segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Provincianos do tempo

Os provincianos do tempo estão convencidos de que o presente é a única coisa que importa, e que tudo que ocorreu antes pode ser ignorado com sem maiores problemas. Para eles o mundo contemporâneo é rico, novo e suficiente, e o passado não tem nenhum interesse. Estudar história é tão inútil quanto aprender o código Morse, ou aprender a dirigir um carro de boi.

A verdade é que o mundo moderno foi inventado no passado. Quem não sabe disso não sabe os fatos básicos a respeito de si mesmo. Por que motivo age como age. De onde veio.

Todos nós somos governados pelo passado, embora ninguém compreenda isso. Ninguém reconhece o poder do passado. Mas se você pensar no assunto, o passado sempre foi mais importante do que o presente. O presente é como uma ilha de coral que aponta acima da da água, mas que está construída sobre milhões de corais mortos sob a superfície. Do mesmo modo, o nosso mundo cotidiano está construído sobre milhões e milhões de eventos e decisões que ocorreram no passado.

Um adolescente toma café da manhã e vai até uma loja comprar um CD da sua banda favorita. O adolescente pensa que vive no momento moderno. Mas quem definiu o que é uma “banda?” Quem definiu “loja”? Quem definiu “adolescente?” “Café da manhã?” Isso pra não falar no resto, todo o seu ambiente social — família, escola, roupas, transporte e governo.

Nada disso foi decidido no presente. A maior parte dessas coisas foi definida há mais de cem anos. O adolescente está em pé na montanha que é o passado. E não percebe. Ele é governado pelo que não vê, por aquilo em que não pensa, por aquilo que não conhece. Esse mesmo adolescente é radicalmente contra qualquer espécie de controle — restrições dos pais, propaganda, leis do governo. Mas o governo invisível do passado, que decide praticamente tudo na sua vida, passa despercebido.

Fonte: Extraído de dois trechos de Timeline, de Michael Crichton. Roubado dA Bacia das Almas.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Paz sem perdão

Por Nilton Bonder

Encravado na liturgia do Dia do Perdão, o Iom Kipur dos judeus, está o Livro de Jonas. Um Livro pouco compreendido cuja notoriedade se dá mais pelo incidente de ser o herói engolido por um grande peixe, do que por seu conteúdo. O enredo do Livro nada mais é do que a banal convocação de um profeta para que sirva de mensageiro de uma advertência do Criador à cidade de Ninive exortando que esta se arrependesse. O profeta reluta em aceitar a intimação divina mas acaba por fim cumprindo-a. A cidade de Ninive se arrepende, o profeta fica deprimido e o Criador lhe dá uma lição de moral mostrando que toda a relação verdadeira implica em responsabilidade e esta, por sua vez, em flexibilidade.

Na realidade, o Livro esta mais preocupado em mostrar uma dimensão da persona de todos nós que é representada por Jonas. O profeta fica deprimido com a missão com a qual é incumbido porque sabe que este D'us de Israel é um D'us compassivo. Um D'us que é capaz de conceder perdão até mesmo a Ninive, cidade da Assíria, arquiinimiga de Israel, é insuportável para um nacionalista ardente como Jonas. Mais que isto, como é comum a textos bíblicos onde o personagem é uma representação de um traço humano, o nome do herói é revelador. Ele é Jonas filho de Amitai. A raiz da palavra "Amitai" é a palavra "verdade". Jonas-o-filho-da-Verdade não consegue suportar o D'us do arrependimento, o D'us de um olhar distinto para o que já foi rotulado de "o outro".

Perdoar é um comportamento que exige uma redefinição do outro. Passa pela flexibilização das verdades já assumidas. Jonas fica constrangido por um D'us que abre mão da verdade ou das verdades. Mas o mais doloroso do perdão é que este exige uma redefinição de nós mesmos. É mais fácil que o outro permaneça perverso do que ter que refazer toda a nossa compreensão do mundo e da realidade.

A paz é uma espiral do perdão. Quanto mais dizemos: "eu sinto muito", menos provavelmente teremos que dizer. Quanto mais precisarmos ouvir "eu sinto muito", menos provável que o aceitemos.

O problema israelense-palestino fica fora do enquadramento das fotos da mídia do soldado israelense perseguindo a criança palestina. Perseguindo este soldado estão por um lado as ditaduras e o fundamentalismo árabe com suas verdades e por outro o radicalismo religioso e o pânico histórico por segurança presentes em camadas da população israelense com suas verdades. O filósofo Martin Buber dizia que o drama israelense-palestino estava no fato de ambos se apoiarem sobre verdades. E a verdade de um, incontestavelmente, legitima a demonização do outro.

Talvez fosse necessária uma nova partilha da Palestina. Onde dois povos já existentes - israelense e palestino - convivessem em harmonia pela ordem do perdão; e onde outros dois povos - israelense e palestino - vivessem em conflito preservado pelo zelo de suas verdades. Poderíamos então entender que já há uma paz feita e uma paz ainda por fazer. Uma paz a se fazer, para constrangimento de todos, na qual o D'us da verdade de um venha a se revelar o mesmo D'us da verdade do outro.

Ou talvez outros tempos venham a chegar onde não se faça necessária qualquer partilha seja entre povos distintos ou dentro de um mesmo povo. Uma cena permanece viva na memória de minha última visita a Jerusalém. Era um dia de celebração para o Islã e a esplanada das mesquitas, onde a verdade do Islã construiu sobre a verdade de Israel, estava repleta por 1/4 de milhão de muçulmanos. Num dado momento, desde o bairro judeu da cidade velha, deparei-me com a seguinte vista: os judeus rezavam para o Muro das Lamentações, enquanto os muçulmanos eram visíveis no topo da colina em suas orações e, ao fundo, as igrejas se sobressaiam com suas torres e com os sons de seus sinos. Tive então um estranho insight. Do que é visto desde às alturas, desde a perspectiva deste D'us para quem oram, não há diferença nenhuma entre os tempos messiânicos de harmonia absoluta e estes tempos que vivemos de confronto e conflito. O sonho, a utopia, que perpassa estas três civilizações não se encontra meramente no futuro, mas aqui mesmo, neste lugar... em outro lugar. Aquilo de que os profetas falavam: aqui há outra forma de enxergar a realidade. Este enxergar é toda a distância que existe entre o possível e o impossível deste lugar.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Deus nos livre de um Brasil evangélico

Por Ricardo Gondim

Começo este texto com uns 15 anos de atraso. Eu explico. Nos tempos em que outdoors eram permitidos em São Paulo, alguém pagou uma fortuna para espalhar vários deles, em avenidas, com a mensagem: “São Paulo é do Senhor Jesus. Povo de Deus, declare isso”.

Rumino o recado desde então. Represei qualquer reação, mas hoje, por algum motivo, abriu-se uma fresta em uma comporta de minha alma. Preciso escrever sobre o meu pavor de ver o Brasil tornar-se evangélico. A mensagem subliminar da grande placa, para quem conhece a cultura do movimento, era de que os evangélicos sonham com o dia quando a cidade, o estado, o país se converterem em massa e a terra dos tupiniquins virar num país legitimamente evangélico.

Quando afirmo que o sonho é que impere o movimento evangélico, não me refiro ao cristianismo, mas a esse subgrupo do cristianismo e do protestantismo conhecido como Movimento Evangélico. E a esse movimento não interessa que haja um veloz crescimento entre católicos ou que ortodoxos se alastrem. Para “ser do Senhor Jesus”, o Brasil tem que virar "crente", com a cara dos evangélicos. (acabo de bater três vezes na madeira).

Avanços numéricos de evangélicos em algumas áreas já dão uma boa ideia de como seria desastroso se acontecesse essa tal levedação radical do Brasil.

Imagino uma Genebra brasileira e tremo. Sei de grupos que anseiam por um puritanismo moreno. Mas, como os novos puritanos tratariam Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Maria Gadu? Não gosto de pensar no destino de poesias sensuais como “Carinhoso” do Pixinguinha ou “Tatuagem” do Chico. Será que prevaleceriam as paupérrimas poesias do cancioneiro gospel? As rádios tocariam sem parar “Vou buscar o que é meu”, “Rompendo em Fé”?

Uma história minimamente parecida com a dos puritanos provocaria, estou certo, um cerco aos boêmios. Novos Torquemadas seriam implacáveis e perderíamos todo o acervo do Vinicius de Moraes. Quem, entre puritanos, carimbaria a poesia de um ateu como Carlos Drummond de Andrade?

Como ficaria a Universidade em um Brasil dominado por evangélicos? Os chanceleres denominacionais cresceriam, como verdadeiros fiscais, para que se desqualificasse o alucinado Charles Darwin. Facilmente se restabeleceria o criacionismo como disciplina obrigatória em faculdades de medicina, biologia, veterinária. Nietzsche jazeria na categoria dos hereges loucos e Derridá nunca teria uma tradução para o português.

Mozart, Gauguin, Michelangelo, Picasso? No máximo, pesquisados como desajustados para ganharem o rótulo de loucos, pederastas, hereges.

Um Brasil evangélico não teria folclore. Acabaria o Bumba-meu-boi, o Frevo, o Vatapá. As churrascarias não seriam barulhentas. O futebol morreria. Todos seriam proibidos de ir ao estádio ou de ligar a televisão no domingo. E o racha, a famosa pelada, de várzea aconteceria quando?

Um Brasil evangélico significaria que o fisiologismo político prevaleceu; basta uma espiada no histórico de Suas Excelências nas Câmaras, Assembleias e Gabinetes para saber que isso aconteceria.

Um Brasil evangélico significaria o triunfo do “american way of life”, já que muito do que se entende por espiritualidade e moralidade não passa de cópia malfeita da cultura do Norte. Um Brasil evangélico acirraria o preconceito contra a Igreja Católica e viria a criar uma elite religiosa, os ungidos, mais perversa que a dos aiatolás iranianos.

Cada vez que um evangélico critica a Rede Globo eu me flagro a perguntar: Como seria uma emissora liderada por eles? Adianto a resposta: insípida, brega, chata, horrorosa, irritante.

Prefiro, sem pestanejar, textos do Gabriel Garcia Márquez, do Mia Couto, do Victor Hugo, do Fernando Moraes, do João Ubaldo Ribeiro, do Jorge Amado a qualquer livro da série “Deixados para Trás” ou do Max Lucado.

Toda a teocracia se tornará totalitária, toda a tentativa de homogeneizar a cultura, obscurantista e todo o esforço de higienizar os costumes, moralista.

O projeto cristão visa preparar para a vida. Cristo não pretendeu anular os costumes dos povos não-judeus. Daí ele dizer que a fé de um centurião adorador de ídolos era singular; e entre seus criteriosos pares ninguém tinha uma espiritualidade digna de elogio como aquele soldado que cuidou do escravo.

Levar a boa notícia não significa exportar uma cultura, criar um dialeto, forçar uma ética. Evangelizar é anunciar que todos podem continuar a costurar, compor, escrever, brincar, encenar, praticar a justiça e criar meios de solidariedade; Deus não é rival da liberdade humana, mas seu maior incentivador.

Portanto, Deus nos livre de um Brasil evangélico.