segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Jesus sem culpa

Por Renato Nunes Bittencourt, filósofo e professor.

Crítico enfático da moralidade cristã, Nietzsche defende uma experiência religiosa que elimine a supressão da vontade de potência e leve o homem à felicidade. E, em alguma de suas obras, defende Jesus e seus ensinamentos, por considerá-los extramorais

As inúmeras transformações sociais e valorativas ocorridas na modernidade oitocentista a partir da queda do ideário aristocrático e sua substituição pela visão de mundo burguesa trouxeram consigo um projeto cultural de instauração da noção de "igualdade" na esfera política, econômica ou social. Todavia, o projeto moderno de estabelecimento da "igualdade" humana se revelou uma farsa, pois nenhum ser humano manifesta qualquer tipo de característica semelhante a outrem, e se falamos de "igualdade", estamos certamente estabelecendo uma redução simbólica da condição individual.

No decorrer de sua atividade filosófica, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) demonstra uma evidente incompatibilidade axiológica em relação aos parâmetros normativos da moralidade cristã, por considerá-la responsável pelo contínuo adoecimento existencial do ser humano, limitado em seus potenciais criativos pelo poder coercitivo imposto por tal instituição religiosa. Todavia, suas violentas críticas ao projeto moralista da Cristandade não significam necessariamente uma negação do valor da experiência religiosa, quando esta se pauta em valorações imanentes e extramorais, tampouco uma negação radical do sentido da experiência cristã em sua expressão originária, isto é, a partir da obra evangélica de Jesus de Nazaré.

Cumpre destacar que Nietzsche, em diversas passagens de suas obras, explicita colocações elogiosas acerca da pessoa de Jesus. Destacamos a encontrada em Humano, demasiado humano, § 475, quando Nietzsche denomina Jesus como "o mais nobre dos homens", assim como no Assim falou Zaratustra em que, apesar de depreciar a obra evangélica de Jesus, por considerá-la marcada pela tristeza judaica, considera o Nazareno dotado de caráter nobre: "Na verdade, morreu cedo demais aquele hebreu, que os pregadores da morte lenta reverenciam; e para muita gente, desde então, foi uma fatalidade que ele tenha morrido demasiado cedo. Ainda o hebreu Jesus só conhecia as lágrimas e a melancolia judaicas, juntamente com o ódio aos bons e justos, quando o acometeu a ânsia da morte.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Impulsividade

Por Antônio Carlos Alves de Araújo, psicólogo.

Este é sem sombra de dúvida um tema que atinge pelo menos metade da humanidade. Inicialmente defino impulsividade como a máxima expoente do complexo de inferioridade; o traçado de ambas é idêntico em quase todos os sentidos. Cada evento por mais diminuto que seja, adquire uma reação máxima do ponto de vista emocional. Não tratarei aqui das sociopatias, mas apenas dos casos psicológicos. Na impulsividade tudo é uma prova terrível, sendo que a única saída para a pessoa provar um pouco de sua autoestima é a total competição. Este processo é sentido como que interminável para o sujeito em questão. A impulsividade é uma defesa contra a assimilação parcimoniosa de uma crítica. Esta é sentida não apenas como um ataque frontal perante a auto imagem da pessoa, mas, como um dano irreparável, ou que se levantou um segredo que irá humilhar o indivíduo no mais alto grau imaginável. Os elementos intrínsecos que compõe a impulsividade são: ódio, medo e ansiedade respectivamente. Todos são incontroláveis e invadem por completo a mente da pessoa.

A consequência direta da impulsividade é a vivência constante da culpa. Advém então, tentativas de reparação quase que megalomaníacas, como sacrifícios exagerados, presentes exorbitantes e coisas do gênero. Se importar com mínimas coisas causa uma escravização quase que diária no sujeito, que toma empréstimos constantes da agressividade, formando um ciclo vicioso. Todos já perceberam que o impulsivo fala na maioria das vezes verdades sobre os outros, mas, o problema é que sempre centra apenas na negatividade, na tentativa de punir, humilhar e destruir seu oponente. Muitos poucos conseguem absorver este tipo de ataque quase que inesperado. A desgraça absoluta do impulsivo é a esfera negativa do poder. Será sempre lembrado pela dor e sofrimento que despertou no outro, sendo que não tardará para que o nefasto sentimento de vingança assole totalmente o núcleo das relações das partes envolvidas. O problema do impulsivo não passa apenas pelo exagero, mas a palavra correta seria o despropósito diante de determinado fato ou evento. Se fosse pensar em exemplos teríamos diversas situações cotidianas em nossa sociedade: àquela pessoa no ambiente de trabalho totalmente neurotizada, as infindáveis discussões no trânsito que além do stress produzem diariamente tragédias, conflitos entre casais pela simples disputa de poder que acirra ao máximo a impulsividade de um  ou ambos.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Enquanto resta alguma lei neste mundo

Por George Bernard Shaw, no prefácio de 'On the rocks' (1933).

PILATOS. Você está desrespeitando seu pai e sua mãe. Está desrespeitando a sua Igreja. Está violando os mandamentos do seu Deus, e alegando ter direito a agir assim. Está pleiteando em favor dos pobres, e declarando que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no paraíso de Deus; apesar disso você banqueteou-se na mesa dos ricos, e encorajou meretrizes a gastar em perfume para os seus pés o dinheiro que poderia ter sido dado aos pobres, deixando nisso o seu tesoureiro tão revoltado que ele o traiu ao Sumo Sacerdote por um punhado de prata. Ora, banqueteie-se o quanto quiser: não culpo você por recusar-se a fazer-se de faquir e a tornar-se exposição ambulante de austeridades tolas. Porém preciso impor um limite quando você promove tumulto no templo e arremessa o dinheiro dos cambistas para ser disperso entre os seus simpatizantes. Tenho uma lei para administrar. A lei proíbe obscenidade, sedição e blasfêmia, e você foi acusado de sedição e de blasfêmia. Você não as nega: você fala sem parar sobre a verdade, que acontece de ser apenas aquilo em que você gosta de acreditar. Sua blasfêmia não representa nada para mim: toda a religião judaica, do começo ao fim, é blasfêmia do meu ponto de vista romano; mas significa muito para o Sumo Sacerdote, e não posso manter a ordem em meio aos hebreus a não ser lidando com os tolos judeus de acordo com a tolice judaica. Já a sedição diz respeito a mim e ao meu cargo muito de perto. Quando você promete suplantar o Império Romano com um reino em que é você e não César a ocupar o trono, torna-se culpado da mais grave sedição. Sou avesso a mandar crucificá-lo; embora seja judeu, e como se não bastasse jovem e imaturo, percebo que você é à sua maneira judia um homem de qualidade. Não me sinto à vontade em atirar à multidão um homem de qualidade, mesmo que sua qualidade seja meramente judaica. Pois como aristocrata sou eu mesmo um homem de qualidade, e falcão não arranca olho de falcão. Na verdade, se condescendo em parlamentar com você tão extensamente é na misericordiosa esperança de encontrar uma desculpa para tolerar sua blasfêmia e sedição. Em sua defesa você oferece apenas uma frase vazia sobre a verdade. Sou sincero quando digo que desejo poupá-lo, porque se não libertá-lo terei de libertar aquele patife Barrabás, que foi mais longe do que você e cometeu assassinato, enquanto entendo que você só ressuscitou dos mortos um judeu. Então, pela última vez, faça seu juízo funcionar, e encontre-me uma razão sólida para deixar partir em liberdade um blasfemador sedicioso.

JESUS. Não peço que me liberte; também não aceitaria minha vida ao preço da morte de Barrabás, mesmo se acreditasse que você tem poder para revogar o suplício ao qual estou predestinado. Mas para satisfazer seu anseio pela verdade, direi que a resposta às suas questões está em seu próprio argumento de que nem você nem o prisioneiro que você está julgando são capazes de provar que têm razão; sendo assim você não deve me julgar, para não ser julgado. Sem sedição e blasfêmia o mundo permaneceria imóvel, e o reino de Deus nunca chegaria a estar um estágio mais próximo. O império romano começou com uma loba dando de mamar a duas crianças. Se essas crianças não tivessem sido mais sábias do que sua madrasta, seu império seria uma matilha de lobos. É por crianças que são mais sábias que os pais, por súditos que são mais sábios que seus imperadores e por mendigos e vagabundos que são mais sábios que seus sacerdotes que os homens alçam-se de serem animais predadores a crerem em mim e serem salvos.

PILATOS. O que você quer dizer com “crer em você”?

JESUS. Ver o mundo como eu vejo. O que mais poderia significar?

PILATOS. E você é Cristo, o Messias, certo?

JESUS. Se eu fosse Satanás meu argumento permaneceria válido.

PILATOS. Devo então poupar e encorajar todo herege, todo rebelde, todo transgressor e todo velhaco, porque ele pode acabar se mostrando mais sábio do que todas as gerações que fizeram o Direito Romano e construíram sobre ele o Império Romano?

JESUS. Pelos frutos você os reconhece. Cuidado quando você mata um pensamento que é novo pra você; esse pensamento pode ser o fundamento do reino de Deus na terra.

PILATOS. Pode ser também a ruína de todos os reinos, de toda lei, de toda sociedade humana. Pode ser o pensamento do animal predador lutando para voltar.

JESUS. Não é o animal predador que está lutando para voltar; é o reino de Deus que está lutando para vir. O império que olha para trás com terror dará lugar ao reino que olha para a frente com esperança. O terror enlouquece os homens; a esperança e a fé dão-lhes sabedoria divina. Os homens que você enche de temor não se intimidarão diante de nenhum mal e perecerão em seu pecado; os homens que encho de fé herdarão a terra. A você eu digo: expulse o medo. Pare de me dizer coisas vãs sobre a grandeza de Roma. Aquilo que você chama de grandeza de Roma não passa de medo: medo do passado e do futuro, medo dos pobres, medo dos ricos, medo dos sumos sacerdotes, medo dos judeus e gregos que são cultos, medo dos gauleses e dos godos e dos hunos que são bárbaros, medo da Cartago que vocês destruíram para salvá-los do medo que tinham dela e que agora temem mais do que nunca, medo do César imperial, o ídolo criado por vocês mesmos, e medo de mim, o vagabundo sem um tostão, espancado e ridicularizado, medo de tudo exceto o domínio de Deus: fé em coisa alguma que não seja sangue e ferro e ouro. Você, representando Roma, é o covarde universal; eu, representando o reino de Deus, enfrentei tudo, perdi tudo, e ganhei uma coroa eterna.

PILATOS. Você ganhou foi uma coroa de espinhos, e vai usá-la na cruz. Você é um sujeito mais perigoso do que eu imaginava. Com sua blasfêmia contra o deus dos sumos sacerdotes pouco me importo: no que me diz respeito você pode espezinhar a religião deles até o inferno. Mas você blasfemou contra César e contra o Império; e falou sério, e tem poder para dobrar o coração dos homens contra ele, como dobrou o meu. Devo portanto por um fim em você, enquanto resta alguma lei neste mundo.

JESUS. A lei é cega sem conselho. O conselho com que concordam os homens é vão: não passa do eco de suas próprias vozes. Um milhão de ecos não irão ajudá-lo a governar com justiça, mas quem não tem medo de você e mostra o outro lado é uma pérola do maior valor. Mate-me e você ficará cego, para sua própria condenação. O maior dos nomes de Deus é Conselheiro; quando o seu império for pó e o seu nome uma lembrança, entre as nações os templos do Deus vivo ecoarão ainda o louvor a ele como Maravilhoso! Conselheiro! O Pai da Eternidade, o Príncipe da Paz.


segunda-feira, 14 de maio de 2012

De Mao a melhor

Por Pedro Cezar Dutra Fonseca, professor titular do Departamento de Ciências Econômicas da UFRGS.

Ao estudar camelôs de Porto Alegre, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado puxou um fio que a levou ao Paraguai e à China e virou tese premiada e livro

Quando o professor Ruben Oliven, do Departamento de Antropologia da UFRGS, convidou-me para participar de uma banca de qualificação de doutoramento, minha primeira reação foi de tratar-se de um engano. Já havia antes participado de outras bancas, e até orientado trabalhos em áreas próximas da economia, como ciência política, administração, história e sociologia, mas na antropologia era a primeira vez. Ele esclareceu que a tese possuía forte interação com minha área de trabalho e, como orientador, julgava indispensável alguém com essa formação compor a banca. Houve época, como em meados do século XX, que Antropologia Econômica era disciplina valorizada e integrava o currículo das mais importantes universidades do mundo. Com a pós-modernidade, entraram em refluxo na academia os “paradigmas totalizantes”, como o marxismo e o estruturalismo, e o recurso às variáveis econômicas para explicar as formações sociais e suas possibilidades de transformação perdeu o charme. Ademais, interdisciplinaridade é como o “politicamente correto” – difícil quem se declare contra, mas na prática são outros quinhentos.

Justamente esse caráter de transitar entre várias áreas das ciências sociais – sem, contudo, perder sua sólida visão de antropóloga, posto que a transdisciplinaridade supõe o conhecimento especializado – é um dos pontos fortes da tese, ora publicada em livro, de Rosana Pinheiro-Machado. Made in China obteve a primeira colocação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) entre as teses de doutoramento do país. E o referido caráter, além da notória atualidade do tema e da qualidade da pesquisa, certamente pesou, mais recentemente, para que a Capes lhe conferisse o prêmio de Melhor Tese de 2011, concorrendo com todas as outras áreas do conhecimento.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O Cristianismo nosso de cada dia

Por Maria Carolina Maia, Revista VEJA.

O historiador best-seller Geoffrey Blainey reconstrói a longa trajetória da maior religião do ocidente em mais um título da série ‘Uma Breve História de...’ e conta como a doutrina cristã influenciou a cultura ocidental

“Se os oito cristãos citados a seguir, todos influentes em seu tempo, se reunissem em torno da mesa de jantar, que conversas surgiriam”, pergunta o historiador australiano Geoffrey Blainey antes de citar nomes como São Paulo, Francisco de Assis e Martinho Lutero. São fórmulas como essas que atraem os leitores – e não são poucos – a livros como Uma Breve História do Cristianismo (Fundamento, 328 páginas, 29,50 reais) que mal chegou ao Brasil e já encontrou seu espaço na lista dos mais vendidos do país.

O livro, em si, não é espetacular. É uma espécie de história for dummies, tomando de empréstimo a expressão usada pelos americanos para designar a informação mastigada e servida na colher, feita a partir de uma gama não necessariamente extensa de fontes de pesquisa. Aquele que talvez seja o seu conteúdo mais interessante – o legado do Cristianismo para a civilização ocidental – está esparso ao longo do livro e consolidado de maneira concentrada em suas últimas três páginas. Mas é exatamente esse formato simples, com apelo a imagens, que torna os livros de Blainey tão acessíveis e populares. E desperta olhares desconfiados em colegas acadêmicos.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Sabedoria e mortalidade

Por Paulo Brabo, escritor.

Tal como a nuvem se desfaz e some,
aquele que desce à sepultura nunca tornará a subir. [Jó 7:9]

Talvez aproximar-se da Bíblia sem grandes prejulgamentos baste para se entender que é com muita hesitação que o próprio texto bíblico se aproxima da ideia de imortalidade. Em termos narrativos, históricos e literários, é só a terceira terça parte da Bíblia que tem algo a dizer sobre vida eterna – e mesmo assim não fala, muito provavelmente, da vida eterna como a estamos acostumados a imaginar.

Porém, o que quer que se conclua sobre a vida eterna em Daniel e no Novo Testamento, permanece o fato de que os dois primeiros terços da Bíblia tendem a sugerir, com impressionante consistência, que o que existe é esta vida – que deve ser bem vivida, com gratidão, com integridade e com gosto, porque é somente esta.