgidos pouco antes do nascimento de Cristo.

Constrangimento

Essas incongruências só são conhecidas porque os Evangelhos preservam uma trilha de pistas sobre o lado humano de Jesus. Tais pistas fortalecem o chamado critério do constrangimento. A idéia é que os evangelistas não inventariam passagens capazes de lançar dúvidas sobre o poder ou onisciência de Jesus. O caso clássico é o batismo de Cristo por João Batista no rio Jordão, afirma Emilio Voigt, doutor em Novo Testamento e professor da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS). "Se o batismo de João é para o arrependimento [dos pecados], por que Jesus precisaria ser batizado? Como Jesus, o Messias, poderia ser batizado por alguém inferior a ele?", diz o pesquisador. Segundo Voigt, a tradição cristã resolve isso por meio do "testemunho" de João - afirmações do profeta de que ele teria vindo apenas para proclamar a chegada de Jesus e de que, na verdade, não seria digno de batizá-lo. Uma série de outros eventos constrangedores aparece nos Evangelhos: os parentes de Jesus e os moradores de Nazaré o rejeitam como profeta, ele diz que "somente o Pai" conhece a hora da chegada do Reino, teme a aproximação da morte e, pregado na cruz, pergunta por que Deus o teria abandonado.

Homem bruto

Levando tudo isso em consideração, a fé cristã pode sair abalada ao confrontar o Jesus histórico? Os especialistas apostam que esse risco é menor do que parece. "A pesquisa histórica ajuda a compreender a atividade de Jesus e a contextualizar a fé. Pode ameaçar alguns dogmas eclesiásticos, mas não a fé propriamente dita", afirma Voigt, que também é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IELCB).

"Creio que o processo de formação das pessoas de fé cristã deve ajudar a perceber a riqueza que se encontra no processo de interpretar os acontecimentos. Não podemos ler a Bíblia ao pé da letra. Como pessoas de fé, nossos antepassados vivenciaram processos muito criativos de leitura dos acontecimentos, atribuindo-lhes significados que, à primeira vista, não eram perceptíveis nem imagináveis. A Bíblia toda foi construída assim", pondera o padre Léo Konzen.

"Apesar de ser a personificação do Divino, Jesus era um homem bruto, pobre, tão comum que dependia de muita oração e da ação do Espírito Santo para realizar feitos. Seria muito fácil se Ele morresse na cruz tendo a certeza de que era eterno. Mas era homem e não tinha uma memória divina", diz René Vasconcelos, autor do blog Papo de Teólogo e membro da denominação evangélica Assembléia de Deus.

Essa, aliás, é uma das pedras fundamentais da fé de quase todas as igrejas cristãs: Jesus é verdadeiro Deus, mas também é verdadeiro homem. A primeira parte da frase ainda não pode ser comprovada ou refutada pela pesquisa histórica, mas a segunda também é capaz de tornar Jesus relevante para crentes - e até para agnósticos ou ateus - durante muito tempo ainda.

Onde Jesus nasceu, cresceu, pregou e morreu
Entre historiadores, há um consenso: seus últimos dias e a crucificação aconteceram em Jerusalém. Conheça as evidências mais aceitas quanto aos demais passos da vida do homem.



SÉFORIS - Metrópole da época: era um centro importante na Galiléia dos tempos de Cristo, mas rebeliões destruíram a cidade.

CAFARNAUM - Trabalho e aprendizado: vilarejo pobre habitado principalmente por pescadores, foi o destino escolhido por Jesus logo depois de ter deixado a sua Nazaré natal.

NAZARÉ - O berço: segundo o Novo Testamento, José e Maria nasceram ali. Para estudiosos contemporâneos, Jesus também.

RIO JORDÃO - Água benta: segundo os estudiosos, os cristãos têm mais é que manter o hábito de realizar batismos ali, onde Jesus passou pelo mesmo ritual.

JERUSALÉM - O fim: cidade foi o palco dos últimos dias de vida de Jesus Cristo, da sua crucificação e da primeira comunidade cristã.

MAR MORTO - Centro de documentação: localizada nas suas margens, a cidade de Qumran abrigou os manuscritos produzidos entre 250 a.C. e o período em que Cristo viveu.

BELÉM - Pista falsa?: criada em cerca de 3000 a.C., foi ocupada por gregos e, a partir de 65 a.C., por romanos. Estudos sugerem que Jesus não teria nascido nessa cidade.

O homem, o mito

Décadas de investigação revelam detalhes surpreendentes sobre a história de Cristo, como seu verdadeiro local de nascimento, sua relação com Maria Madalena e a veracidade de seus milagres.

1 - Nascimento: Cristo nasceu antes de Cristo. Os próprios Evangelhos indicam uma vinda ao mundo no fim do reinado de Heródes, o Grande, por volta do ano 5 a.C. Nosso calendário está, portanto, alguns anos atrasados, por um erro de cálculo medieval

2 - Pais: há consenso de que são Maria e José, o carpinteiro (e/ou construtor: a palavra grega comporta os dois sentidos). Jesus teria herdado a profissão do pai

3 - Terra natal: Lucas e Mateus não se entendem sobre como a família de Cristo teria chegado a Nazaré, na Galiléia (norte de Israel). É mais provável que a história do nascimento em Belém tenha sido criada mais tarde, para associar Jesus às profecias sobre o Messias

4 - Família: o dogma católico sobre a eterna virgindade de Maria levou teólogos a interpretar os "irmãos" de Jesus citados nos Evangelhos como seus primos, mas é mais provável, pelo sentido do texto grego, que Maria e José tenham mesmo tido outros filhos

5 - Estado civil: solteiro e sem filhos. Essa é a situação marital mais provável de Jesus, a julgar pelas muitas referências à sua família, mas nenhuma a mulher e filhos. Tampouco há provas confiáveis de que Maria Madalena fosse algo mais que sua discípula

6 - Batismo: Jesus certamente foi batizado por João Batista no rio Jordão: os evangelistas jamais criariam uma história embaraçosa para seu mestre, uma vez que o batismo de João servia para a remissão dos pecados - algo supostamente supérfluo para o Filho de Deus

7>>>Mensagem: o centro da pregação de Jesus era o "Reino de Deus" (para ser mais preciso, o "Reinado de Deus"): a idéia de que Deus estava prestes a iniciar uma nova fase na história do povo de Israel e da humanidade e de que o próprio Jesus era o principal arauto

8>>>Milagres: até fontes não-cristãs falam de Cristo como "responsável por atos extraordinários", entre os quais a cura de doentes. Para Jesus, tratava-se de mais um sinal da proximidade do Reinado de Deus

9 - Exorcismos: é difícil separar as curas operadas por Jesus dos exorcismos que praticava. Nem seus opositores judeus duvidavam desses atos. Para Cristo, sua vitória contra forças demoníacas mostrava que Deus estava agindo através dele

10 - Seguidores: Jesus aparentemente chamava indivíduos específicos para segui-lo, eventualmente exigindo que eles abandonassem seu emprego, sua cidade e até sua família para acompanhá-lo. Doze desses escolhidos formaram um círculo interno de seguidores, provavelmente representando as doze tribos de Israel, que seriam reconstituídas por Deus.

11 - Traição: um dos doze apóstolos, Judas Iscariotes (o significado do sobrenome é nebuloso; podia se referir a "homem de Keriot", cidade da Judéia), teria entregado Jesus. Os evangelistas provavelmente não inventariam isso: se Jesus fosse onisciente, por que escolheria um apóstolo que iria traí-lo?

12 - Crucificação: diversas fontes não-cristãs concordam com os Evangelhos. Cristo morreu crucificado a mando de Pôncio Pilatos, que governou a Judéia do ano 26 ao 36. A data mais provável para a execução de Jesus é o ano 30


Apócrifos: muito barulho por nada
Para especialistas, esses escritos perdem importância quando se constata que eles tiveram como base os Evangelhos canônicos e seguiram o gnosticismo

O menino Jesus usa seus superpoderes para matar um amiguinho e dar vida a passarinhos de barro; uma parteira anuncia que, após o parto de Cristo, a virgindade de Maria foi milagrosamente restaurada; Judas é um bom sujeito, que só traiu seu mestre quando o próprio pediu; Maria Madalena e Jesus vivem aos beijos, e a ex-endemoninhada é a discípula favorita do Messias. Bem-vindo ao maravilhoso mundo dos Evangelhos apócrifos, textos sobre a vida de Jesus que não foram incluídos no cânon, o conjunto de livros oficialmente aprovados pelo cristianismo.

Há pesquisadores que vasculham esses livros, muitos dos quais em estado fragmentário, em busca de informações valiosas que não teriam sido preservadas (ou teriam sido deliberadamente varridas para debaixo do tapete) pelos evangelistas oficiais. O esforço vale a pena? O mais provável é que não. A opinião é de John P. Meier, autor da aclamada série de livros "Um Judeu Marginal". O argumento de Meier é simples: é praticamente impossível demonstrar que os evangelhos apócrifos mais populares entre os historiadores, como o de Tomás e o de Pedro, não tenham, na verdade, usado como base os Evagelhos canônicos, os bons e velhos Mateus, Marcos, Lucas e João.

Estruturas literárias básicas, como a ordem dos ditos de Jesus, parecem seguir de perto os textos canônicos. Além disso, a datação dos apócrifos aponta para uma composição décadas ou até séculos depois dos Evangelhos oficiais. E há alguns detalhes teológicos suspeitos nas narrativas apócrifas: muitos deles seguem o chamado gnosticismo, uma vertente esotérica do cristianismo primitivo que considerava o mundo material uma esfera corrompida e naturalmente ruim da existência e pregava o acesso a um conhecimento secreto para se libertar dele. A importância do apóstolo Tomé ou de Maria Madalena nos textos gnósticos provavelmente não tem a ver com o papel histórico desses personagens, mas com o uso deles como contraponto aos sucessores de apóstolos como Pedro e Paulo, principais líderes das comunidades cristãs após a morte de Jesus.

Fonte: Revista Galileu - Edição 206 - Set de 2008

.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Estrelas ou Jardins - Rubem Alves

Os jardineiros olham para o jardim e não podem determinar nada com precisão. Porque a vida não é uma estrela.

Fui eu quem levantou a questão do sofrimento dos doentes terminais e, com ela, a difícil questão da eutanásia. Julgo-me, portanto, na obrigação de pensar essas questões sob o ângulo da ética.

Diariamente nos defrontamos com dilemas éticos porque eles fazem parte do cotidiano da vida. Ética são os pensamentos que pensamos quando nos encontramos diante de uma situação problemática que nos pergunta: “Que devo fazer para que a minha ação produza o maior bem possível – ou o menor mal possível?”

Essa pergunta pode ser respondida de duas formas diferentes, dependendo da direção do nosso olhar.

Há um olhar que contempla as estrelas e descansa na sua eternidade, perfeição e imutabilidade. Habitando ao lado das estrelas estão os valores éticos que foram criados mesmo antes que delas e gozam da sua imutabilidade. Como se fossem “móveis” e “obras de arte” da mansão divina. Quando surge um problema na terra os olhos procuram a resposta nos céus, morada da verdade eterna de Deus.

Há, entretanto, um outro olhar que não olha para as estrelas por preferir os jardins. Deus começou a sua obra criando as estrelas, mas terminou-a plantando um jardim... A se acreditar nos poemas sagrados Deus ama acima de tudo, mais que as estrelas, o jardim. Está escrito: “... e Deus passeava pelo jardim ao vento fresco da tarde...” Deus ama mais os jardins porque ama mais a vida que as pedras.

Árvores, arbustos, flores são seres vivos. Nelas não há nada que seja permanente. Tudo muda sem parar. Uma folha que estava verde seca e cai. Uma planta que se planta hoje será arrancada amanhã. Um galho onde um pássaro fez um ninho apodrece e tem de ser cortado. O jardim, como a música, tem sua beleza nas constantes e imprevisíveis transformações.

Os astrônomos olham para os céus e podem determinar com precisão a verdade do astro que estão examinando. Os jardineiros olham para o jardim e não podem determinar nada com precisão. Porque a vida não é uma estrela. O jardineiro não olha para as estrelas para decidir sobre o que fazer com o seu jardim. Ele observa a paisagem, examina cada uma das plantas, o que foi verdade ontem pode não ser verdade hoje, vê as transformações, imagina possibilidades não pensadas, cria novos cenários...

A ética da Igreja Católica* é a ética dos olhos que examinam as estrelas em busca da perfeição final eterna. Não é por acidente que ela não tenha escolhido como símbolo para si mesma um jardim. Ela escolheu como seu símbolo uma pedra: Petrus...

A ética que nasce da contemplação das estrelas resolve de maneira definitiva e absoluta os dilemas da vida. Nós, que vivemos no tempo ao lado dos jardins (efêmeros), ao nos defrontarmos com um dilema ético temos de nos perguntar: “O que dizem as estrelas? Que valores estão eternamente gravados nos céus?” Porque a tarefa dos homem é trazer para a terra a perfeição imutável dos céus. A palavra eterna dos céus diz o que nós, seres do tempo, temos de fazer.

E assim se resolvem os problemas que a experiência vem colocando através da história: o homossexualismo, o divórcio, a pesquisa com as células tronco (tantas vidas seriam salvas!), o aborto de fetos sem cérebro, a eutanásia. Porque, examinados os astros, as respostas vieram prontas...

Fonte: Folha de São Paulo - Cotidiano

* A crítica de Rubem Alves é direcionada à Igreja Católica, mais exatamente ao Bento XVI. Mas creio que se aplica não só à ICAR, mas às igrejas cristãs em geral; que possuem uma postura fundamentalista, desvinculada da realidade e mais preocupada com dogmas e doutrinas que com amor e vida.

.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Adorei.

"Somos criaturas que buscam sentido, (…) que têm de lidar com o inconveniente de serem lançadas num universo que, intrinsecamente, não tem sentido algum. E assim, para evitar o niilismo, (…) temos de embarcar numa tarefa dupla. Primeiro, inventamos ou descobrimos um projeto que dê sentido à vida e seja vigoroso o bastante para sustentá-la. Depois, precisamos dar um jeito de esquecer nosso ato de invenção e nos convencer de que não inventamos, e sim descobrimos, o projeto que dá sentido à vida - convencer-nos de que ele tem uma existência independente ‘lá fora’”. Irvim Yalom em Mamãe e o Sentido da Vida


segunda-feira, 28 de julho de 2008

Discussão do Macumbeiro e o Crente

Por Gonçalo Ferreira da Silva - Agosto, 2001

Carnaval e futebol
ficaram pra se curtir,
Os santos ensinamentos
são para o crente seguir,
religião e política
embora mereçam crítica
não são pra se discutir

Evangelista e Pilintra
não pensavam do mesmo jeito,
pois enquanto Evangelista
dis que foi por Cristo aceito
Pilitra bate no bumba
dizendo que é na macumba
que se faz tudo bem feito.

Porém, embora os dois pensem
de maneira diferente,
nunca tinham discutido
porque até o presente
não tinham, por sorte rara,
oportunidade para
um encontro frente a frente.

Mas um dia Evangelista
voltava alegre do culto
quando avistou muito longe
de Pilintra o negro vulto
que já vinha da macumba
no morro da Catacumba
já foram trocando insulto.

E onde os dois se encontraram
era uma encruzilhada
onde havia uma bebida
à Pombagira deixada
e uma galinha preta
pertinho de uma valeta
para um Exu colocada

- Que pecado monstruoso -
disse o crente, o dedo em riste
é triste um pecador crer
num troço que não existe
e fazer o mal com isto
agravando a Jesus Cristo
é vinte mil vezes triste

Pilintra lhe respondeu:
- Preste muita atenção, moço,
se macumba não existe
não carece de alvoroço
Deus também nunca lhe disse
prar querer ter a burrice
de ser santo em carne e osso.

Não era tarde da noite,
umas dez horas, e tantos,
começou a chegar gente
vinda de todos os cantos,
outros vinham feito loucos,
os que há pouco eram poucos
já não se sabia quantos.

A rua ficou lotada
de toda espécie de gente,
muitos pelo macumbeiro,
outros a favor do crente;
os aplausos ao combate
serviam para o debate
ficar cada vez mais quente

Pilintra disse: - Vocês
os crentes só fazem o bem
mas falam de todo mundo,
razão só vocês que têm
e eu na minha macumba
vivo bem com minha dumba
sem falar mal de ninguém.

O crente bateu com as juntas
dos dedos na negra capa
da Bíblia e ameaçou
dar no macumbeiro um tapa
e disse: - Na minha crença
eu não admito ofensa
mesmo que seja do Papa.

Portanto pode chamar
seu caboclo furacão
Pena Branca de Aruanda,
São Cosme e São Damião
Zé Pilintra e Preto Velho
que a luz do meu Evangelho
deixa todos sem ação.

Respondeu Pilintra: - Os guias
não são para ser chamados
para assistir bate-boca
nem para fazer mandados.
São emissários benditos
que quando estamos aflitos
vêm nos fazer consolados.

O crente cego de ódio
disse: - Cara, muito bem
qual é a luz que um espírito
que vive nas trevas tem?
E como é que tu levas
fé num espírito das trevas
que nunca ajudou ninguém?

- O mal - respondeu Pilintra
que mais combato e censuro
e que o reino de Deus
é pra vocês no futuro,
estão errados, declaro
para vocês tudo é claro
para os demais é escuro.

Convide seus Orixás
Iansã, Nanã, Ogum,
Omulu, Xangô, Oxóssi,
Iemanjá e Oxom,
Mariazinha da Praia
que quero dar uma vaia
pois não respeito nem um.

- Atire esta Bíblia fora -
disse Pilintra arrogante,
respeite a religião
que segue o seu semelhante
senão eu lhe meto o murro
porque o destino do burro
é morrer ignorante.

Um dos espectadores
quis o Pilintra agredir,
a turma do "deixa disso"
fez intruso sair
com a recomendação
de não entrar na questão
deixando os dois discutir.

A discussão nesta altura
já parecia uma briga,
vai ofensa, vem ofensa
e no meio da intriga
que parecia arruaça
a platéia achava graça
de dar cãibra na barriga.

Os homens tinham energia
na garganta como poucos,
dando socos no espaço,
já completamente roucos
uns riam pelo que viam,
outros riam dos que riam,
era um festival de loucos.

Ninguém mais se entendia
no meio da discussão.
Evangelista deixou
a Bíblia cair no chão,
e Pilintra não sabia
porque razão discutia
com tão voraz decisão.

Certo é que nem um queria
perder aquela disputa,
Pilintra não ia dar mole
nem que fosse a força bruta,
até o quinto mandamento
não cumpriria no momento
para não perder a luta.

Parecia que a disputa,
duraria a noite inteira,
mas antes da hora grande
Pilintra com voz maneira
disse: - Acabo a raça sua,
vou chamar seu Tranca-Rua,
Encruzilhada e Caveira.

Evangelista com isso
perdeu logo a esportiva
e disse: - Convide alma
de preta velha cativa,
de velho catimbozeiro
que quero ver mandingueiro
comigo ter voz ativa.

Um gozador que ouvia
a disputa atentamente
fez um boneco de pano
muito negro e reluzente,
jogou para o alto o treco
e a droga do boneco
caiu bem nos pés do crente.

O crente soltou um grito
e quis sair na carreira,
mas ao escutar as vaias
daquela cambada inteira
ouviu do canto da praça
um sujeito achando graça
igualmente uma caveira.

O crente, no desespero
quis esboçar reação,
buscando apoio do povo
disse acenando com a mão:
- Todo infeliz macumbeiro
é bandido e maconheiro,
é assassino e ladrão.

Com estas frases Pilintra
ficou muito indignado
e disse: - Cara não faça
juízo precipitado,
até o momento presente
não sei porque todo crente
tem a fala de viado.

Destas palavras pra frente
ninguém entendeu ninguém,
foi muito grande o tumulto
guias chegaram do além,
para esquentar o ambiente
no final até o crente
recebeu santo também.

Quando o guia incorporado
no crente foi novamente
para região celeste
todo o pessoal presente
entre risos e charadas,
num festival de risadas
todos mangavam do crente.

No morro da Catacumba
Pilintra lia convencido
da discussão o poema
achando não ter perdido,
o crente em sua Assembléia
também lia a epopéia
certo que tinha vencido.

Fonte: Academia Brasileira de Literatura de Cordel

Santa Angelina

A atriz entendeu o ar do seu tempo: a marca distintiva não é mais material, mas espiritual

LEITORES, ESCREVO-VOS de uma cama. Gripe sazonal. Nada de grave, espero. E então contemplo, com tédio e leve dor corporal, as imagens televisivas do momento. Angelina Jolie é mãe de gêmeos. E eu, por estranha associação de idéias, lembro a princesa Diana. Estive em Londres quando Diana morreu em acidente de automóvel. Recordo o filme: acordei cedo nessa manhã; tomei o café em silêncio; saí para a rua e uma multidão de gente chorava sem explicação racional.

Havia flores, muitas flores, em esquinas e bancos de jardim. Fotos de Diana nas janelas das lojas, das casas, dos carros. E velas ardendo nas calçadas. Alguns adolescentes dormitavam nas soleiras das portas, e muitos soluçavam como as crianças órfãs nos contos de Dickens. E às portas do Palácio de Buckingham, milhares de súditos, indignados com a indiferença da família real ante a tragédia, conspiravam entre si para derrubar a monarquia.

Era um regresso a 1688, pensei, e o novo tirano não era mais James 2º, mas Elizabeth 2ª.

E os jornais? Os jornais falavam na força da comoção nacional. Não duvido. Mas prefiro pensar em tudo aquilo como a força da comoção religiosa. Uso o termo no sentido preciso. A religião não é apenas um conjunto de dogmas e ritos destinados a celebrar a transcendência; a religião é, como diria Durkheim, um fato social. Ela permite "ligar" uma comunidade de estranhos num propósito comum.

Diana foi esse propósito. A comunidade cristã pode estar em declínio nas nossas sociedades; o número de fiéis diminui drasticamente no Ocidente "rico" e "pós-moderno"; e, para sermos honestos, quem observa as recomendações do Vaticano em matéria sexual?
Mas o recuo da comunidade cristã, com seus dogmas e ritos, não aboliu a necessidade de crença: a necessidade que temos de acreditar em algo que é maior do que nós e que redime a nossa precária condição.

E se as pessoas já não adoram figuras de madeira ou pedra, como em Fátima ou Lourdes, são os grandes mitos pop, na música ou no cinema, que servem a esse propósito: eles congregam "romarias", inspiram momentos de "transcendência", permitem que o "crente", convertido em "fã", possa assim encontrar um caminho e um exemplo.

Os santos morreram. Mas ninguém sobrevive sem o seu.

Para os ingleses, a santa era Diana. Para o mundo de hoje, a santa é Angelina Jolie. Mas quem é Angelina Jolie?

Atriz, sim. Atriz mediana, sem dúvida. Mas Angelina, com inteligência imaculada, entendeu o ar do seu tempo e agiu em conformidade: antigamente, os diamantes eram os melhores amigos das mulheres. Mas hoje, num mundo democratizado, em que qualquer milionário anônimo pode entrar em loja da Quinta Avenida e torrar uma pequena fortuna em joalheria fina, a verdadeira marca distintiva não é mais material; é espiritual.

Um diamante é fácil. Um órfão cambojano não é fácil, nem está à venda na Quinta Avenida: exige esforço, disponibilidade e, finalmente, o triunfo pio que a estrela de Hollywood gosta de exibir perante as lentes fotográficas. O caçador e o seu troféu.

Angelina não tem jóias para mostrar. Mas tem um filho cambojano, um vietnamita e uma etíope, além de uma biológica. E, agora, o Altíssimo concedeu a santa Angelina não mais um filho, e sim dois: um par de gêmeos nascidos em hospital francês, em clima de sacralidade absoluta. Cá fora, hordas de jornalistas e alienados procuravam uma imagem do milagre. Ver, sentir e eventualmente tocar os ungidos sempre consolou os crentes.

O milagre será mostrado, sim, mas por meio de revista americana que já conseguiu os direitos da "revelação" por US$ 11 milhões. A cifra será distribuída por obras de caridade.

E se os leitores ficam impressionados com os contornos religiosos do fenômeno, aviso que estamos apenas no início. Com o fim das religiões tradicionais, as celebridades pop ocuparão o lugar dos velhos santos, espalhando a palavra redentora e, quem sabe, curando os cegos, os loucos e os paralíticos.

A palavra tem sido espalhada por atores de Hollywood que, "embaixadores" das mais diversas instituições, lutam pela salvação do Tibete (são Richard Gere), do Sudão (são George Clooney), da Somália (santa Mia Farrow) e até do planeta inteiro (são Al Gore).

Mas a consagração só será absoluta quando o santo usar as próprias mãos (e, no caso de Angelina Jolie, os próprios lábios) para curar milagrosamente os enfermos deste mundo. Eu, que vos escrevo de uma cama, não me importava em ser o primeiro.

Fonte: Folha

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Texto do século I a.C. pode redefinir os vínculos entre judaísmo e cristianismo


JERUSALÉM (AFP) — Uma misteriosa tabuleta em pedra que parece datar do século I antes de Cristo pode vir a mudar a percepção sobre as origens do cristianismo e revelar que os judeus, antes mesmo de Jesus Cristo, já acreditavam na chegada de um Messias que morreria e ressuscitaria após três dias.

Isso é o que afirma o pesquisador Israel Knohl, assegurando que sua análise de um texto hebreu escrito nessa lápide 'poderá mudar a visão que temos do personagem histórico de Jesus'.

"Este texto pode constituir o elo perdido entre o judaísmo e o cristianismo à medida que insere na tradição judia a crença cristã na ressurreição de um messias", declarou à AFP este professor de estudos bíblicos da Universidade de Jerusalém.

A peça se encontra em mãos de um colecionador, David Yislsohn, que vive em Zurique, Suíça, e que declarou à AFP tê-la contrado em Londres, de um antiquário jordaniano. A peça procederia da margem jordaniana do Mar Morto.

O texto em hebreu, de natureza apocalíptica, apresenta a "revelação que o arcanjo Gabriel vai despertar o Príncipe dos Príncipes três dias depois de sua morte". O texto está escrito, com tinta sobre a pedra, em 87 linhas e algumas letras ou palavras inteiras foram apagadas pelo tempo.

A análise de Knohl consiste essencialmente em decodificar a linha 80 onde figuram os termos "três dias mais tarde" seguidos por uma palavra meio apagada que, segundo o professor, significa "vive".

A paleontóloga Ada Yardeni é mais prudente no que se refere à palavra "vive".

"A leitura do professor é plausível, apesar de a ortografia utilizada ser raríssima", afirma esta especialista em escrituras antigas, que publicou a primeira descrição da lápide em 2007, na revista de história e arqueologia israelense Cathedra.

Outros pesquisadores também preferem não tirar conclusões tão radicais do texto descoberto e, inclusive, alguns duvidam de sua autenticidade.

Por sua parte, o pesquisador israelense Yuval Goren, especialista em descoberta de falsificações, afirma não ter "detectado nenhum indício de falsificação no texto da tabuleta".

"No entanto, minha análise não se aplicou à tinta", enfatiza o diretor do departamento de arqueologia e culturas antigas da Universidade de Tel Aviv.

Por sua parte, uma arqueóloga que peiu para não ser identificada expressou suas dúvidas sobre a autenticidade desta peça arqueológica.

"É muito estranho que um texto tenha sido escrito com tinta em uma tabuleta de pedra que se tenha conservado até nossos dias. Para ter certeza que não se trata de uma falsificação, seria preciso saber em que circunstâncias e onde exatamente a pedra foi descoberta, o que não é o caso", acrescentou.

O professor Knohl deve apresentar nesta terça-feira sua interpretação em um encontro em Jerusalém por ocasião do 60º aniversário da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto.

"Se essa descrição messiânica está realmente lá, isso vai contribuir para desenvolver uma reavaliação da visão popular e da visão acadêmica de Jesus Cristo", comentou o jornal New York Times.

"Isso sugere que a história de Sua morte e ressurreição não era inédita, mas parte de uma reconhecida tradição judia da época".

Fonte: AFP | 07/07/2008

Estudo relaciona descrença religiosa a QI alto

Um artigo de pesquisadores europeus, que será publicado na revista acadêmica Intelligence em setembro, defende a tese de que pessoas com QI (Quociente de Inteligência) mais alto são menos propensas a ter crenças religiosas.

O texto é assinado por Richard Lynn, professor de psicologia da Universidade do Ulster, na Irlanda do Norte, em parceria com Helmuth Nyborg, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e John Harvey, sem afiliação universitária.

Lynn é autor de outras pesquisas polêmicas, entre elas uma sugerindo que os homens são mais inteligentes do que as mulheres.

A conclusão é baseada na compilação de pesquisas anteriores que mostram uma relação entre QIs altos e baixa religiosidade e em dois estudos originais.

Em um desses estudos, os autores compararam a média de QI com religiosidade entre países.

No outro estudo, eles cruzaram os resultados de jovens americanos em um teste alternativo de habilidade intelectual (fator g) com o grau de religiosidade deles.

Na pesquisa entre países, os pesquisadores analisaram média de QI com o de religiosidade em 137 países. Os dados foram coletados em levantamentos anteriores.

Os autores concluíram que em apenas 23 dos 137 países a porcentagem da população que não acredita em Deus passa dos 20% e que esses países são, na maioria, os que apresentam índices de QI altos.

Exceções

Os pesquisadores dividiram os países em dois grupos.

No primeiro grupo, foram colocados os países cujas médias de QI são mais baixos, variando de 64 a 86 pontos. Nesse grupo, uma média de apenas 1,95% da população não acredita em Deus.

No segundo grupo, onde a média de QI era de 87 a 108, uma média de 16,99% da população não acredita em Deus.

Os autores argumentam que há algumas exceções para a conclusão de que QI alto equivale a altas taxas de ateísmo.

Eles citam, por exemplo, os casos de Cuba (QI de 85 e cerca de 40% de descrentes) e Vietnã (QI de 94 e taxa de ateísmo de 81%), onde há uma porcentagem de pessoas que não acreditam em Deus maior do que a de países com QI médio semelhante.

Uma possível explicação estaria, segundo os autores, no fato de que "esses países são comunistas nos quais houve uma forte propaganda ateísta contra a crença religiosa".

Outra exceção seriam os Estados Unidos, onde a média de QI é considerada alta (98), mas apenas 10,5% dizem não acreditar em Deus, uma taxa bem mais baixa do que a registrada no noroeste e na região central da Europa – onde há altos índices médios de QI e de ateísmo.

Lynn diz que uma explicação para o quadro verificado nos Estados Unidos pode estar no fato de que "há um grande influxo de imigrantes de países católicos, como México, o que ajuda a manter índices altos de religiosidade".

Mas ele reconhece que mesmo grupos que emigraram para os Estados Unidos há muito tempo tendem a ter crenças religiosas fortes e diz que, simplesmente, não consegue explicar a realidade americana.

Generalização

Os autores argumentam que essa relação entre QI e descrença religiosa vem sendo demonstrada em várias pesquisas na Europa e nos Estados Unidos desde a primeira metade do século passado.

Eles citam, também, uma pesquisa de 1998 que mostrou que apenas 7% dos integrantes da Academia Nacional Americana de Ciências acreditavam em Deus, comparados com 90% da população em geral.

Lynn admitiu à BBC Brasil que os resultados apontam para uma "generalização" e que há pessoas com QI alto que têm crenças religiosas fortes.

Segundo ele, há vários fatores, como influência familiar ou pressão social, que influenciam a religiosidade das pessoas.

"Nós temos que diferenciar a situação hoje com outros períodos da história. As pessoas tendem a adotar uma atitude de acordo com a sociedade em que vivem. Hoje em dia, na Grã-Bretanha e em outros países europeus, não há tanta pressão da sociedade para que você acredite em Deus", afirma.

Uma das hipóteses que o estudo levanta para tentar explicar a correlação entre QI e religiosidade é a teoria de que pessoas mais inteligentes são mais propensas a questionar dogmas religiosos "irracionais".

Dúvidas

O professor de psicologia da London School of Economics, Andy Wells, porém, levanta questões sobre a tese.

"A conclusão do professor Lynn é de que um QI alto leva à falta de religiosidade, mas eu acredito que é muito difícil ter certeza disso", afirma.

De acordo com Wells, vários estudos já demonstraram que pessoas com níveis de QI altos tendem a ter níveis de educação mais altos.

"E quanto mais educação as pessoas têm, é mais provável que elas tenham acesso a teorias alternativas de criação do mundo, por exemplo", afirma Wells.

O jornal de psicologia Intelligence, publicado na Grã-Bretanha, traz pesquisas originais, estudos teóricos e críticas de estudos que "contribuam para o entendimento da inteligência". Acadêmicos de universidades de vários países fazem parte da diretoria editorial.

Fonte: BBCBrasil.com | 25 de junho 2008

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A fé dos homofóbicos

"Dizem eles que a criminalização da homofobia levará à prisão em massa de pastores e padres, e viveremos todos sob o domínio gay. A história ensina que essa lei será aprovada, e a vida seguirá seu curso regular, sem nada de extraordinário"
Por André Petry

Em 1946, quando os negros reivindicaram a inclusão de alguns direitos na Constituição, foi um salseiro. Foram acusados de antidemocráticos e racistas por congressistas e estudantes da UNE. Em 1988, a Constituição promoveu o racismo de contravenção a crime. Ninguém chiou. Na década de 50, quando se discutia o divórcio, teve cardeal dizendo que se devia pegar em armas para combater a proposta. Em 1977, o Congresso aprovou o divórcio. Não houve tiroteio, e a igreja do cardeal nunca mais tocou no assunto. Recordar é viver.

Agora, os evangélicos estão anunciando o apocalipse caso o Senado faça o que a Câmara já fez: aprovar lei punindo a homofobia com prisão. A lei em vigor pune a discriminação por raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. A nova acrescenta a punição por discriminação contra homossexuais. Cerca de 1 000 evangélicos tentaram invadir o Senado em protesto. Dizem que a criminalização da homofobia levará à prisão em massa de pastores e padres, e viveremos todos sob o domínio gay. A história ensina que, cedo ou tarde, a lei, ou outra qualquer com objetivo similar, será aprovada, e a vida seguirá seu curso regular sem nada de extraordinário.

Os evangélicos e aliados dizem que proibir a discriminação contra gays fere a liberdade de expressão e religião. Dizem que padres e pastores, na prática de sua crença, não poderão mais criticar a homossexualidade como pecado infecto e, se o fizerem, vão parar no xadrez. É uma interpretação tão grosseira da lei que é difícil crer que seja de boa-fé.

Tal como está, a lei não proíbe a crítica. Proíbe a discriminação. Não pune a opinião. Pune a manifestação do preconceito. Uma coisa é ser contra o casamento gay, por razões de qualquer natureza. Outra coisa é humilhar os gays, apontá-los como filhos do demônio, doentes ou tarados. É tão reacionário quanto uma Ku Klux Klan alegar que a proibição da segregação racial fere sua liberdade de expressão. Querem a liberdade de usar a tecnologia Holerite de cartões perfurados pela IBM?

Alegam que a liberdade religiosa fica limitada porque combater o pecado vira crime. É um duplo equívoco. O primeiro é achar que uma doutrina de crença em forças sobrenaturais autoriza o fiel a discriminar o herege. O segundo é atribuir à lei valor moral. O direito penal não é instrumento para infundir virtudes. É um meio para garantir o convívio minimamente pacífico em sociedade. Matar é crime não porque seja imoral, mas porque a sociedade entendeu que a vida deve ser preservada. Dúvidas? Recorram ao Supremo Tribunal Federal. Na democracia, é assim. Lei não é bíblia de moralidade.

O que essa proposta pretende dar aos gays, e sabe-se lá se terá alguma eficácia, é aquilo a que todo ser humano tem direito: respeito à sua integridade física e moral. Os evangélicos, pelo menos os que foram a Brasília, dão prova de desconhecer que seres humanos não diferem de coisas só porque são um fim em si mesmos. Os seres humanos diferem das coisas porque, além de tudo, têm dignidade. As coisas têm preço.

Fonte: Revista Veja | Ed.2067

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Afirmação de fé

Por Luiz Carlos Ramos

Creio em Deus, Pai de todas as gentes. Mãe de todas as raças;
E Em Jesus Cristo, Deus Humano, em tudo semelhante a nós:
no sangue vermelho na cor e no sangue vertido na dor;
Creio no Espírito da Vida, consolador de tantos prantos,
pacificador em tantas lutas, inspirador da vida santa;
Creio na comunhão do povo oprimido, na ressurreição
dos corpos abatidos, e no gesto eterno do pão repartido;
Creio na vida plena para todos os povos:
do norte e do sul, do oriente e do ocidente;
Creio na paz para todas as gentes:
brancos e negros, amarelos e vermelhos;
Creio na justiça para todos os homens,
e no direito para todas as mulheres;
Creio, enfim, que somos idênticos na cor do sangue,
diferentes na cor da pele,
equivalentes na comunidade humana,
rumo à plenitude divina.

Amém.


segunda-feira, 23 de junho de 2008

A religião como erro lógico

O matemático americano usa as ferramentas de sua disciplina para mostrar onde fazem água os argumentos sobre a existência de Deus.

Jerônimo Teixeira entrevista John Allen Paulos

O matemático John Allen Paulos, 62 anos, entrou na recente onda de livros ateus com Irreligion (Irreligião), lançado neste ano. Leve, bem-humorado e breve, seu livro não mostra a acidez das demais obras desse filão, no qual pontificam descrentes raivosos como o biólogo Richard Dawkins e o jornalista Christopher Hitchens. As pretensões de Irreligion não são muito diversas das dos livros anteriores de Paulos, todos devotados à sua disciplina. Professor da Universidade Temple, na Filadélfia, ele se esforça para ensinar a matemática como uma forma de pensamento, um molde rigoroso mas criativo para o exame do mundo. Irreligion é um livro devotado à lógica: Paulos analisa argumentos tradicionais sobre a existência de Deus e mostra onde fazem água. Autor de uma coluna em que examina aspectos matemáticos dos eventos do cotidiano no site da rede de televisão ABC, Paulos ganhou popularidade com Innumeracy (traduzido no Brasil como Analfabetismo em Matemática e Suas Conseqüências, em edição esgotada), livro em que alertava para as armadilhas da falta de familiaridade com números. Da Tailândia, onde leciona ocasionalmente, Paulos deu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – O que um matemático pode dizer sobre o ateísmo?
Paulos – Examino os argumentos tradicionais em favor da existência de Deus, e não as conseqüências sociais da religião. Eu me abstenho de fazer comentários sarcásticos sobre a religião das pessoas. Busco, isso sim, demonstrar os furos lógicos nesses argumentos. Como matemático, estou acostumado a trabalhar com provas lógicas – a partir de determinadas premissas, derivamos certas conseqüências. A lógica tem de ser rigorosa. Os argumentos teológicos não seguem esse rigor. Eles pulam de A para B, mas há um grande abismo entre os dois termos.

Veja – Pascal e Leibniz, entre inúmeros grandes filósofos do passado, eram matemáticos e crentes.
Paulos – Leibniz tinha uma concepção muito particular de Deus. Como ele, muitos dizem acreditar em Deus, mas aquilo em que crêem não seria chamado de Deus pelo cidadão comum. As leis impessoais do universo, a beleza do mundo natural – todas essas coisas já foram chamadas de Deus. Se você definir Deus assim, bem, então Deus existe, claro. Einstein costumava falar em Deus, de forma meio ambígua, e as pessoas religiosas gostam de citá-lo como exemplo de cientista crente. Mas, há pouco tempo, foi redescoberta uma carta em que ele ataca a religião como uma atividade infantil. A maioria das pessoas pensa em Deus como um ser onipotente, ou pelo menos muito poderoso, onisciente, e que tem algo a ver com a criação do universo. De resto, só porque você é um matemático de primeira ordem, isso não quer dizer que está dispensado de apresentar argumentos lógicos. O fato de um Leibniz ser religioso não prova nada a favor da religião.

Veja – Em geral, as pessoas não estão preocupadas com questões lógicas quando buscam uma religião. Elas procuram um certo sentido superior. Como o senhor responderia a essa necessidade?
Paulos – Não há resposta para isso. Se alguém diz "eu acredito porque decidi acreditar", não há muito que fazer. Você só pode apontar que não existem provas ou argumentos que sustentem essa crença. O fato, porém, é que as pessoas que acreditam quase sempre, em algum momento, recorrem a algum dos argumentos a favor da existência de Deus que eu critico no livro. Em geral, invocam a beleza da natureza como prova da existência de Deus. Outras apontam supostos milagres e coincidências e dizem que essas coisas não podem acontecer por acaso. E, nesse ponto, devemos apontar suas falhas lógicas.

Veja – É improvável que as pessoas deixem de acreditar, mesmo depois que seus argumentos são derrubados.
Paulos – Sim, claro. Não tenho problemas com isso. É uma questão de escolha individual. Ninguém pode impingir a crença ou a descrença a outra pessoa. Mas há um certo perigo nessa atitude. Se alguém diz: "Isso é tão importante para mim que você não pode questionar, não pode perguntar sobre as minhas razões", a crença se torna uma força bruta. Que, em algum momento, colide com outra força brutal. Nos Estados Unidos de hoje, com a ascensão da direita religiosa, tem havido essa afirmação da centralidade da fé. E, em geral, não se admite que ela seja discutida. Dizem que a religião está além da argumentação.

Veja – O tom de alguns novos ateus, especialmente Richard Dawkins e Christopher Hitchens, é muito agressivo. Há o risco de o ateísmo se tornar tão dogmático quanto a religião?
Paulos – Há certo risco. Eu não me sinto confortável atacando a religião frontalmente. Não é o que faço. Parte de mim acredita que, se alguma coisa ajuda você a atravessar a noite, não é de todo má. É inegável que a religião ajuda muita gente. E talvez haja, sim, o risco de que você fala. No momento, porém, acho que ele é mínimo, e é bom que os ateus exponham seus pontos de vista em uma sociedade tão marcada pela religião. Há espaço para todos os tipos de ateísmo, do mais barulhento ao matemático, com um toque de humor, que eu pratico.

Veja – Seu livro foi resenhado de forma simpática por um pastor batista. Ele reclamava, no entanto, que o senhor tendia a pintar todos os cristãos como fanáticos. Críticos da religião como o senhor estariam perdendo de vista o fato de que a maioria dos fiéis é discreta e razoável, e não fundamentalista?
Paulos – Recebi vários e-mails de leitores religiosos, que admitiram que os fiéis têm de se confrontar de algum modo com os argumentos que apresento. Eles recorrem a outra linha de argumentação: dizem que a religião é uma tradição, que une as pessoas, que lhes dá conforto, e é uma fonte de ideais elevados. Eu não discordo. O problema com os cristãos moderados é que eles fazem uma leitura seletiva da Bíblia: acreditam neste ou naquele ponto e discordam de outros. Mas como escolher os pontos da Bíblia que vale a pena sustentar e aqueles que devem ser rejeitados? Basicamente, essa escolha é feita com base em critérios seculares. A aceitação dos gays por algumas igrejas, por exemplo, não responde à tradição religiosa, mas a uma imposição dos valores seculares. Então, pergunto: por que não ser completamente secular?

Veja – Em algum sentido a tradição religiosa é positiva?
Paulos – Não tenho nenhum problema com as narrativas, os mitos, as histórias ensinadas pela religião. A Bíblia é grande literatura. Meu problema é com o literalismo. Não se pode dizer que as coisas narradas na Bíblia ou em qualquer outro texto religioso são verdadeiras – pelo menos, não no sentido em que dizemos, por exemplo, que houve um acidente de carro na última segunda-feira às 2 da tarde. Vale notar que a discussão que proponho, sobre os argumentos a respeito da existência de Deus, passa um tanto ao largo das tradições religiosas. Mesmo que você consiga provar que estou errado – que existem, sim, bons argumentos para sustentar a existência de um Deus –, haveria um grande salto, um verdadeiro abismo, entre essa afirmação e a crença, por exemplo, na divindade de Jesus Cristo ou nas restrições alimentares que tantas religiões reforçam. Uma coisa não se segue diretamente a outra. A existência de Deus não justificaria esses mandamentos e restrições. Ou, para dizer o mesmo com uma pitada de sarcasmo, não há elo causal entre "Deus existe" e "é proibido comer batatinha frita nas sextas-feiras".

Veja – Quanto respeito um ateu deve ter por uma religião?
Paulos – Não acredito que você deva sair por aí insultando as pessoas, como Christopher Hitchens faz. Mas, em algumas situações, na companhia de pessoas religiosas, uma pergunta simples pode ser útil: "Você acredita mesmo nisso?". É um modo de quebrar o encanto. Esse pode ser um benefício dessa onda de livros ateus: tornou mais aceitável fazer esse tipo de questionamento. Eu acho que há mais não-crentes – ateus, agnósticos etc. – do que se imagina. A maioria deles prefere ficar quieta. Há várias pesquisas que mostram que os americanos não confiam em ateus ou nunca votariam em um ateu para presidente. É provável que, por causa dessas coisas, as pessoas prefiram não anunciar seu ateísmo em sua comunidade. Mas é preciso lembrar que elas mentem em pesquisas de opinião. O mesmo acontece, aliás, em pesquisas sobre comportamento sexual – as pessoas não querem revelar sua intimidade.

Veja – Se as pessoas gostassem mais de matemática, gostariam menos de religião?
Paulos – Se as pessoas gostassem mais de matemática, pensariam com mais rigor. Isso faria com que pusessem muitas de suas crenças em xeque.

Veja – Quais são as habilidades matemáticas de que uma pessoa precisa para sobreviver no mundo?
Paulos – Muitas vezes, não é tanto o conhecimento técnico que faz falta. Aritmética e alguma álgebra servem para a maior parte das situações cotidianas. Mas as pessoas ainda carecem de uma certa habilidade para pensar em termos de lógica formal, para estimar quantidades e ter pelo menos um certo senso de probabilidades e estatística. Nas minhas aulas, por exemplo, proponho aos meus alunos que eles estimem quantos afinadores de piano existem na Filadélfia. Para chegar lá, eles têm de saber a população da Filadélfia, a porcentagem de casas com piano, a freqüência com que eles são afinados, quantos pianos um afinador consegue afinar em uma semana, e assim por diante. A maior parte dos números de que precisamos para fazer esse tipo de cálculo não é publicada, e temos de encontrar meios de estimá-los. Mas as pessoas muitas vezes não têm sequer uma noção dos números básicos que cercam sua vida – a população do país e da cidade onde vivem, por exemplo. É isso que chamo de "analfabetismo numérico". Noções de grandeza também são estranhas para muita gente. Por exemplo, serão poucas as pessoas que sabem o que 1 milhão de segundos representa em dias. São cerca de onze dias e meio. E as pessoas também se surpreendem com a diferença entre o milhão e o bilhão, porque não têm noção da grandeza desses números – para chegar a 1 bilhão de segundos, são necessários quase 32 anos.

Veja – Que tipo de armadilha os números podem apresentar para quem não tem uma boa formação em matemática?
Paulos – Precisão é um bom exemplo. Livros de receitas quase sempre trazem quantidades bastante grosseiras: duas ou três xícaras de farinha, uma colher de chá ou de sopa de açúcar, três ovos. E isso é suficiente para o cozinheiro conseguir um bom resultado. Mas, às vezes, a mesma receita informa, por exemplo, que uma fatia da torta terá 761 calorias. Não há como ser tão preciso. Um matemático, quando confrontado com números tão precisos, geralmente expressa ceticismo: "Como é que eles podem saber disso com tanta exatidão?". As pessoas que não dominam os fundamentos da matemática, porém, tendem a ficar muito impressionadas: "Caramba, o cozinheiro que escreveu esse livro realmente sabe o que faz". Há vários truquezinhos do gênero que os espertos usam para impressionar. Se as pessoas fossem mais expostas, desde a escola, a problemas matemáticos, passatempos, charadas, anedotas envolvendo números, seriam menos suscetíveis a esse tipo de enganação.

Veja – Probabilidade é outro campo minado. Pessoas que não tomam a mínima precaução quanto a problemas cardiovasculares morrem de medo de doenças exóticas, que têm muito menos probabilidade de atingi-las. Por que acontece isso?
Paulos – Nós não evoluímos para entender a probabilidade. Se você me permite uma historinha, imagine um homem primitivo que vê um movimento suspeito em uma moita próxima, no meio da selva. Ele corre como um louco, com medo de um tigre. Se ficasse para calcular a probabilidade de ser um coelho, acabaria devorado pelo tigre. Nós não tomamos decisões em termos de probabilidades numéricas. Pensamos, isso sim, em termos de histórias, narrativas, imagens. Eventos que são mais vívidos ou incomuns têm mais impacto para nós do que aquilo que é familiar. Por isso às vezes nos preocupamos tanto com ameaças remotas.

Veja – Como transmitir a beleza que os matemáticos encontram nos números a pessoas que não gostam de matemática – especialmente crianças em idade escolar?
Paulos – Jogos, quebra-cabeças e paradoxos ajudam a despertar a curiosidade. As pessoas às vezes acham que matemática se resume a fazer contas. Claro que fazer contas é fundamental, mas é preciso ir adiante. Se o ensino de literatura ao longo de doze anos de escola se resumisse à gramática e à análise sintática, seria surpreendente se alguém chegasse à faculdade com uma apreciação verdadeira pela literatura. Respeitadas as diferenças, é assim que o ensino de matemática ocorre nos dias de hoje: "Aqui estão 100 equações. Resolvam!". E as pessoas tendem a achar que um aluno tem pendor para a matemática só porque consegue resolver esses problemas simples rapidamente. Seria como dizer: "Você datilografa muito bem. Poderia ser um poeta".

Fonte: Revista Veja - Ed.2065 - 18 de junho de 2008

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Por um pensamento complexo

"O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e, por fim, acaba sabendo tudo sobre nada". George Bernard Shaw, dramaturgo e crítico literário irlandês (1856-1950).

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O Deus bailarino

Por Ed René Kivitz
Escritor, conferencista e pastor da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo


O que acreditamos a respeito de uma coisa determina a maneira como nos relacionamos com ela. Eu, por exemplo, gosto de brincar com cachorros, mas se percebo que um cachorro é bravo, fico longe dele; mas se é brincalhão, chego perto. Assim é também com o mundo. Antigamente, acreditava-se que o mundo era uma estrutura hierarquizada, sempre do mais complexo ou poderoso para o mais simples ou fraco, sendo que Deus ocupava o topo da pirâmide. O imaginário das pessoas era construído a partir das relações entre reis e súditos, senhores e escravos, generais e soldados, e assim por diante. Cada um tinha seu papel e quase todo mundo se respeitava. Naquela época, a Igreja tinha autoridade, e quem não concordava com o que ela dizia morria na fogueira - mesmo que essa Igreja dissesse que índios e escravos não tinham alma e que o sol girava ao redor da Terra.

Quem acredita numa realidade estruturada a partir de autoridade e poder acha que a fé em Deus resolve tudo; afinal de contas, “agindo Deus, quem impedirá?”. Basta orar com fé e esperar a cura, a prosperidade, a volta do marido, a libertação do filho, enfim, a solução de qualquer problema. Deus manda, o resto obedece. Tudo quanto se tem a fazer é aprender os truques para fazer Deus mandar exatamente o que a gente quer que ele mande. Surgem então as correntes de fé e as ofertas compensadoras da falta de fé, e, principalmente, os gurus que sabem manipular Deus em favor de quem paga bem. Feitiçaria pura.

Copérnico, Galileu, Newton, Einstein e sua teorias científicas fizeram com que o mundo passasse a ser visto como uma máquina, ou como um relógio, sendo Deus o relojoeiro. Neste mundo-máquina, tudo pode ser decodificado, explicado e controlado. As coisas funcionam em relações de causa e efeito previsíveis, como por exemplo as estações do ano, as fases da lua, os movimentos das marés, a órbita dos planetas e os eclipses solares. No dia-a-dia, estas relações também são previsíveis: a partir de informações sobre massa, força, aceleração e direção, sabemos calcular em quanto tempo o carro vai se chocar contra o poste, ou qual bolinha vai acertar a amarela e qual delas vai cair na caçapa.

No mundo-máquina é possível também consertar quase tudo. Quando seu microondas pára de funcionar, basta chamar um técnico e ele vai dizer qual peça deverá ser substituída. O problema é que quem acredita que o mundo funciona assim acaba extrapolando isso para todas as suas relações: o casamento quebrou? Seu filho está dando trabalho? A vida não está funcionando? Então, basta chamar o especialista. Quase tudo tem conserto e pode voltar a funcionar como antes. Mais do que isso, se é verdade que as relações de causa e efeito obedecem precisão matemática, basta apertar o botão certo que as coisas acontecem. Quer fazer discípulos? Quer fazer a igreja crescer? Quer evitar problemas na família? Quer garantir uma boa carreira profissional? Então, basta fazer o curso certo, encontrar o método indicado, seguir as regras apropriadas. Logo, “A” sempre conduz a “B”. Caso você faça “A” e o resultado não seja “B”, então você pensa que fez “A”, mas não fez. O mundo-máquina é assim: tudo sempre funciona direitinho – você é que nem sempre funciona.

Desta compreensão é que surgem o fenomenal ministério para fazer a igreja funcionar com propósitos; a estratégia de sete passos para fazer o ministério ser relevante; as quatro leis espirituais para ganhar a vida eterna; as técnicas de ministração para libertação espiritual e cura interior; os grupos de 12 para fazer o rebanho se multiplicar. É apostila para tudo quanto é coisa, curso para tudo quanto é treco e guru especialista para tudo quanto é tranqueira. Quase todos bem intencionados, mas geralmente funcionando como se o mundo fosse mesmo uma máquina.

Mais recentemente apareceram no cenário algumas teorias elaboradas a partir de outras percepções das ciências da física e da biologia. Na mecânica quântica, os movimentos não são tão previsíveis quanto na mecânica newtoniana. Então, o mundo já não é uma hierarquia nem uma máquina, mas um organismo vivo. As palavras mais adequadas para descrever a realidade são “teia”, “rede”, “arena”, e até mesmo “dança”. A realidade é complexa e os fenômenos naturais e sociais não são previsíveis nem manipuláveis. As pessoas são singulares. Basta verificar que dez pessoas que ganham na loteria reagem de dez maneiras diferentes. Os relacionamentos também são singulares. Dez casais que ganham um filho reagem de dez maneiras diferentes. Da mesma forma, dez igrejas que iniciam um projeto reagem de dez maneiras diferentes. Seres vivos não são padronizáveis. Eles não obedecem relações exatas de causa e efeito. Seres vivos não são coisas. E a vida não é exata.

Quem acredita no mundo como um ser vivo onde cada ser e cada relação é singular, não consegue se submeter a esquemas, não tem a pretensão de gerenciar pessoas, não confia em métodos e nem se impressiona com números, estatísticas e probabilidades. Prefere outros caminhos. Escolhe o caminho da intimidade com o outro; encanta-se com o mistério do sagrado; maravilha-se com a diversidade; presta atenção no jovem em conflito; ouve os dramas do homem que não pára em emprego; fica em silêncio diante da dor e se ajoelha para orar antes de dar um passo sequer em qualquer direção. Esses não se dão muito bem com o Deus-general, ou o Deus-relojoeiro. Curtem mais o Deus-bailarino.

Fonte: Eclésia

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Síndrome de Jerusalém

Doença psiquiátrica faz com que turistas em visita à Terra Santa pensem que são personagens bíblicos
Por Débora Crivellaro

DEVOÇÃO - O ambiente sagrado pode ser demais para alguns peregrinos, principalmente cristãos protestantes

Uma visita a Jerusalém costuma provocar fortes emoções até nos mais incrédulos. A cidade transpira história, política, fé, formando um caldo de cultura que nenhuma outra no mundo concentra. Mas, para alguns turistas, esse impacto é tão forte que eles desenvolvem uma condição psiquiátrica chamada síndrome de Jerusalém e passam a acreditar que são um personagem bíblico. De repente, a pessoa se afasta do grupo de excursão, começa a vagar sozinha, veste uma túnica e inicia uma pregação. O que parece brincadeira tem sido levado cada vez mais a sério pela polícia de Israel, que, em dezembro de 2007, destacou uma divisão especial só para lidar com as vítimas dessa doença. Atualmente, são internadas cerca de 40 pessoas por ano no hospital psiquiátrico da cidade. E as autoridades sinalizam que esse número tem crescido a cada ano.

A síndrome de Jerusalém foi identificada clinicamente pelo médico Yair Bar El, do Hospital Psiquiátrico Kfar Shaul, para onde vão todos os turistas com problemas psicológicos da cidade. Ele estudou 470 indivíduos tratados no centro médico entre 1979 e 1993 com sintomas característicos da doença. A pesquisa rendeu uma série de conclusões, estabeleceu os estágios do distúrbio e apontou quem é mais suscetível a desenvolvê-lo (leia quadro). Umas das constatações é que, normalmente, a síndrome começa a se desenhar no segundo dia de viagem. E só é possível “barrá-la” até o estágio em que a pessoa tenta se afastar do grupo. Se ela se veste com lençóis, só a internação consegue detê-la. Os guias turísticos da cidade já estão treinados para alertar as autoridades sobre qualquer alteração.

Os cristãos de denominações protestantes são os mais suscetíveis a desenvolver a doença. Segundo Bar El, isso acontece porque, diferentemente de católicos e judeus, que têm tradições e rituais rígidos e um mediador, como o padre ou o rabino, os evangélicos mantêm uma relação direta com Deus. “Se fortes agentes externos causadores de stress (como a visita a locais sagrados) são confrontados com agentes internos (como a fantasia) e, ainda por cima, a pessoa é vulnerável, isso desencadeia a crise”, analisa a psicoterapeuta Eni Peniche, do Rio de Janeiro.

TRANSTORNO - As vítimas da síndrome vagam pelas ruas da cidade vestindo túnicas e fazendo pregações

O tratamento para o distúrbio costuma ser simples. A primeira precaução, repassada aos policiais que abordam as vítimas pelas ruas, é não contrariá-las nem tentar chamá-las à realidade. Ou seja, é melhor elas continuarem pensando que são Maria Madalena, Davi ou João Batista, por exemplo. Podem ser ministrados tranquilizantes para amenizar o epicentro da crise. Em seguida, a conduta é tirar o paciente da cidade e levá-lo de volta à sua casa. O distúrbio costuma durar uma semana. Quem passou por isso descreve a experiência como uma sensação de desorientação ou intoxicação e lembram-se com detalhes do que aconteceu.

Não há relatos no Brasil de vítimas da doença. Há pouquíssimos especialistas no mundo em síndrome de Jerusalém e todos acreditam que ela é um tipo de psicose. Segundo eles, não é a Cidade Santa que causa todos esses efeitos. Ela é apenas um catalisador de reações intensas que alguns indivíduos estão predispostos a desenvolver por causa da formação religiosa. Também há controvérsias quanto a classificar a síndrome como uma doença, principalmente por conta da escassez de estudos. Mas ninguém contesta a existência, cada vez maior, de personagens bíblicos perambulando entre o Muro das Lamentações, a Via Dolorosa ou o Santo Sepulcro.


Fonte: ISTOÉ | 30 de Abril de 2008 | Ano 31 | Páginas 66 e 67