segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Os judeus e o milênio

Por Nilton Bonder (em 27/DEZ/1999)

O dia 31 de dezembro deste último ano do milênio no calendário ocidental ocorre numa sexta-feira à noite, quando começa o shabat para a tradição judaica.

Shabat é o conceito que propõe descanso ao final do ciclo semanal de produção inspirado no descanso divino no sétimo dia da Criação. Muito além de uma proposta trabalhista já conquistada em grande parte das sociedades do planeta, shabat entende a pausa como fundamental para a saúde de tudo que é vivo. A noite é pausa, o inverno é pausa, mesmo a morte é pausa. Onde não há pausa, a vida lentamente se extingue. Para um mundo no qual funcionar 24 horas por dia parece não ser suficiente, onde o meio ambiente e a terra imploram por uma folga, uma pausa; onde nós mesmos não suportamos mais a falta de tempo, shabat se torna uma necessidade do planeta.

A terra, Gaia, nós e nossas famílias precisamos da pausa que revigora. Prazer, vitalidade e criatividade dependem destas pausas que estamos negligenciando.

Hoje o tempo de "pausa" é preenchido por diversão e alienação. Lazer não é feito de descanso, mas de ocupações para não nos ocuparmos. A própria palavra "entretenimento" indica o desejo de não parar. É a busca de algo que nos distraia para que não possamos estar totalmente presentes. Estamos cansados mesmo quando descansados. E a incapacidade de parar é uma forma de depressão. O mundo está deprimido e a indústria do entretenimento só pode crescer nestas condições.

Nossas cidades se parecem arquitetonicamente cada vez mais com a Disneylândia e o tipo de emoções que buscamos, também. Longas filas para aproveitar experiências pouco interativas. Fim de um dia com gosto de vazio; um divertido que não é nem ruim nem bom. Dia pronto para ser esquecido não fossem as fotos e a memória de uma expectativa frustrada que ninguém revela para não dar o gostinho ao próximo.

Estamos entrando o milênio num mundo que é um grande shopping. A Internet e a televisão não dormem. Não há mais insônia solitária; solitário é quem dorme. As bolsas do Ocidente e do Oriente se revezam fazendo do ganhar e perder, das informações e dos rumores atividade incessante. A CNN inventou um tempo linear que só pode parar no fim. Hoje não se consegue parar a não ser que seja no fim.
Mas as paradas estão por toda a caminhada e por todo o processo. Sem acostamento, a vida parece fluir mais rápida e eficiente, mais ao custo fóbico de uma paisagem que passa. Os olhos não têm muito tempo para ver e recorrem à memória para recuperar o que a retina apreendera. O futuro é tão rápido que se confunde com o presente.

As montanhas estão com olheiras, os rios precisam de um bom banho, as cidades de uma cochilada, o mar de umas férias, o domingo de um feriado, a noite de penumbra, e o simples de uma lipo. Nossos artistas só sabem fazer instalações - dispor para funcionar. Nossos namorados querem "ficar", trocando o "ser" pelo "estar". Saímos da escravidão do século XIX para o leasing do século XX - um dia seremos nossos. Do escambo por carinho e tempo, evoluímos para a compra de carinho e tempo. Quem tem tempo não é sério, quem não tem tempo é importante.
Nunca fizemos tanto e realizamos tão pouco. Nunca corremos tanto e deixamos tanto inacabado. Nunca tantos fizeram tanto por tão poucos. Parar não é interromper.
Muitas vezes continuar é uma interrupção. Mas isto nos parece difícil de entender. E assim o sol não pára de nascer e a semana de acabar. O mês passa rápido - menos que o salário - mas quando se viu o ano já passou. Do jeito que estamos, não tarda muito, o milênio já foi.

Shabat é pausa. O dia de não se trabalhar não é o dia de distrair - literalmente, "tornar desatento". É um dia de atenção, de ser atencioso consigo e com sua vida. A pergunta que se fazem as famílias no descanso - "o que vamos fazer hoje?" - é marcada por ansiedade. E sonhamos com uma longevidade de 120 anos quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo. O tempo, por não existir, faz mal a quem quer controlá-lo. Quem "ganha tempo", por definição perde. Quem "mata tempo", fere-se mortalmente. E este é o grande "radical-livre" que envelhece nossa alegria - o sonho de fazer do tempo uma mercadoria, um artigo.

Em tempos de milênio temos que resgatar coisas que são milenares. A pausa é que traz a surpresa e não o que vem depois. A pausa é que dá sentido à caminhada. A prática espiritual deste milênio será viver as pausas. Não haverá maior sábio do que aquele que souber quando algo terminou e quando algo vai começar. Afinal, por que mesmo que o Criador descansou? Talvez porque mais difícil do que iniciar um processo do nada, seja dá-lo como concluído.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A coerência é um valor moral?

Por Contardo Calligaris

A coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia e, talvez, de quem tem pouca coragem.

NO FIM de semana retrasado, estive em Olinda, na Fliporto (Feira Literária Internacional de Pernambuco). No sábado, Benjamin Moser, que escreveu uma linda biografia de Clarice Lispector ("Clarice,", Cosac Naify), lembrou que, na famosa entrevista concedida à TV Cultura em 1977, a escritora afirmou que não fizera concessões, não que soubesse.

Moser acrescentou imediatamente que ele não poderia dizer o mesmo. E eis que o público se manifestou com um aplauso caloroso.

Talvez as palmas de admiração fossem pela suposta coerência adamantina de Clarice, que nunca teria feito concessões na vida. Talvez elas se destinassem a Benjamin Moser pela admissão sincera de que ele (como todos nós) não poderia dizer o mesmo que disse Clarice.

Tanto faz. Nos dois casos, o pressuposto é o mesmo. Que as palmas fossem pela força de caráter de Clarice ou pela honestidade de Moser ao reconhecer sua própria fraqueza, de qualquer forma, não fazer concessões parecia ser, para os presentes, uma marca de excelência moral.

A pergunta surgiu em mim na hora: será que é mesmo? Posso respeitar a tenacidade corajosa de quem se mantém fiel a suas convicções, mas no que ela difere da teima de quem se esconde atrás dessa fidelidade porque não sabe negociar com quem pensa diferente e com o emaranhado das circunstâncias que mudam? Aplicar princípios e nunca se afastar deles é uma prova de coragem? Ou é a covardice de quem evita se sujar com as nuances da vida concreta?

Como muitos outros, se não como todo mundo, cresci pensando que não fazer concessões é uma coisa boa.

Fui criado na ideia de que há valores não negociáveis e mais importantes do que a própria vida (dos outros e da gente). Talvez por isso me impressionasse a intransigência dos mártires cristãos (embora eu tivesse uma certa simpatia envergonhada por Pedro renegando Jesus para evitar ser reconhecido e preso).

Durante anos admirei os bolcheviques por eles serem homens de ferro (a expressão é de Maiakóvski, nada a ver com "Iron Man") e desprezei Karl Kautsky, que Lênin estigmatizou para sempre como "o renegado Kautsky", por ele ter mudado de opinião sobre a Primeira Guerra, sobre a revolução proletária, sobre o bolchevismo etc.

Vingança da história: Lênin se tornou quase ilegível, mas a obra principal de Kautsky, que acaba de ser traduzida, "A Origem do Cristianismo" (Civilização Brasileira), continua crucial.

Mas voltemos ao assunto. Hoje, estou mais para Kautsky do que para bolchevique; até porque descobri, desde então, que Mussolini se vangloriava gritando: "Eu me quebro, mas não me dobro". Ele se quebrou mesmo, enquanto eu me dobro e posso renegar ideias minhas que pareçam ser, de repente, inadequadas ao momento (dos outros, do mundo e meu).

Olhando para trás, descubro (com certo orgulho) que, ao longo da vida, fiz inúmeras concessões, inclusive na hora de escolhas fundamentais. Poucas vezes lamentei não ter sido coerente. Mas muitas vezes lamento não ter sabido fazer as concessões necessárias, por exemplo, na hora de ajustar meu desejo ao desejo de pessoas que amava e de quem, portanto, tive que me afastar.

Alguém dirá: espere aí, então a fidelidade a princípios e valores não é uma condição da moralidade? Estou lendo (vorazmente) "O Ponto de Vista do Outro", de Jurandir Freire Costa (Garamond). O livro é, no mínimo, uma demonstração de que a forma moderna da moral não é o princípio, mas o dilema. E, no dilema, o que importa não é a fidelidade intransigente a valores estabelecidos; no dilema, o que importa é, ao contrário, nossa capacidade de transigir com as situações concretas e com os outros concretos.

A coerência é uma virtude só para quem se orienta por princípios. Para o indivíduo moral, que se orienta (e desorienta) por dilemas, a coerência não é uma virtude, ao contrário, é uma fuga (um tanto covarde) da complexidade concreta. Oscar Wilde, que é um grande fustigador de nossas falsas certezas morais, disse que "a coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia" e, eu acrescentaria, de quem tem pouca coragem.

Resta absolver Clarice. Aquela frase da entrevista era, provavelmente, apenas uma reverência retórica a um lugar-comum de nosso moralismo trivial.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O rosto de Deus

Por Ricardo Gondim

Rafael, Michelangelo e vários outros pintores tentaram retratar o rosto de Deus. Foram infelizes. Como mostrar na tela quem nunca foi visto? Com a proximidade do Natal, mais artistas procuram esboçar o que imaginam ser o rosto de Deus.

Ele se parece com uma criança? É o frágil bebê das manjedouras? Talvez; o reino do céu pertence aos pequeninos, aos que mamam. Ao tentar desenhar o mistério, o artista termina com um ídolo.

O rosto de Deus, entretanto, pode ser experimentado nos sem-teto que perambulam pelas ruas e dormem nos viadutos das grandes cidades. Quando Jesus nasceu, a família estava sem moradia certa, não possuía recursos para pagar uma hospedaria e viu-se obrigada a refugiar-se em um estábulo.

O rosto de Deus pode ser percebido em vítimas de preconceito e em injustiçados. Sobre o menino que nasceu em Belém pairou uma dúvida: ele era de fato filho de José? O casal não inventara aquela história toda para se safar de um rolo?

O rosto de Deus se revela nos desprezíveis, nos que foram condenados à margem da história. Quando o menino nasceu, ninguém notou ou escutou o alarido dos anjos. A trombeta que anunciou paz na terra pela boa vontade de Deus passou desapercebida da grande maioria. Apenas um punhado de pastores foi sensível para presenciar o momento mais importante da história.

Qual o rosto de Deus? Ele não se parece com os cartões postais ou com o menino de barro das lapinhas. Deus é igualzinho a Jesus. E Jesus é bem parecido com o vizinho do lado, com a mulher que pede socorro na delegacia do bairro e com a família que chora a morte do filho no corredor do ambulatório.

Não é preciso muito para encontrar Deus, basta um coração de carne, humano.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Paz e Pais

Pelo Rabino Nilton Bonder

As fotos de crianças palestinas munidas de pedras diante de soldados israelenses que lhes apontam uma sofisticada arma de fogo é a imagem mais impressionante deste início de século. Mais que Torres desabando, este símbolo me parece mais forte. Os jornalistas pensam reproduzir fotos sobre o fraco que enfrenta o forte, quando na verdade fazem uma radiografia mais profunda de nosso estado civilizatório.

Primeiro devemos desmistificar as fotos. Quem é mais forte e quem é mais fraco? A criança e a pedra primitiva ou a criança de 18 anos fantasiada de uniforme com uma arma automática?

Mais forte é quem está em desvantagem munido apenas de sua fantasia de criança ou o adolescente provocado por um mais fraco e que não atira? Os heróis na verdade são patéticos. Para cada tantas pedras bem colocadas no capacete do soldado ressoando a milenar vitória de David sobre Golias, há uma patética criança baleada vítima de um adolescente que não se conteve. E para cada tantos adolescentes que suportam tamanha provocação e valentemente batem em retirada mesmo quando em vantagem, há um patético adolescente em pânico porque matou um menor (em todos os sentidos).

A pergunta correta é: cadê os pais destas crianças? Onde estão os pais que preparam seus filhos para enfrentar à pedra o fogo, ou que preparam seus imaturos filhos para situações de desumana maturidade? Esses pais são a verdadeira foto. Atual e bíblica a foto nos comove. Lá estão os filhos de Abraham/Ibrahim - Isaque e Ismael - diante do sacrifício. Ismael é enviado por Abrão para a morte ao deserto como uma criança munida de pedra é enviada para zombar do anjo da morte. Isaque, por sua vez, é atado como holocausto e ao final salvo mas não sem cicatriz. Como um jovem que se salva do perigo mas com a marca em sua consciência para o resto da vida. Porque os pais sacrificam seus filhos? Eu sei que há camadas e camadas de explicações, justificativas, ideologias e razões, mas, porque os pais sacrificam os seus filhos? Aliás, desta pergunta não fogem os filhos caçulas de Abrão, os cristãos. Jesus morre à cruz se fazendo essa pergunta.

Imagino que os pais islâmicos sabem bem esta resposta porque posso ver como os pais israelenses respondem esta pergunta. Nosso passado, nossas identidades, nossas lealdades para com os pais, sejam eles na forma de ancestrais ou de História, respondem esta pergunta com um tom de transcendência. Deus aparece então como símbolo maior, monólito deste compromisso com os pais de antes e de sempre. Esta é a foto: um Deus cheio de significado enfrenta uma criança que é toda fé e ingenuidade ou enfrenta um adolescente perdido no vazio próprio de sua idade. Quem vencerá? A criança e o adolescente não têm a menor chance. O altar para o sacrifício está montado. E o nome do Pai é usado mais uma vez em vão.

O Talmude relata que Abaye trouxe para casa uma tâmara excepcional cujo perfume preenchia o ambiente. Seu filho Huna perguntou: de quem é esta tâmara tão maravilhosa? Abaye disse: "é sua, meu filho". Não tardou muito Abaye viu seu filho Huna oferecendo a tâmara a seu próprio filho e comentou: "Meu coração dói e se alegra ao mesmo tempo. Dói porque meu filho Huna preteriu a mim por seu filho e se alegra pois este é o caminho correto". Abaye sintetizou uma verdade de nossa civilização: Toda a vez que os filhos são mais leais para com seus filhos do que com seus pais, o mundo caminha em direção à paz. Toda a vez que os pais suportam esta dor, o mundo caminha em direção à paz.

Cadê os pais dessas crianças? Há uma maioria de pais israelenses que discernem hoje a ideologia que possibilitou o Estado de Israel da ideologia que propõe um estado de defesa. Estar defendido não é o mesmo que se defender. Em nome de estar-se defendido podemos fazer coisas que não gostaríamos tanto no âmbito individual como coletivo. Há, no entanto, um outro grupo de pais que tal como no lado palestino querem ter muitos filhos e vencer demograficamente a batalha de quem tem mais filhos para perder.

Só os pais podem desfazer este ciclo de violência. Há pouco lia sobre uma mãe árabe que reconheceu no aeroporto de Beirute um dos terroristas que haviam participado no massacre das crianças na cidade de Ma'alot. Segundo o relato, ela dirigiu-se ao terrorista e cuspiu-lhe no rosto dizendo: "Você não se envergonha de matar crianças?!". O terrorista que hoje se tornou um moderado e ativista pela paz, ficou por meses deprimido por conta daquele incidente e modificou sua conduta. Desperto por um "pai" que o liberou do torpor de lealdade aos pais, ele se deu conta da vergonha da qual participara.

O rabino Carlebach já havia dito há vinte anos: "A Era Messiânica não será motivada pela preocupação com o próximo, mas com um verdadeiro e genuíno amor pelos filhos." Com todo o amor de nossos pais e de nós pais, com todo o extremismo da mãe e pai mediterrâneo, ainda assim os pais continuam com agendas que são mais importantes que seus filhos. Jamais admitirão isso. Mas qualquer guerra que não seja um ato verdadeiro de auto-defesa atesta e revela esta agenda.

Fonte: CJB

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Recadastramento, o drama

Era uma vez uma velhinha que, como a maioria dos velhinhos, vivia da aposentadoria. Um dia, consultando um caixa eletrônico, viu que a sua conta estava zerada e que a pensão não havia sido depositada. Ficou muito preocupada, com medo de que o cartão bancário houvesse sido clonado, e lá se foi para o banco, conferir o que tinha acontecido. A moça do caixa checou daqui e dali e, afinal, descobriu que o dinheiro não fora depositado porque a velhinha não havia se recadastrado. Para voltar a receber a pensão, explicou a moça, devia ir a certa repartição pública. A velhinha prontamente se dirigiu para lá; mas lá não era lá. Depois de muita busca e demora, apareceu afinal alguém que sabia das coisas, e mandou-a para outro endereço. Era lá.

-- Como é que vocês fazem um recadastramento sem avisar a ninguém? – protestou a velhinha.

-- Mas nós avisamos – respondeu o funcionário. – Divulgamos em todas as rádios da região, e no jornal “A Voz da Serra”.

A velhinha, que não gosta de ouvir rádio nem lê “A Voz da Serra”, argumentou que tinha endereço certo e sabido, e que em relação a assuntos tão importantes o mínimo que o estado podia fazer era enviar correspondência. O funcionário concordou, mas tranquilizou-a, dizendo que, dentro de uma semana, ela receberia um cartão magnético que resolveria todos os seus problemas futuros. A pensão voltou a ser depositada; o cartão, porém, nunca chegou. Em compensação, algum tempo depois, chegou uma carta da Seplag, Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão, Rioprevidência, convocando-a para novo recadastramento – a ser realizado no dia anterior à chegada da carta, às 14h20.

A velhinha correu aflitíssima para o endereço indicado na carta. O local – uma escola estadual – estava vazio.

-- Eles não estão mais aqui – informaram. – O jeito é a senhora ir à Seplag.

A velhinha foi para a Seplag, onde foi recebida por uma funcionária atenciosa que, infelizmente, não pode fazer nada.

-- O problema é que agora são eles que fazem o recadastramento -- disse a moça.

-- Mas quem são “eles”? – perguntou a velhinha.

-- É que não é mais conosco, foi tudo terceirizado.

-- Não entendo porque a secretaria insiste tanto nesse recadastramento! -- desabafou a velhinha. – Na Europa, quando alguém morre, o cartório manda cópia da certidão de óbito para todas as fontes de aposentadoria, automaticamente.

-- Aqui também.

-- E aí? Não basta isso para que uma secretaria de planejamento e gestão possa separar vivos de mortos? Tem que assustar e atrapalhar os aposentados o tempo todo?

-- Ah, mas a senhora sabe como são essas coisas, né? – disse a funcionária.

Sim, a velhinha sabia. Um recadastramento terceirizado era coisa que devia dar muito dinheiro a várias pessoas. De qualquer forma, restava o problema: o que fazer? A moça orientou a velhinha a telefonar para um número da Seplag, o que a velhinha fez assim que chegou em casa. Neste número disseram a ela para ligar para outro número; e neste outro número, enfim, disseram-lhe para entrar no site, porque hoje em dia tudo é muito moderno e se resolve pela internet.

A velhinha ficou desesperada. Em seus 86 anos de vida, nunca precisou de computador, nunca pensou em ter computador e nunca teve a menor idéia de como entrar num site. Pegou um ônibus e desceu a serra, para pedir ajuda à filha. Mesmo assim, a tarefa não foi simples, porque o site é mal feito e complicado de navegar.
Depois de muitos cliques que não levaram a lugar nenhum, a filha conseguiu chegar à página que interessava. Entrou os dados pedidos e recebeu de volta um email:

“Acusamos o recebimento de sua justificativa de ausência. Fique atento à sua nova convocacão, que será divulgada através do site www.idfuncional.rj.gov.br, ou pelo número 0800 282 2326 no caso de segurados do Rioprevidência. Nos casos de segurados com impossibilidade de locomocão, o Rioprevidência fará o agendamento de sua identificacão biométrica no momento oportuno. Esta é uma resposta automática e não deve ser respondida.”

E este foi o ponto final das comunicações entre a velhinha e a sua fonte pagadora. Nem ela nem a sua filha entendem por que, tendo o endereço de email, a Seplag não avisa a data do agendamento aos interessados. O resultado é que, agora, estão ambas aflitas, uma discando o 0800 e a outra acessando o site, para não perder a data e a aposentadoria. Com o correio, já sabem que não podem contar, porque as cartas só chegam depois da data marcada. As duas me perguntaram se é isso que o estado considera boa gestão, e quantos aposentados não estarão na mesma angustiante situação.

-- Você já viu alguma empresa particular precisar recadastrar funcionário para saber quem existe e quem não existe? – me perguntou a velhinha. – Será que a Ambev ou a IBM recadastram seus funcionários o tempo todo? Você alguma vez já foi recadastrada?

-- Não, pensando bem, nunca fui. Sabe o que? Eu acho que isso dá uma crônica.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Passeio Socrático

Por Frei Betto(?)

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão.

Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir:

- "Qual dos dois modelos produz felicidade?"

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei:

- "Não foi à aula?"

Ela respondeu: - "Não, tenho aula à tarde". Comemorei:

- "Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde".

- "Não", retrucou ela, "tenho tanta coisa de manhã..."

- "Que tanta coisa?", perguntei.

- "Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina", e começou a elencar seu programa de garota robotizada.

Fiquei pensando: - "Que pena, a Daniela não disse: "Tenho aula de meditação!"

Estamos construindo super-homens e supermulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! - Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: "Como estava o defunto?". "Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!" Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais…

A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é "entretenimento"; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.

Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: "Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!"O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor.. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas.

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno. Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's.

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: "Estou apenas fazendo um passeio socrático." Diante de seus olhares espantados, explico: "Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Quem traiu Jesus?

Por Nilton Bonder

Em pleno período da Páscoa arqueólogos apresentam um pergaminho com outra versão sobre o comportamento do personagem Judas. Figura essa de quem se carreou a identificação com os judeus milenarmente associados à acusação de deicídio. Essa era uma das questões mais importantes do documento Nostra Etatae (Nossa Época) articulado sob a liderança de João XXIII e que revia as relações católico-judaicas em suas questões mais básicas. E nada mais básico do que a identificação do judeu com o traidor, o desleal e o infiel.

As teologias têm normalmente a função de responder perguntas iniciadas por "por que": o porquê da vida, da morte, das tragédias e das injustiças. No entanto, qualquer teologia produzida a partir do pronome interrogativo "quem" exige cautela. Isso porque para tal pronome a única resposta sagrada e madura é a que evoca os sujeitos "eu" ou "nós".

Quando da destruição do Segundo Templo e da devastação de Israel pelos mesmos romanos que torturaram e executaram Jesus, a teologia judaica se perguntou: "Quem é responsável por tanta destruição?" E para responder a um "quem?" de forma madura tiveram que corajosamente reconhecer: nós mesmos. Foram as próprias iniqüidades e perversidades do povo que trouxeram as destruições e agruras das quais eram vítimas. Em absoluta afinidade com a mensagem profética que cobrava tudo da própria consciência humana, os rabinos lavaram as mãos dos romanos para evitar uma teologia de demonização que só serve para evadir-nos do verdadeiro processo espiritual que é o aperfeiçoamento e o crescimento humano. Não o fizeram como um ato magnânimo e ingênuo de perdão, mas por perceber que não haveria forma saudável de traduzir a tragédia que não fosse assumindo a responsabilidade e evitando a busca da culpa de terceiros.

O pecado original humano é não ter entendido a pergunta que o Criador fez a Adão após comer do fruto proibido. Em vez da pergunta "onde estás?", Adão imerso em culpa pensa tratar-se de uma admoestação iniciada por "quem?". Como uma criança incapaz de assumir a si mesma e seus atos, ele aponta para Eva e esta para a serpente como culpados. Mas a serpente não está fora, muito menos no outro, mas em si. Essa é a função messiânica principal: resgatar-nos a responsabilidade que advém da habilidade de responder sem recorrer a outros culpados, a "quem?".

É chegada a hora de selar essa pergunta a não ser que ela seja respondida de forma teológica. Quem matou Jesus? Nós. Muito em particular todos os cristãos. Quem são os sacerdotes colaboracionistas? Os do Templo, mas em particular todos os cleros que para salvar suas instituições sacrificaram indivíduos que pregavam liberdades religiosas, ideológicas ou científicas. Essa é e sempre será a mensagem messiânica: o fim da segregação e da discriminação que nascem na pergunta "quem?". O culpado dos males do mundo não é o outro, seja o ladrão, o bastardo, a prostituta, o general ou o sacerdote. Quem Jesus perdoa em seu martírio por não saberem o que fazem não são indivíduos ou grupos específicos, mas o ser humano, a humanidade como um todo.

Um bom cristão que quiser confrontar essa pergunta milenar terá que se reconhecer entre aqueles que não permitem a chegada destes tempos utópicos sonhados pela cultura judaica de Jesus. Terá que se responsabilizar mais do que culpar. Terá que resgatar o Adão que pensava a serpente estar no "outro", quando era parte de si.

Há pouco, num debate na PUC, perguntaram-me como seria o Messias dos judeus. Eu então respondi: seria parecido com Jesus. Afinal é justamente um grupo de judeus que há dois mil anos o identificou como tal. Porque o Messias se traduz por um ser amoroso que não precisa culpar para se redimir, que prefere ser ele mesmo o bode expiatório ao invés de ludibriar sua própria consciência achando que o mal está nos outros.

O Messias para os judeus será alguém como Jesus que virá num dia onde as pessoas não terão que culpar esse Messias e matá-lo. Nesse dia, quando não mais se levantar a insidiosa pergunta "quem?", o Messias de cristãos e judeus (e de todos) terá a mesma essência. Afinal, Jesus morre com a única pergunta santa possível. Ele morre com um "por que?" e não com um "quem?".

Nilton Bonder
Rabino e escritor

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Calem a boca, nordestinos!

Por José Barbosa Junior

A eleição de Dilma Rousseff trouxe à tona, entre muitas outras coisas, o que há de pior no Brasil em relação aos preconceitos. Sejam eles religiosos, partidários, regionais, foram lançados à luz de maneira violenta, sádica e contraditória.

Já escrevi sobre os preconceitos religiosos em outros textos e a cada dia me envergonho mais do povo que se diz evangélico (do qual faço parte) e dos pilantras profissionais de púlpito, como Silas Malafaia, Renê Terra Nova e outros, que se venderam de forma absurda aos seus candidatos. E que fique bem claro: não os cito por terem apoiado o Serra... outros pastores se venderam vergonhosamente para apoiarem a candidata petista. A luta pelo poder ainda é a maior no meio do baixo-evangelicismo brasileiro.

Mas o que me motivou a escrever este texto foi a celeuma causada na internet, que extrapolou a rede mundial de computadores, pelas declarações da paulista, estudante de Direito, Mayara Petruso, alavancada por uma declaração no twitter: "Nordestino não é gente. Faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!".

Infelizmente, Mayara não foi a única. Vários outros “brasileiros” também passaram a agredir os nordestinos, revoltados com o resultado final das eleições, que elegeu a primeira mulher presidentE ou presidentA (sim, fui corrigido por muitos e convencido pelos "amigos" Houaiss e Aurélio) do nosso país.

E fiquei a pensar nas verdades ditas por estes jovens, tão emocionados em suas declarações contra os nordestinos. Eles têm razão!

Os nordestinos devem ficar quietos! Cale a boca, povo do Nordeste!

Que coisas boas vocês têm pra oferecer ao resto do país?

Ou vocês pensam que são os bons só porque deram à literatura brasileira nomes como o do alagoano Graciliano Ramos, dos paraibanos José Lins do Rego e Ariano Suassuna, dos pernambucanos João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira, ou então dos cearenses José de Alencar e a maravilhosa Rachel de Queiroz?

Só porque o Maranhão nos deu Gonçalves Dias, Aluisio Azevedo, Arthur Azevedo, Ferreira Gullar, José Louzeiro e Josué Montello, e o Ceará nos presenteou com José de Alencar e Patativa do Assaré e a Bahia em seus encantos nos deu como herança Jorge Amado, vocês pensam que podem tudo?

Isso sem falar no humor brasileiro, de quem sugamos de vocês os talentos do genial Chico Anysio, do eterno trapalhão Renato Aragão, de Tom Cavalcante e até mesmo do palhaço Tiririca, que foi eleito o deputado federal mais votado pelos... pasmem... PAULISTAS!!!

E já que está na moda o cinema brasileiro, ainda poderia falar de atores como os cearenses José Wilker, Luiza Tomé, Milton Moraes e Emiliano Queiróz, o inesquecível Dirceu Borboleta, ou ainda do paraibano José Dumont ou de Marco Nanini, pernambucano.

Ah! E ainda os baianos Lázaro Ramos e Wagner Moura, que será eternizado pelo “carioca” Capitão Nascimento, de Tropa de Elite, 1 e 2.

Música? Não, vocês nordestinos não poderiam ter coisa boa a nos oferecer, povo analfabeto e sem cultura...

Ou pensam que teremos que aceitar vocês por causa da aterradora simplicidade e majestade de Luiz Gonzaga, o rei do baião? Ou das lindas canções de Nando Cordel e dos seus conterrâneos pernambucanos Alceu Valença, Dominguinhos, Geraldo Azevedo e Lenine? Isso sem falar nos paraibanos Zé e Elba Ramalho e do cearense Fagner...

E Não poderia deixar de lembrar também da genial família Caymmi e suas melofias doces e baianas a embalar dias e noites repletas de poesia...

Ah! Nordestinos...

Além de tudo isso, vocês ainda resistiram à escravatura? E foi daí que nasceu o mais famoso quilombo, símbolo da resistência dos negros á força opressora do branco que sabe o que é melhor para o nosso país? Por que vocês foram nos dar Zumbi dos Palmares? Só para marcar mais um ponto na sofrida e linda história do seu povo?

Um conselho, pobres nordestinos. Vocês deveriam aprender conosco, povo civilizado do sul e sudeste do Brasil. Nós, sim, temos coisas boas a lhes ensinar.

Por que não aprendem conosco os batidões do funk carioca? Deveriam aprender e ver as suas meninas dançarem até o chão, sendo carinhosamente chamadas de “cachorras”. Além disso, deveriam aprender também muito da poesia estética e musical de Tati Quebra-Barraco, Latino e Kelly Key. Sim, porque melhor que a asa branca bater asas e voar, é ter festa no apê e rolar bundalelê!

Por que não aprendem do pagode gostoso de Netinho de Paula? E ainda poderiam levar suas meninas para “um dia de princesa” (se não apanharem no caminho)! Ou então o rock melódico e poético de Supla! Vocês adorariam!!!

Mas se não quiserem, podemos pedir ao pessoal aqui do lado, do Mato Grosso do Sul, que lhes exporte o sertanejo universitário... coisa da melhor qualidade!

Ah! E sem falar numa coisa que vocês tem que aprender conosco, povo civilizado, branco e intelectualizado: explorar bem o trabalho infantil! Vocês não sabem, mas na verdade não está em jogo se é ou não trabalho infantil (isso pouco vale pra justiça), o que importa mesmo é o QUANTO esse trabalho infantil vai render. Ou vocês não perceberam ainda que suas crianças não podem trabalhar nas plantações, nas roças, etc. porque isso as afasta da escola e é um trabalho horroroso e sujo, mas na verdade, é porque ganha pouco. Bom mesmo é a menina deixar de estudar pra ser modelo e sustentar os pais, ou ser atriz mirim ou cantora e ter a sua vida totalmente modificada, mesmo que não tenha estrutura psicológica pra isso... mas o que importa mesmo é que vão encher o bolso e nunca precisarão de Bolsa-família, daí, é fácil criticar quem precisa!

Minha mensagem então é essa: - Calem a boca, nordestinos!

Calem a boca, porque vocês não precisam se rebaixar e tentar responder a tantos absurdos de gente que não entende o que é, mesmo sendo abandonado por tantos anos pelo próprio país, vocês tirarem tanta beleza e poesia das mãos calejadas e das peles ressecadas de sol a sol.

Calem a boca, e deixem quem não tem nada pra dizer jogar suas palavras ao vento. Não deixem que isso os tire de sua posição majestosa na construção desse povo maravilhoso, de tantas cores, sotaques, religiões e gentes.

Calem a boca, porque a história desse país responderá por si mesma a importância e a contribuição que vocês nos legaram, seja na literatura, na música, nas artes cênicas ou em quaisquer situações em que a força do seu povo falou mais alto e fez valer a máxima do escritor: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte!”

Que o Deus de todos os povos, raças, tribos e nações, os abençoe, queridos irmãos nordestinos!

José Barbosa Junior, na madrugada de 03 de novembro de 2010.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Leonardo Boff para Dalai Lama: Qual é a melhor religião?

No intervalo de uma mesa-redonda sobre religião e paz entre os povos, na qual ambos participávamos, eu, maliciosamente, mas também com interesse teológico, lhe perguntei em meu inglês capenga:

— Santidade, qual é a melhor religião?

Esperava que ele dissesse: "É o budismo tibetano" ou "São as religiões orientais, muito mais antigas do que o cristianismo". O Dalai Lama fez uma pequena pausa, deu um sorriso, me olhou bem nos olhos — o que me desconcertou um pouco, por que eu sabia da malícia contida na pergunta — e afirmou:

— A melhor religião é aquela que te faz melhor.

Para sair da perplexidade diante de tão sábia resposta, voltei a perguntar:

— O que me faz melhor?

— Aquilo que te faz mais compassivo (e aí senti a ressonância tibetana, budista, taoísta de sua resposta), aquilo que te faz mais sensível, mais desapegado, mais amoroso, mais humanitário, mais responsável. A religião que conseguir fazer isso de ti é a melhor religião.

Calei, maravilhado, e até os dias de hoje estou ruminando sua resposta sábia e irrefutável.