segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Inteligência entomológica

Por Rogério Tuma, da Carta Capital.

Um estudo publicado na revista PLoS ONE em setembro mostra como a punição severa aos corruptos e a proteção e benefícios aos punidores promovem uma sociedade cooperante e sadia, sem corrupção. Quando olhamos um formigueiro em funcionamento, a primeira coisa que vem à cabeça é como uma sociedade de insetos pode ser mais produtiva e eficiente que a nossa. A resposta é simples: não existem corruptos, existem regras e elas são obedecidas.

A falha na sociedade humana é que quem pune quem não coopera pode ser punido por retaliação ou sofrer ameaças e acaba até correndo risco de extinção, e esse custo para o punidor acaba provocando uma tolerância maior à não colaboração dos outros e consequente deterioração da sociedade. Na grande maioria das sociedades de insetos não há perdão. Não colaborou, vira inimigo, o que é considerado cientificamente um sistema de retidão. Porém, algumas raras sociedades de insetos permitem que os punidores desertem, como ocorre em uma espécie de vespa e uma de formiga. Esse modelo é interpretado como corrupto: nesses dois casos a sociedade se beneficia dos desertores, pois, apesar de tolerantes, continuam contribuindo, mesmo que pouco, para o grupo.

Estudos mostram que entre humanos a corrupção deteriora os laços sociais, estimula a criminalidade e gera desconfiança na hierarquia, reduzindo investimentos e o desenvolvimento sustentável. A corrupção piora a saúde psíquica e física.

Os pesquisadores Duenez-Guzman e Sadedin entendem que na sociedade humana o interesse econômico promove a não punição para os não colaboradores, isto é, fomenta a corrupção, e a única maneira de evitá-la é promover benefícios financeiros para o agente punidor e infligir alto custo para o infrator. Baseados na teo­ria de que a punição a quem não coopera pode melhorar substancialmente a performance de uma sociedade, e que é fundamental que os punidores sejam poupados de retaliação e tenham um poder hierárquico maior, como na sociedade dos insetos, os pesquisadores criaram jogos teó­ricos com tipos de sociedades com interações diferentes entre seus personagens: punidores desertores, punidores não corruptos, corruptos e os colaboradores.

Os autores concluem que a sociedade humana existe com a interação de todos esses tipos, mas em um equilíbrio bastante instável onde a diferença entre o poder dos punidores corretos contra a soma de seus desertores com o número de corruptos é que define o sucesso. Mesmo uma discreta diferença a favor da honestidade, como um posto mais alto na sociedade para os corretos, pode fazer a diferença, pois a busca dessa posição social melhora a colaboração de todos contra os corruptos e reduz o número de deserções entre os punidores. 

Segundo o estudo, o caminho para a retidão social é um só: todos da sociedade precisam contribuir remunerando os punidores e precisam aumentar drasticamente os custos para corruptos e desertores. Os autores acreditam que, se a colaboração entre humanos fosse baseada apenas na punição, a corrupção seria universal, inversamente proporcional à deserção e diretamente relacionada ao bem-estar da sociedade. Mas ela cresce junto, alimenta o crime, e piora o desenvolvimento. Portanto, a sociedade ideal é aquela onde todos podem punir os corruptos e devem colaborar, e a pior sociedade é aquela onde existe um enorme número de colaboradores e o poder está na mão dos corruptos.

A democratização e o surgimento do aparato policial facilitou o aparecimento da corrupção na sociedade moderna. Mas as sociedades que mudaram o equilíbrio tendendo à correção obtiveram ganhos bem maiores que as que permaneceram corruptas. A chave para a mudança é uma punição equalitária, uma justiça sem distinção. Poupar alguns criminosos e condenar outros provoca desequilíbrio social e revolta entre os colaboradores. A melhor saída é a justiça e não a vingança.


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O ateísmo é a verdadeira aceitação da realidade

Por Paula Kirby, ateísta.
Tradução: Marcelo Carahyba

Até 2003, eu era uma uma cristã devota. E quero dizer devota mesmo. Eu acreditava piamente, e a fé era central em minha vida naquele tempo. Vários presbíteros pensavam que eu tinha um chamado ao "ministério"; um deles chegou a sugerir que eu tinha vocação para ser freira. Agora, sou ateísta. Daquele tipo de ateísta que é chamado pelos religiosos apologetas de "impertinente" ou "militante", como era de se esperar. Então, o que aconteceu?

O que aconteceu foram quatro pequenas palavras: "Como eu posso saber?"

Uma das coisas que me assolava durante meus anos cristãos era simplesmente quão tão diferentes as cristandades são. Não apenas o vasto número de diferentes seitas e denominações (mais de 38.000 chutando por baixo), mas também a enorme diferença entre indivíduos cristãos pertencentes à mesma seita ou denominação. As crenças e atitudes de um cristão evangélico, bíblico, literalista comparadas com a de um cristão liberal são tão absurdamente distintas que quase podemos afirmar que estamos lidando com duas religiões completamente diferentes - como descobri por experiência própria quando me transferi de uma igreja liberal no sul da Inglaterra para o antro presbiteriano das Terras Altas (Escócia) lá para o ano 2000.

Como qualquer outro cristão que conheci, eu tinha ideias claras a respeito do tipo de Deus que eu acreditava e, com base nessas ideias, eu aceitava uma pequena parte dos dogmas cristãos enquanto rejeitava totalmente outros. De novo, deixe-me enfatizar: isto é padrão no contexto. Na prática, a fé é sempre um self-service: crentes dão valor àquelas partes que se ajustam confortavelmente a eles, enquanto ignoram solenemente aqueles que não se ajustam, ou elaboram interpretações mirabolantes que permitem a eles dissimular que algumas partes não significam o que de fato significam. Logo, essa foi a questão que enfrentei em 2003: Que garantias eu teria de que a versão do Cristianismo creditada por mim era a verdadeira? Existiria qualquer evidência melhor para a versão que aceitei que para aquelas que neguei?

A Bíblia não podia me ajudar. Ambos tipos de cristãos - o ultraconservador e o ultraliberal - encontram abundante base para suas perspectivas na Bíblia através da leitura seletiva (e, claro, preenchem as lacunas que não se ajustam ao seu caso com convenientes "metáforas" ou "mistérios"). A tradição também não é confiável; uma falsa crença não se torna correta simplesmente por ter sido crida e sustentada por várias gerações.

Então, o que mais temos? Certa vez debati com um católico romano que argumentou: "Para aqueles que dizem não haver provas, há a questão do numinoso[1]. Eu sei que há um Deus, eu tenho um relacionamento com ele e diariamente me dedico à oração meditativa". Será que a resposta é por esse caminho?

Ora, evidentemente, eu também pensei que tivesse um relacionamento pessoal com Deus. Eu, também, me dediquei a ele em oração meditativa diariamente. E, como resultado, eu não apenas "sabia" que havia um deus; eu "sabia" como esse deus era. Eu não cria - eu realmente pensava que sabia.

Simplesmente todos os cristãos que tive contato "sabiam" que havia um deus também. Eles, também, se dedicavam em meditar e orar a ele diariamente. E, como resultado, eles, também, "sabiam" como Deus era. Logo, o que esse conhecimento nos diz sobre ele? Quão confiável são esses relacionamentos pessoais quando viemos a estabelecer a verdade sobre Deus?

Alguns de nós, com base no nosso relacionamento com Deus, sabem que ele é amoroso, compassivo, generoso, sempre estendendo a mão a nós, tendo piedade de nossos erros ao invés de condená-los. Outros, com base no seu relacionamento com Deus, sabem que ele é irado, ciumento e algoz.

Alguns de nós sabem que Deus tem coisas mais importantes para se preocupar que com nossas vidas sexuais; outros sabem que a impureza sexual humana é profundamente ofensiva a ele.

Alguns de nós sabem que Deus quer que nós ajamos para com os defeitos dos outros com tolerância e humildade; outros sabem que ele quer que o pecado seja feito de exemplo, deve ser reprimido e publicamente censurado.

Alguns de nós sabem que Deus se ofende com o consumismo quando tantos não possuem nada; outros sabem que Deus fez derramar riqueza e outras coisas boas sobre pessoas por ele escolhidas.

Alguns de nós sabem que Deus vê todas as religiões como diferentes formas de expressão da busca humana por ele; outros sabem que o Cristianismo ortodoxo, tradicional, é o único caminho até ele.

Alguns de nós sabem que o Diabo é somente um mito para explicar a existência do mal; outros sabem que o Diabo é absolutamente real e uma ameaça genuína às nossas almas.

Alguns de nós sabem que de maneira nenhuma Deus poderia ter criado algo como o Inferno; outros sabem que o Inferno é certamente parte dos planos de Deus.

Todos nós sabemos que estamos certos, e cada um de nós baseamos todo o nosso conhecimento no relacionamento pessoal que temos com Deus. Como poderia qualquer um de nós estar errado?

O que é impressionante sobre essas observações é que aqueles de nós cujas personalidades nos levam a abraçar o mundo e as pessoas num espírito de sinceridade, generosidade, cordialidade e tolerância, "sabem" que Deus fez o mesmo. E aqueles que carecem dessa confiança e consequentemente veem o mundo como ameaçador, mal e ruim, "sabem" que Deus o vê dessa forma também.

Este é o motivo pelo qual a experiência subjetiva não nos pode dizer absolutamente nada sobre Deus. Saber que tipo de deus alguém acredita nos diz muitíssimo a respeito dessa pessoa - mas de forma alguma nos diz sobre a verdade ou sobre a existência de qualquer deus.

E isto traz a nós algo muito importante sobre o ateísmo. O ateísmo não é em si uma crença[2]. Poucos ateístas seriam tão audaciosos em declarar que a existência de qualquer deus é absolutamente impossível. Ateísmo é, basicamente, a posição que é absurdo acreditar, quanto mais adorar, uma divindade para a qual nenhuma evidência válida foi demonstrada. Ateísmo não é uma fé: do contrário, é a recusa em aceitar reivindicações de fé[3].

Ateístas reconhecem que necessitamos de evidências para chegar a conclusões confiáveis sobre a realidade e que, até agora, aqueles que reivindicam que há um deus falham em provê-las. E ateístas se importam com a realidade: não com o que é confortável crer, ou com o que tradicionalmente tem sido crido, ou com o que fomos instruídos a crer. E este foco na realidade, longe de diminuir nossa experiência de vida, como tantos religiosos imaginam, na verdade torna nossas vidas deliciosas: uma vez que você encarou a realidade de que inexiste evidência que sugira que há outra vida além dessa, se torna ainda mais importante viver essa vida finita em toda sua plenitude, aprendendo e amadurecendo, e se importando com os outros, porque esta é a única vida deles também, e não há razão alguma para acreditar que haverá recompensas celestes para o sofrimento terrestre dessas pessoas.

Uma vida ateísta, bem vivida, leva ao único tipo de pós-vida de que há alguma evidência: a imortalidade de viver na memória afetiva daqueles que nos amaram.

Notas
[1] Dicionário Aurélio: Segundo Rudolf Otto (1869-1927), teólogo e filósofo alemão, numinoso é o sentimento único vivido na experiência religiosa, a experiência do sagrado, em que se confundem a fascinação, o terror e o aniquilamento.
[2] N.T.: Discordo da autora. O ateísmo é uma crença tanto quanto o teísmo. Ambos fazem afirmações sobre o que é inacessível para ambos. Um, voluntariamente, diz sim, o outro, voluntariamente, diz não, e ambos não podem fazer nada além disso. Mas concordo com a postura cética da autora, que, ao meu ver, seria traduzida melhor em agnosticismo ateísta (não sabe, tem consciência de que não sabe e nem é possível saber, e prefere não crer).
[3] N.T.: Fé, segundo o contexto da autora, está para afirmações dogmáticas, inquestionáveis, próprias das religiões sistematizadas e do pensamento medieval. Fé pode significar muitas outras coisas. Pode, inclusive, estar despojada de conteúdo objetivo ou normativo, estando relacionada à esperança e à aposta, por exemplo.

* O jornal online The Hibernia Times foi natimorto. Surgiu e logo saiu do ar. Nisso, eu só encontrava fragmentos desse texto. Então, trocando uma ideia com minha amiga Iara Vidal, bibliotecária, ela encontrou uma cópia dessa pérola nos porões da internet. Ela também achou a sequência deste texto, que em breve publicarei a tradução. Valeu, Iarinha! =)

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O equívoco da maldade

Por Paulo Brabo, pensador e escritor.

Tudo é puro para os que são puros.
Tito 1:15

Com base numa frase que me disse certa vez o Hernan Pimenta, brinco há mais de um ano com a ideia de um conto de horror que não chegarei a colocar por escrito. Nessa história um homem se ocupa a vida inteira, como todos, com os variegados aborrecimentos, rancores e neuroses da condição humana; depois de morto, como a todos, lhe é concedido saber que a revelação que lhe escapou a vida inteira é que na realidade o ser humano é bom.

O horror da história está em que é só depois de morto, quando é tarde demais, que o protagonista descobre que os horrores, os temores e as culpas com os quais havia ocupado o espaço inteiro da vida eram imaginários. Nesse mundo do qual estou falando, como me disse recentemente meu amigo Danilo, é impossível que do coração do homem saia outra coisa que não o bem. Nesse mundo as pessoas ensinam umas as outras, sem trégua e de todos os modos, as disciplinas da desconfiança, da culpa, do rancor e do medo, e são essas as distrações que acabam gerando em todos os casos os erros de julgamento que passam para a história como maldade. Entrincheiramo-nos sem motivo, e as trincheiras desnecessárias que construímos tornam a guerra inevitável.

Nesse mundo todas as histórias são tragédias como o Otelo, de Shakespeare, em que um protagonista honrado mata uma pessoa honrada – a pessoa que ama – por acreditar (sem fundamento, como se descobre no final) que ela havia sido contaminada pela maldade. É a maldade imaginária ou projetada, a falsa maldade, que desencadeia a verdadeira – a qual, como se fundamenta num equívoco, não passa ela mesma de um erro de julgamento.

Nessa história de horror Deus não criou o mal e nem teria como fazê-lo, porque o seu universo é genuinamente impermeável à maldade. Somos todos bons, e o diabo é Iago, o diabo é simplesmente a ideia universalmente eficaz de que devemos desconfiar uns dos outros. O único horror verdadeiro é que vivemos cegos para o fato de que não existe horror algum[1].

Notas
[1] "Sabe qual é meu medo?" – escreveu-me o Hernan naquela ocasião (depois de ler este texto de Leonardo de Souza): – "descobrir, no final das contas, no fundo, que o ser humano é bom".


terça-feira, 31 de julho de 2012

No princípio era a Bíblia

Por Jean Lauand, titular sênior da FEUSP e professor titular do Programa de Pós-graduação em Educação da UMESP.

As expressões cotidianas que tiveram origem na Bíblia, mas nem sempre nos damos conta

Quais são os grandes referenciais de comunicação comuns a todos os brasileiros? Ao contrário de outros países e épocas, não temos clássicos que todos tenham lido; nem riquíssimos repertórios de provérbios, que, no Oriente, são conhecidos por qualquer criança. Não são patrimônio de todos episódios da história pátria, que possam ser trazidos para aplicação a outros casos. Nem um Alcorão, que nos países árabes abastece de metáforas e frases feitas os diversos setores da vida secular.

Para nós, o futebol é de longe o principal fornecedor de metáforas e expressões para a vida cotidiana: situações políticas, econômicas, afetivas, profissionais etc. são rapidamente compreendidas por meio do recurso a seu amplíssimo repertório. Um par de exemplos, de comunicação aparentemente difícil, mas que se tira de letra, bem e rapidamente, evocando o futebol.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Sonhar, realizar o sonho, sonhar mais alto: cultura e revolução em Slavoj Zizek

Por Demétrio Cherobini, cientista social e educador.

Uma transformação social de grande envergadura pode ser considerada pejorativamente, por muitos, um sonho. Pode ser sonho ingênuo, do ponto de vista dos senhores da ordem, uma condição em que superamos um modo de vida no qual existimos como meros meios para fins que nos são alheios. No entanto, há que se levar em conta, são sonhos que não emergem isoladamente nem são eventos acidentais no fluxo constante que é a história.

O que é, pois, sonhar? O que é que são os sonhos (diurnos ou noturnos)? Por que, afinal, sonhamos e desejamos tão ansiosamente, tão entranhadamente a emancipação que nos escapa? O que sabemos, de fato, pela simples constatação empírica diária, é que esse fenômeno existe, é que sonhamos e frequentemente sonhamos acordados (devaneamos). Em algumas situações, na realidade, chegamos a estar face-a-face com o objeto dos nossos sonhos. No entanto, raras são as vezes em que os tocamos. E mais raras ainda são as vezes em que com eles conseguimos permanecer. Por que isso acontece?

quarta-feira, 4 de julho de 2012

No Brasil, Alain de Botton critica elite, caos de SP e desigualdade

Por Marco Aurélio Canônico.

O Brasil passou uma semana de Geni na mão de celebridades estrangeiras por aqui.

Depois de o músico e empresário Perry Farrell acusar o país de não ter educação musical --que ele estaria trazendo com seu festival Lollapalooza--, o filósofo Alain de Botton desandou a tuitar comentários pouco lisonjeiros que deram o que falar.

Reclamou da chuva, da feiura das cidades, dos atrasos no aeroporto; chocou-se com a elite paulistana, com a "profunda desigualdade" do país e reproduziu comentários pouco elegantes sobre alguns de seus anfitriões.

Quando conversou com a Folha, na manhã de ontem [25/11/2011], Botton já estava mais bem impressionado --gostara muito do Rio, onde foi da mansão Moreira Salles ao Complexo do Alemão.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

A aflição de uma vida líquida

Por Renato Nunes Bittencourt, filósofo e professor.

Zygmunt Bauman fala sobre a ansiedade e a angústia que é viver em nossa atual condição sociocultural, marcada por infinitas possibilidades de escolhas e pela falta de solidez e durabilidade

O mundo pós-moderno é marcado pela angústia das possibilidades, das escolhas e da falta de modelos. E ninguém melhor pensa o tema hoje que o polonês Zygmunt Bauman. Sua obra se caracteriza pela extrema perspicácia na análise dos problemas sociais que perpassam a experiência cotidiana do homem contemporâneo na conjuntura valorativa que é denominada pelo autor como “Modernidade Líquida”. A questão da especulação sobre o medo público, o uso das disposições consumistas dos indivíduos como suporte para a manutenção da economia e a fragmentação da experiência ética da alteridade são temas recorrentes na trajetória intelectual deste prolífico sociólogo de formação que, todavia, por sua riqueza de interpretação, muito contribui para o desenvolvimento de um estudo filosófico enraizado na crítica da ideologia da sociedade de consumo e na despersonalização de um mundo desprovido de ampla cooperação interpessoal. Bauman é professor emérito de Sociologia da Universidade de Leeds, no Reino Unido. Grande parte de sua obra está publicada no Brasil pela Jorge Zahar, que tornou acessível a obra do pensador, que é um exemplo de dedicação intelectual. Os problemas sociais destacados por Bauman em suas obras são apresentados de maneira clara e solidamente argumentada. Nesta entrevista, pontos cruciais de suas ideias são revisitados.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Sobre o Ver

Por Bianca Assis, educadora.

Sou defensora da autonomia e do desenvolvimento da capacidade de expressão própria. Como professora de Artes Visuais, meu objetivo não é somente possibilitar o reconhecimento de códigos gráficos e obras importantes, mais que isso, por militância, é a busca de uma identidade, e o empoderamento de instrumentos para a expressão do que se é genuíno a indivíduos, coletivos, povos.

 Acredito que a voz ativa seja um direito, e um símbolo da dignidade. [Como expressei no texto “sobre o ouvir”] Mas o texto que elogia a voz trata da importância da audição. Neste texto, sobre expressão visual, quero tratar da importância do saber ver.

É comum ouvir que o individualismo pós-moderno nos torna cada vez mais sozinhos em nossa caminhada. Eu discordo. É enorme a necessidade de adaptação e de culto ao “parecer”, se não fosse assim, não existiria o status quo, a vontade incontrolável de se trocar de carro ou de aparelho celular, a fórmula social de sucesso, a moda, os cabelos alisados, as fôrmas...

A individualidade neste sentido, nada mais é do que a forma de se obter recursos, ganhar vantagem, e passar por cima de interesses coletivos, para se mostrar aos outros o quão poderosos se é. Status. As mídias ditam o padrão estético nortista, europeu, dos grupos economicamente dominantes.

Neste ponto sou testemunha do poder que possuem, pois, muitas vezes vi meus alunos negros fazendo auto-retratos com a pele branca e os cabelos amarelos, mesmo segurando o espelho em suas mãos!

Já vi também, nos primeiros meses na Escola de Belas Artes, os olhos dos exímios desenhistas treinados pelas revistas de super-heróis norte-americanos, no primeiro dia de aula com um modelo vivo negro, pequeno, fora dos padrões com os quais estamos acostumados a ver representados, daqueles que exigiriam mais dos nossos olhos na produção do seu desenho, e os produtos finais depois de 30 minutos de observação e riscos no papel, serem bizarros super-heróis na posição que o modelo havia feito. Será possível que ninguém o enxergou? Ou os olhos não são suficientes para VER as coisas?

Eu sou muito distraída quando se tratam de lugares e referências geográficas. Meu mapa seria em branco, e os prédios surgiriam de um dia para o outro, depois que sou obrigada a repará-los. Faço o mesmo caminho em Macaé há 3 meses para chegar em certo ponto, e o prédio da UFRJ só surgiu depois que precisei dobrar a sua exata esquina.

Neste ponto preciso transcrever o que o Augusto Boal diz em seu último livro “A Estética do Oprimido” porque ele diz muito do que me move, enquanto profissional, e ser político:

“... O analfabetismo é usado pelas classes, clãs e castas dominantes como severa arma de isolamento, repressão, opressão e exploração. Mais lamentável é o fato de que também não saibam falar, ver, nem ouvir. Esta é igual, ou pior, forma de analfabetismo: a cega e muda surdez estética. Se aquela proíbe a leitura e a escritura, esta aliena o indivíduo da produção da sua arte e da sua cultura, e do exercício criativo de todas as formas de Pensamento Sensível. Reduz indivíduos, potencialmente criadores, à condição de espectadores...

...Temos que repudiar a ideia de que só com palavras se pensa, pois se pensamos também com sons e imagens, ainda que de forma subliminal, inconsciente, profunda! O pensamento sensível, que produz arte e cultura, é essencial para a libertação dos oprimidos, amplia e aprofunda sua capacidade de conhecer. Só com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis (som e imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia.

* Para que se compreenda com clareza que existem tantas estéticas quantos grupos sociais organizados, comparem estas duas imagens: Jesus com seus apóstolos vestidos com andrajos e com a alegria passional daqueles que sentem que dizem verdades; do outro lado, o Papa, envolto em ouro e ouropéis, no seu papamóvel blindado, cercado de guardas suíços, vestidos pela griffe Michelangelo, cercado pelos seus príncipes, ornados como ele. Jesus e o atual cristianismo têm pouca coisa em comum... Ou vocês acham que esses dois grupos estariam usando a mesma e única estética universal? Ou seriam seus caminhos tão exclusivos dos interesses e propósitos de cada grupo? Para que eu possa começar a acreditar em alguma coisa que ele diga, quero ver o papa quase nu, despojado de artifícios, pregando nas ruas e nos campos. Isso, sua estética não permite; a minha, exige!” [BOAL]

E como fechar um texto sobre a visão sem citar o Saramago em seu livro “Ensaio sobre a Cegueira”? Em algum sentido a visão norteia o coletivo e ajusta os interesses. A ausência dela no livro, revela a realidade. E a intrigante mulher do médico, única personagem na cidade que não perde a visão, do que se trata? Em certo ponto ela é advertida de que se revelar que consegue enxergar, poderia ser morta.

É o que a humanidade reserva aos que vêem. Os que entendem os mecanismos são perigosos. Vide a história de cada mártir. Seu maior instrumento não foram armas ou exércitos, foi a visão.

O perigo para as estruturas opressoras, dominantes, pecaminosas não é o fato dos cidadãos terem olhos. O perigo real é usá-los!


PS. Quero lembrar com doçura algo que ouvi da minha amiga cega, Camila: Enquanto trabalhávamos na exposição sobre o Miles Davis no CCBB em 2011, em uma das baias, separadas por cores, tocava o disco do Miles com mais influência do Blues. A sala era toda azul. Entramos, ouvimos por um tempo, sem que ela soubesse, a pergunta que fiz à Camila foi
-“Pra você, que cor teria esta sala?” no que ela respondeu
“Esta sala tem cor de chuva; de avião quando está no alto do céu”.

Ela leu a cor do som, e tudo ali era mesmo azul.
Os olhos precisam de todo o corpo para enxergar com ele.
Mais azul ainda foi o mar que me veio aos olhos!


sábado, 2 de junho de 2012

Do que roubamos de Deus e dos anjos

Por Osvaldo Luiz Ribeiro, biblista e exegeta.


1. Dos anjos, roubamos os sexos. A coisa é grave. Quando falamos "anjo", duvido que não nos venha à mente aquela coisa medieval, loira, de asas de ganso ou cisne, olhos de cor européia, forma grega... Anjos. Vestem túnicas, nessas representações, mas são... eunucos.

2. Mas não eram assim, antigamente. Gn 6,1-4 - a despeito das "exegeses acomodadoras da tradição" -, conhece uma antiga mitologia de sexo entre "anjos" e mulheres. É uma antiga tradição, que está por trás (sem trocadilhos!) do nascimento de Hércules e, até, de Jesus: os seres divinos - deuses, anjos - podem "conhecer" (em sentido bíblico), as mulheres.

3. Um - agora - apócrifo, Enoque, tomou essa passagem e fez, com ela, um famoso midraxe judaico, explicando, por inflação, criatividade e necessidade que foi aí e então, quando os "anjos" desceram dos céus a deitarem-se com as filhas de Eva, que aproveitaram e lhes ensinaram as "macumbarias".

4. Judas conhece Enoque e o cita com autoridade. Naqueles tempos, os anjos tinham, então, com o que se deitar com mulheres.

5. Pois bem, grande parte da tradição da Igreja castrou esses anjos, talvez para evitar cultos orgiásticos, cuja liturgia era encenada, certamente, pelos "anjos" das igrejas, conhecidos das Cartas de Apocalipse... Ali se emascularam anjos, expulsaram pessoas (gnósticas) e se excluíram livros sagrados ("apócrifos") - refiro-me à parte da crise gnóstica, essa, por trás de Judas.

6. Mas, na Idade Média, o imaginário cristão devolveu genitais aos anjos - e, agora, também às anjas. Íncubos e Súbucos visitavam muitas camas noturnas, provocando suores e gozos nas madrugadas européias, iluminadadas pelas fogueiras, que não eram de São João...

7. Mas, passou. Os anjos de hoje são andróginos, de novo, como o quis a boa prática cristã contra-gnóstica. Exceto aquelas anjinhas de vagina e barriga prenha da Igreja Matriz de Santo Antonio, em Tiradentes, Minas Gerais, impudicas, com as vergonhazinhas, pequenas, também elas, as anjinhas, esculpidas pelos cantos superiores das paredes da nave...

8. E de Deus, o que roubamos? Curiosamente, as duas histórias estão unidas. Antes de os judeus inventarem os demônios, a partir de Gn 6,1-4, seu Deus, Yahweh, podia fazer tanto o bem quanto o mau. Quem tem um Deus assim, que faz o bem e o mau, não precisa de crer em diabos, porque os diabos são explicações para uma fé que pensa que Deus faz apenas o bem, mas não o mau, mas como o mau acontece mais vezes do que o bem, então se precisa de uma explicação - os diabos! - para o mau, já que não pode ser um Deus que só faz o bem...

9. Não se castrou, literalmente, Deus. Alegoricamente, sim: era o Leão de Judá. Agora, o Gatinho de Roma/Wittenberg... Rugia, agora, mia. Isso foi há 2,5 mil anos, em Jerusalém. Corte profundo na alma daquele Deus de abrir barriga de grávidas, e tanto, que Marcião, comparando-o com o Deus de Jesus, negou que fossem o mesmo. Em certo sentido, era. Em certo sentido, não era.

10. E lá se vão, Deus e seus anjos, cada um roubado de uma parte preciosa de sua constituição - um, a capacidade de fazer desgraças e ser, por isso, Todo-Poderoso; os outros, bem, devem estar a chorar até hoje, coitados, eunucos, sendo as mulheres, admitamos, tão interessantes... Quem terá perdido mais? Deus, os anjos... ou as mulheres?

Fonte: Peroratio

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Jesus sem culpa

Por Renato Nunes Bittencourt, filósofo e professor.

Crítico enfático da moralidade cristã, Nietzsche defende uma experiência religiosa que elimine a supressão da vontade de potência e leve o homem à felicidade. E, em alguma de suas obras, defende Jesus e seus ensinamentos, por considerá-los extramorais

As inúmeras transformações sociais e valorativas ocorridas na modernidade oitocentista a partir da queda do ideário aristocrático e sua substituição pela visão de mundo burguesa trouxeram consigo um projeto cultural de instauração da noção de "igualdade" na esfera política, econômica ou social. Todavia, o projeto moderno de estabelecimento da "igualdade" humana se revelou uma farsa, pois nenhum ser humano manifesta qualquer tipo de característica semelhante a outrem, e se falamos de "igualdade", estamos certamente estabelecendo uma redução simbólica da condição individual.

No decorrer de sua atividade filosófica, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) demonstra uma evidente incompatibilidade axiológica em relação aos parâmetros normativos da moralidade cristã, por considerá-la responsável pelo contínuo adoecimento existencial do ser humano, limitado em seus potenciais criativos pelo poder coercitivo imposto por tal instituição religiosa. Todavia, suas violentas críticas ao projeto moralista da Cristandade não significam necessariamente uma negação do valor da experiência religiosa, quando esta se pauta em valorações imanentes e extramorais, tampouco uma negação radical do sentido da experiência cristã em sua expressão originária, isto é, a partir da obra evangélica de Jesus de Nazaré.

Cumpre destacar que Nietzsche, em diversas passagens de suas obras, explicita colocações elogiosas acerca da pessoa de Jesus. Destacamos a encontrada em Humano, demasiado humano, § 475, quando Nietzsche denomina Jesus como "o mais nobre dos homens", assim como no Assim falou Zaratustra em que, apesar de depreciar a obra evangélica de Jesus, por considerá-la marcada pela tristeza judaica, considera o Nazareno dotado de caráter nobre: "Na verdade, morreu cedo demais aquele hebreu, que os pregadores da morte lenta reverenciam; e para muita gente, desde então, foi uma fatalidade que ele tenha morrido demasiado cedo. Ainda o hebreu Jesus só conhecia as lágrimas e a melancolia judaicas, juntamente com o ódio aos bons e justos, quando o acometeu a ânsia da morte.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Impulsividade

Por Antônio Carlos Alves de Araújo, psicólogo.

Este é sem sombra de dúvida um tema que atinge pelo menos metade da humanidade. Inicialmente defino impulsividade como a máxima expoente do complexo de inferioridade; o traçado de ambas é idêntico em quase todos os sentidos. Cada evento por mais diminuto que seja, adquire uma reação máxima do ponto de vista emocional. Não tratarei aqui das sociopatias, mas apenas dos casos psicológicos. Na impulsividade tudo é uma prova terrível, sendo que a única saída para a pessoa provar um pouco de sua autoestima é a total competição. Este processo é sentido como que interminável para o sujeito em questão. A impulsividade é uma defesa contra a assimilação parcimoniosa de uma crítica. Esta é sentida não apenas como um ataque frontal perante a auto imagem da pessoa, mas, como um dano irreparável, ou que se levantou um segredo que irá humilhar o indivíduo no mais alto grau imaginável. Os elementos intrínsecos que compõe a impulsividade são: ódio, medo e ansiedade respectivamente. Todos são incontroláveis e invadem por completo a mente da pessoa.

A consequência direta da impulsividade é a vivência constante da culpa. Advém então, tentativas de reparação quase que megalomaníacas, como sacrifícios exagerados, presentes exorbitantes e coisas do gênero. Se importar com mínimas coisas causa uma escravização quase que diária no sujeito, que toma empréstimos constantes da agressividade, formando um ciclo vicioso. Todos já perceberam que o impulsivo fala na maioria das vezes verdades sobre os outros, mas, o problema é que sempre centra apenas na negatividade, na tentativa de punir, humilhar e destruir seu oponente. Muitos poucos conseguem absorver este tipo de ataque quase que inesperado. A desgraça absoluta do impulsivo é a esfera negativa do poder. Será sempre lembrado pela dor e sofrimento que despertou no outro, sendo que não tardará para que o nefasto sentimento de vingança assole totalmente o núcleo das relações das partes envolvidas. O problema do impulsivo não passa apenas pelo exagero, mas a palavra correta seria o despropósito diante de determinado fato ou evento. Se fosse pensar em exemplos teríamos diversas situações cotidianas em nossa sociedade: àquela pessoa no ambiente de trabalho totalmente neurotizada, as infindáveis discussões no trânsito que além do stress produzem diariamente tragédias, conflitos entre casais pela simples disputa de poder que acirra ao máximo a impulsividade de um  ou ambos.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Enquanto resta alguma lei neste mundo

Por George Bernard Shaw, no prefácio de 'On the rocks' (1933).

PILATOS. Você está desrespeitando seu pai e sua mãe. Está desrespeitando a sua Igreja. Está violando os mandamentos do seu Deus, e alegando ter direito a agir assim. Está pleiteando em favor dos pobres, e declarando que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no paraíso de Deus; apesar disso você banqueteou-se na mesa dos ricos, e encorajou meretrizes a gastar em perfume para os seus pés o dinheiro que poderia ter sido dado aos pobres, deixando nisso o seu tesoureiro tão revoltado que ele o traiu ao Sumo Sacerdote por um punhado de prata. Ora, banqueteie-se o quanto quiser: não culpo você por recusar-se a fazer-se de faquir e a tornar-se exposição ambulante de austeridades tolas. Porém preciso impor um limite quando você promove tumulto no templo e arremessa o dinheiro dos cambistas para ser disperso entre os seus simpatizantes. Tenho uma lei para administrar. A lei proíbe obscenidade, sedição e blasfêmia, e você foi acusado de sedição e de blasfêmia. Você não as nega: você fala sem parar sobre a verdade, que acontece de ser apenas aquilo em que você gosta de acreditar. Sua blasfêmia não representa nada para mim: toda a religião judaica, do começo ao fim, é blasfêmia do meu ponto de vista romano; mas significa muito para o Sumo Sacerdote, e não posso manter a ordem em meio aos hebreus a não ser lidando com os tolos judeus de acordo com a tolice judaica. Já a sedição diz respeito a mim e ao meu cargo muito de perto. Quando você promete suplantar o Império Romano com um reino em que é você e não César a ocupar o trono, torna-se culpado da mais grave sedição. Sou avesso a mandar crucificá-lo; embora seja judeu, e como se não bastasse jovem e imaturo, percebo que você é à sua maneira judia um homem de qualidade. Não me sinto à vontade em atirar à multidão um homem de qualidade, mesmo que sua qualidade seja meramente judaica. Pois como aristocrata sou eu mesmo um homem de qualidade, e falcão não arranca olho de falcão. Na verdade, se condescendo em parlamentar com você tão extensamente é na misericordiosa esperança de encontrar uma desculpa para tolerar sua blasfêmia e sedição. Em sua defesa você oferece apenas uma frase vazia sobre a verdade. Sou sincero quando digo que desejo poupá-lo, porque se não libertá-lo terei de libertar aquele patife Barrabás, que foi mais longe do que você e cometeu assassinato, enquanto entendo que você só ressuscitou dos mortos um judeu. Então, pela última vez, faça seu juízo funcionar, e encontre-me uma razão sólida para deixar partir em liberdade um blasfemador sedicioso.

JESUS. Não peço que me liberte; também não aceitaria minha vida ao preço da morte de Barrabás, mesmo se acreditasse que você tem poder para revogar o suplício ao qual estou predestinado. Mas para satisfazer seu anseio pela verdade, direi que a resposta às suas questões está em seu próprio argumento de que nem você nem o prisioneiro que você está julgando são capazes de provar que têm razão; sendo assim você não deve me julgar, para não ser julgado. Sem sedição e blasfêmia o mundo permaneceria imóvel, e o reino de Deus nunca chegaria a estar um estágio mais próximo. O império romano começou com uma loba dando de mamar a duas crianças. Se essas crianças não tivessem sido mais sábias do que sua madrasta, seu império seria uma matilha de lobos. É por crianças que são mais sábias que os pais, por súditos que são mais sábios que seus imperadores e por mendigos e vagabundos que são mais sábios que seus sacerdotes que os homens alçam-se de serem animais predadores a crerem em mim e serem salvos.

PILATOS. O que você quer dizer com “crer em você”?

JESUS. Ver o mundo como eu vejo. O que mais poderia significar?

PILATOS. E você é Cristo, o Messias, certo?

JESUS. Se eu fosse Satanás meu argumento permaneceria válido.

PILATOS. Devo então poupar e encorajar todo herege, todo rebelde, todo transgressor e todo velhaco, porque ele pode acabar se mostrando mais sábio do que todas as gerações que fizeram o Direito Romano e construíram sobre ele o Império Romano?

JESUS. Pelos frutos você os reconhece. Cuidado quando você mata um pensamento que é novo pra você; esse pensamento pode ser o fundamento do reino de Deus na terra.

PILATOS. Pode ser também a ruína de todos os reinos, de toda lei, de toda sociedade humana. Pode ser o pensamento do animal predador lutando para voltar.

JESUS. Não é o animal predador que está lutando para voltar; é o reino de Deus que está lutando para vir. O império que olha para trás com terror dará lugar ao reino que olha para a frente com esperança. O terror enlouquece os homens; a esperança e a fé dão-lhes sabedoria divina. Os homens que você enche de temor não se intimidarão diante de nenhum mal e perecerão em seu pecado; os homens que encho de fé herdarão a terra. A você eu digo: expulse o medo. Pare de me dizer coisas vãs sobre a grandeza de Roma. Aquilo que você chama de grandeza de Roma não passa de medo: medo do passado e do futuro, medo dos pobres, medo dos ricos, medo dos sumos sacerdotes, medo dos judeus e gregos que são cultos, medo dos gauleses e dos godos e dos hunos que são bárbaros, medo da Cartago que vocês destruíram para salvá-los do medo que tinham dela e que agora temem mais do que nunca, medo do César imperial, o ídolo criado por vocês mesmos, e medo de mim, o vagabundo sem um tostão, espancado e ridicularizado, medo de tudo exceto o domínio de Deus: fé em coisa alguma que não seja sangue e ferro e ouro. Você, representando Roma, é o covarde universal; eu, representando o reino de Deus, enfrentei tudo, perdi tudo, e ganhei uma coroa eterna.

PILATOS. Você ganhou foi uma coroa de espinhos, e vai usá-la na cruz. Você é um sujeito mais perigoso do que eu imaginava. Com sua blasfêmia contra o deus dos sumos sacerdotes pouco me importo: no que me diz respeito você pode espezinhar a religião deles até o inferno. Mas você blasfemou contra César e contra o Império; e falou sério, e tem poder para dobrar o coração dos homens contra ele, como dobrou o meu. Devo portanto por um fim em você, enquanto resta alguma lei neste mundo.

JESUS. A lei é cega sem conselho. O conselho com que concordam os homens é vão: não passa do eco de suas próprias vozes. Um milhão de ecos não irão ajudá-lo a governar com justiça, mas quem não tem medo de você e mostra o outro lado é uma pérola do maior valor. Mate-me e você ficará cego, para sua própria condenação. O maior dos nomes de Deus é Conselheiro; quando o seu império for pó e o seu nome uma lembrança, entre as nações os templos do Deus vivo ecoarão ainda o louvor a ele como Maravilhoso! Conselheiro! O Pai da Eternidade, o Príncipe da Paz.


segunda-feira, 14 de maio de 2012

De Mao a melhor

Por Pedro Cezar Dutra Fonseca, professor titular do Departamento de Ciências Econômicas da UFRGS.

Ao estudar camelôs de Porto Alegre, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado puxou um fio que a levou ao Paraguai e à China e virou tese premiada e livro

Quando o professor Ruben Oliven, do Departamento de Antropologia da UFRGS, convidou-me para participar de uma banca de qualificação de doutoramento, minha primeira reação foi de tratar-se de um engano. Já havia antes participado de outras bancas, e até orientado trabalhos em áreas próximas da economia, como ciência política, administração, história e sociologia, mas na antropologia era a primeira vez. Ele esclareceu que a tese possuía forte interação com minha área de trabalho e, como orientador, julgava indispensável alguém com essa formação compor a banca. Houve época, como em meados do século XX, que Antropologia Econômica era disciplina valorizada e integrava o currículo das mais importantes universidades do mundo. Com a pós-modernidade, entraram em refluxo na academia os “paradigmas totalizantes”, como o marxismo e o estruturalismo, e o recurso às variáveis econômicas para explicar as formações sociais e suas possibilidades de transformação perdeu o charme. Ademais, interdisciplinaridade é como o “politicamente correto” – difícil quem se declare contra, mas na prática são outros quinhentos.

Justamente esse caráter de transitar entre várias áreas das ciências sociais – sem, contudo, perder sua sólida visão de antropóloga, posto que a transdisciplinaridade supõe o conhecimento especializado – é um dos pontos fortes da tese, ora publicada em livro, de Rosana Pinheiro-Machado. Made in China obteve a primeira colocação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) entre as teses de doutoramento do país. E o referido caráter, além da notória atualidade do tema e da qualidade da pesquisa, certamente pesou, mais recentemente, para que a Capes lhe conferisse o prêmio de Melhor Tese de 2011, concorrendo com todas as outras áreas do conhecimento.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O Cristianismo nosso de cada dia

Por Maria Carolina Maia, Revista VEJA.

O historiador best-seller Geoffrey Blainey reconstrói a longa trajetória da maior religião do ocidente em mais um título da série ‘Uma Breve História de...’ e conta como a doutrina cristã influenciou a cultura ocidental

“Se os oito cristãos citados a seguir, todos influentes em seu tempo, se reunissem em torno da mesa de jantar, que conversas surgiriam”, pergunta o historiador australiano Geoffrey Blainey antes de citar nomes como São Paulo, Francisco de Assis e Martinho Lutero. São fórmulas como essas que atraem os leitores – e não são poucos – a livros como Uma Breve História do Cristianismo (Fundamento, 328 páginas, 29,50 reais) que mal chegou ao Brasil e já encontrou seu espaço na lista dos mais vendidos do país.

O livro, em si, não é espetacular. É uma espécie de história for dummies, tomando de empréstimo a expressão usada pelos americanos para designar a informação mastigada e servida na colher, feita a partir de uma gama não necessariamente extensa de fontes de pesquisa. Aquele que talvez seja o seu conteúdo mais interessante – o legado do Cristianismo para a civilização ocidental – está esparso ao longo do livro e consolidado de maneira concentrada em suas últimas três páginas. Mas é exatamente esse formato simples, com apelo a imagens, que torna os livros de Blainey tão acessíveis e populares. E desperta olhares desconfiados em colegas acadêmicos.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Sabedoria e mortalidade

Por Paulo Brabo, escritor.

Tal como a nuvem se desfaz e some,
aquele que desce à sepultura nunca tornará a subir. [Jó 7:9]

Talvez aproximar-se da Bíblia sem grandes prejulgamentos baste para se entender que é com muita hesitação que o próprio texto bíblico se aproxima da ideia de imortalidade. Em termos narrativos, históricos e literários, é só a terceira terça parte da Bíblia que tem algo a dizer sobre vida eterna – e mesmo assim não fala, muito provavelmente, da vida eterna como a estamos acostumados a imaginar.

Porém, o que quer que se conclua sobre a vida eterna em Daniel e no Novo Testamento, permanece o fato de que os dois primeiros terços da Bíblia tendem a sugerir, com impressionante consistência, que o que existe é esta vida – que deve ser bem vivida, com gratidão, com integridade e com gosto, porque é somente esta.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Onde Deus não está

Por Paulo Brabo

Se me recordo bem daquela palestra que não cheguei a assistir, a pedagoga estava dizendo que há cinco impulsos ou motivações básicas que levam as pessoas a agir como agem, e que é tarefa do professor fornecer aos alunos ferramentas para que sejam capazes de trocar os impulsos mais baixos pelos mais elevados.

A motivação mais mesquinha é o medo da punição; acima dela está a esperança de receber uma recompensa; mais nobre do que essas duas é agir obedecendo a uma regra ou a uma lei; acima desta está o desejo de receber a aprovação de um notável ou do grupo; e o impulso mais nobre seria agir de determinado modo simplesmente porque é a coisa certa a se fazer.

Assim, com os impulsos mais mesquinhos embaixo e os mais elevados em cima:

[ 1 ] Porque é a coisa certa a se fazer
[ 2 ] Para receber aprovação
[ 3 ] Em obediência a uma regra
[ 4 ] Para receber uma recompensa
[ 5 ] Para evitar a punição

O desconcertante em se ver as coisas expressas dessa forma é entender que a maioria de nós não chega jamais a ultrapassar [2] e [3]; se formos sinceros, será preciso reconhecer que a maior parte do tempo transitamos entre [4] e [5].

Os mais beatos entre nós poderiam lembrar que há uma motivação ainda mais nobre do que simplesmente fazer a coisa certa, e essa seria fazer pura e simplesmente a vontade de Deus. Uma reflexão sincera, no entanto, bastará para demonstrar que esse fictício impulso de “fazer a vontade de Deus” está por demais contaminado pelos itens [2], [3], [4] e [5] para poder alegar qualquer genuína fidelidade ao item [1].

Os antigos mestres da humanidade deixaram muito bem explicado, cada um a seu modo, que não há verdadeiro mérito em agir impulsionado pelo intervalo entre [5] e [2]. A singularidade do Novo Testamento talvez esteja em anunciar que não há mérito sequer em [1], e que mesmo no impulso de fazer a coisa certa Deus pode não estar.

A boa nova é também uma nova terrível e devastadora, porque acaba deixando claro, pelo efeito cumulativo da sua revelação, que o único impulso que deve nos levar a agir é porque é precisamente dessa forma que queremos agir. Debaixo do peso dessa liberdade e dessa autenticidade viveu e morreu Jesus; debaixo delas viveram e morreram Sócrates, São Francisco e todos os santos.

Fazer o que você quer fazer – aquilo que você absolutamente deseja e sonha e aprova e anseia e endossa e absolutamente não condena – é o único centro concebível para a vontade concebível de Deus.

"Nós, protestantes, teremos mais cedo ou mais tarde de enfrentar a seguinte questão: devemos entender a Imitação de Cristo no sentido de que devemos copiar sua vida e, se é que posso usar essa expressão, simular seus estigmas; ou no sentido mais profundo de que devemos viver nossas próprias vidas de forma tão verdadeira quanto ele viveu a sua em todas as suas implicações? Não é coisa fácil viver uma vida modelada na de Cristo, mas é indizivelmente mais difícil viver nossa própria vida de forma tão verdadeira quanto Cristo viveu a dele" [Carl Gustav Jung]

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O mundo invisível de cada um

Por Eliane Brum, jornalista e documentarista.

Estirado no calçadão, o mendigo cobre o rosto, inventa paredes e conta uma história para si mesmo. Em casa, nós fazemos o mesmo.

O homem está esticado no canteiro da Avenida Sumaré, em São Paulo. Seu corpo está exposto. Mas ele cobre a cabeça com um daqueles cobertores que nunca vi em outra cama que não as calçadas. Fala com alguém que não podemos enxergar. É uma discussão sobre macarrão. Apurando o ouvido, é possível perceber que ele pede macarrão a alguém, mas a pessoa recusa. Ele insiste, porque tem fome de macarrão. Gostaríamos de seguir escutando a conversa, mas sentimos que ficar ali seria como profanar as paredes invisíveis que ele construiu com seu cobertor de mendigo. E seguimos em respeito à privacidade do homem exposto ao mundo.

Na volta, ele continua ali. E agora ele geme. Demoramos a entender, até enxergar a braguilha aberta e perceber que ele se masturba. A descoberta não nos choca, nem nos ofende. Não é um homem exibindo sua ereção para os passantes. Mas um homem que só tem como casa e como paredes aquele cobertor de mendigo. Ele não nos remete a nenhuma tara. Ao contrário. Ele nos lembra as crianças bem pequenas, na fase em que acreditam que, ao tapar os olhos com as mãos, se tornam invisíveis. Ninguém mais pode enxergá-las porque não enxergam ninguém. “Siscondi”, elas dizem, com as mãozinhas sobre os olhos. Aquele homem ali, masturbando-se no canteiro da Sumaré com a cabeça coberta, “siscondeu”.

Seguimos porque, naquele momento, a melhor forma de vê-lo era fingir que não o víamos. Enxergá-lo era acreditar que ele se escondeu. Que o cobertor era ao mesmo tempo parede e teto. A melhor forma de respeitá-lo era fingir junto com ele que, lá fora, havia um dentro.

Seguimos comovidos, como sempre ficamos diante de um homem em uma luta feroz pela vida que escapa. Aquele homem com o rosto tapado, mas exposto a tudo, só tinha morte e inventava a vida. Estirado no asfalto, com apenas um cobertor para se proteger do tempo e da multidão, ele desejava. Desejava macarrão, desejava uma mulher. Era para ele estar quase morto, e em certa medida estava. Mas ele fingia viver. Fingia tanto que vivia.

Acho que os moradores de rua são o espelho que mais tememos. Por isso, na maior parte do tempo em que eles tentam chamar a nossa atenção, reclamando de sua fome, de seu frio, usamos nossos olhos como paredes para não enxergá-los. Na maior parte do tempo, somos nós que fingimos não vê-los por muitas razões. Uma delas é porque encarnam nossos medos mais fundos.

Suspeito de que os comerciantes que os escorraçam da porta de suas lojas o fazem não porque não reconhecem um humano ali – mas porque reconhecem. E temem o que veem mais do que podem confessar. Porque mesmo os mais duros entre nós pressentem a textura de cristal da vida, que se parte com tanta facilidade quanto profundos são os cortes que deixa para trás. E, à noite, quando estamos sós, é raro aquele que não teme perder as paredes e o teto que o protegem, mas nem tanto.

Diante de um morador de rua, tememos que um dia o mundo que criamos – e que nos custa tanto manter em pé sobre nossos ombros – possa ruir. E estaremos lá, indefesos na vitrine. Por isso, em geral, a parede que eles não desejam, mas que se mostra inabalável, é a dos nossos olhos. Fingimos que não os vemos não porque eles são diferentes – e sim porque são semelhantes demais. Mas, quando eles erguem seus frágeis muros para fazer o que todos nós fazemos entre os nossos de tijolos, apontamos. Quando apontamos, com nossos dedos e nossos gritos de decência ofendida, fingimos mais uma vez não enxergar o que enxergamos.

Ao seguirmos nossos caminhos cientes disso o suficiente para deixarmos as paredes invisíveis do morador de rua da Sumaré intocadas, pensei que era esse mesmo jogo de olhar e não olhar que rege a vida cotidiana de todos nós. Que constrói a cada dia a miséria de nossa pequeneza. A cada manhã custa muito para boa parte de nós levantar da cama. E nos levantamos ajeitando nossa máscara – ou os farrapos que restam dela – com a mesma esperança do morador de rua ao cobrir o rosto com o cobertor.

Saímos para a rua torcendo para que não nos descubram, mas a multidão está lá. No ponto de ônibus, no escritório, em toda parte. Morrendo de medo e farejando a fragilidade do outro para expô-la, na expectativa de que não descubram a sua. Apontando. Sempre apontando, enquanto em seus interiores o medo é uma sucuri que dá voltas.

É assim que nos reduzimos todo dia, na incerteza de nossa superioridade – e por isso mesmo afirmando-a o tempo todo. Em meio a tantos sorrisos de plástico, sabemos que nossos iguais esperam apenas que nosso pé falseie num degrau para se atirar sobre nós. E quando gritamos a nossa dor de existir, nossas chagas expostas como leprosos do mundo antigo, virarão as costas pela nossa inconveniência.

Diante da verdade do nosso desespero, terão paredes no lugar dos olhos e cimento enfiado nos ouvidos. Mas, se a raiz branca de nossos cabelos tingidos aparecerem, vão apontar. Se a barriga espichar a camisa, vão apontar. Se a caspa polvilhar nossa blusa, vão apontar. Se a unha estiver roída, vão apontar. Se o suor manchar a nossa roupa, vão apontar. Se gaguejarmos e nossas mãos tremerem, vão apontar. Há sempre gente demais pronta a desnudar nosso ridículo.

Espero que, diante do morador de rua da Sumaré, ninguém tenha chamado a polícia. E que ele tenha sido feliz em seu mundo invisível, onde as mulheres o desejam e um prato de macarrão o espera depois do amor. Olhar para dentro é também um olhar de súplica por humanidade. Um olhar que pede, que sonha, que fantasia, que se imagina mais bonito, mais forte, mais amado. Ali, exposto e indefeso em seu desamparo, o morador de rua conta histórias para si mesmo. Estirado na impossibilidade, ele se torna possível pela narrativa. Para além da tragédia, é grande e é belo o mendigo que inventa uma vida e estremece de gozo estirado no meio fio.

Protegida por paredes de tijolos, com as cortinas azuis da janela fechada, eu me encontro com o morador de rua em uma esquina de humanidade, para além de todas as diferenças impostas por um país desigual. Tenho certeza de que só me mantenho viva por causa do mundo invisível onde ninguém pode me alcançar para me ferir e posso fingir que a vida faz sentido mesmo quando não faz. Ali, quando os zumbis do mundo de fora me acossam com seus dedos sujos de sangue, invento a beleza e me reinvento como possibilidade. Alguns olham para dentro e enxergam apenas vísceras. Outros, horizonte.

quarta-feira, 21 de março de 2012

'Ninguém jamais viu a Deus' - o Pai e o Filho no outro

Por Osvaldo Luiz Ribeiro, biblista e exegeta.

O título deste artigo é uma citação de João 1,18. É uma afirmação importante no conjunto da teologia joanina, porque Jo 6,46 vai insistir nela: “não que alguém tenha visto o Pai”, e 1 Jo 4,12 vai praticamente repeti-la: “ninguém jamais contemplou a Deus”. Importante também porque ela sempre se faz acompanhar de um contraponto. Em Jo 1,18, diz-se que “o Filho Único, que estava voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer”; em Jo 6,46, inscreve-se uma ressalva teológica: “só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai”; e, finalmente, não tão evidentemente, 1 Jo 4,12 desenvolve o tema do “estar com Deus”, apesar de não se poder “ver Deus”, consoante o argumento do “amor ao outro” (1 Jo 4,11-16), porque Deus está no outro (cf. 11 Jo 4,17-5,4, especialmente 4,20).

Por essa linha de argumentação, a afirmação de que ninguém jamais viu a Deus parece deixar de ser apenas uma afirmação teológica, e se converte no arrimo de uma afirmação apologética, de defesa de uma determinada configuração de fé. Penso assim, porque, se ao mesmo tempo em que se diz que ninguém jamais viu a Deus, se diz que só o Cristo viu a Deus, devo inferir que o que se pretende é afirmar que só o Cristo tem algo a dizer efetivamente válido sobre o Pai, sobre Deus, porque só ele o viu. Só no Cristo o Pai está...

Aliás, toda a argumentação do prólogo do Evangelho, e do prólogo da primeira epístola joanina é justamente essa – dizer que o “verbo” foi encarnado (Jo 1,14), logo, visto, ouvido, tocado (1 Jo 1,1-3). Essa ênfase na encarnação do verbo, na carnalidade, na corporeidade do Cristo, condiz com o argumento de que o Filho viu o Pai, coisa que nenhum outro o teria feito. Sim, porque então se produz o seguinte efeito apologético, de defesa: ninguém jamais viu o Pai à o Filho viu o Pai à o Filho/Verbo se fez carne à “nós” (leia-se “João”, ou seja, a comunidade joanina por trás do Evangelho e das epístolas joaninas) viram e ouviram o verbo, e tocaram nele à “nossa” alegria pode ser completa, isto é, porque agora pudemos ver, ouvir e tocar, porque o Filho revelou o Pai.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Em nome de Jesus

Por Paulo Brabo, escritor.

O drama da narrativa bíblica reflete, em muitos sentidos, um árduo esforço divino para eliminar da mente humana o conceito de magia: a noção de que, através de fórmulas mágicas ou procedimentos estabelecidos, Deus ou o universo podem ser manipulados para atingirmos o objetivo que temos em mente.

Desde a primeira página, um dos traços mais distintivos do Deus das Escrituras é que ele não faz barganhas. Não há ritual ou palavra mágica que possa torcer o seu braço a fazer o que queremos. Se Deus concede o que homens lhe pedem é reflexo da sua magnanimidade e da intimidade de relacionamento que ele propõe, jamais da habilidade humana em manipulá-lo.

Essa obsessão divina em apagar da experiência humana a idéia da magia explica muito nas filigranas dos mandamentos e da Lei de Moisés. Israel não deve ter “outros deuses além de mim”, entre outras coisas, porque os deuses dos outros povos são entidades manipuláveis – aceitam suborno, dobram-se diante do ritual certo, vendem-se por um sacrifício, negociam, especulam e cedem a barganhas. Deus sabe que não é assim que o seu universo funciona, e não quer que seu povo adote essa visão distorcida do mundo. Pela mesma razão ele deita rigorosas proibições contra feitiçaria, amuletos e toda espécie de adivinhação.

quinta-feira, 8 de março de 2012

A Audição e o Dia da Mulher

Por Bianca Assis, educadora.

“Veja a única coisa maior que você”

Alex Haley, escritor americano do livro -Negras Raízes-, cresceu ouvindo histórias do seu avô sobre seu antepassado africano, Kunta Kinte, de nobres tradições tribais, raptado por quatro homens enquanto andava na floresta, sendo acorrentado e levado como escravo para a América. Contar histórias foi a forma encontrada para que as gerações não perdessem a identidade.

A frase que me marcou aparece no oitavo dia de vida do menino Kunta, após o ritual em que recebera seu nome. O pai, Omoro, sozinho com o filho o leva até a floresta, o levanta alto, voltado para o firmamento e diz em seu ouvido:
“Veja a única coisa maior que você”.

O homem e a mulher tem valor intrínseco. Inquestionável. Mas este texto foi importante por exibir a reverência pelo que é maior do que nós. O que não cabe no vocabulário.

“Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo.”
-Wittgeinstein-

O mundo que é do tamanho do que a razão consegue apreender é pequeno demais, no mínimo, menor do que você. [Neste texto vou focar nas relações humanas, mas eu poderia desenvolver esta ideia relacionando-a ao mistério do mundo, ao divino, ao indizível.] O fato de alguém nunca ter tido contato com qualquer tipo de opressão deve ser motivo de gratidão, mas não lhe dá direito de reduzir o empenho da luta dos oprimidos cruelmente em seus mais diversos contextos. Sendo minoria ou maioria. A linguagem é fruto de determinada vivência, e esta reflete as fronteiras de cada mundo.

Lamentar o fato de que algum ser humano se suponha maior ou menor é óbvia. As opressões provenientes de homens ou mulheres que alegaram ter algum direito de dominar outra vida e as diversificadas formas [conscientes ou não] de fazê-lo, é grave e repugnante.

Hoje, no dia 08 de março de 2012, Dia Internacional da Mulher, eu, mulher, queria sugerir que a fala e a audição são fatores marcantes na construção dessas relações.

A FALA:
“Os movimentos de vários músculos que fazem as cordas vocais vibrarem e produzirem sons.”

A fala é ativa. É a característica masculina. Vem de dentro para fora. Rubem Alves diria que a fala é fálica, é a capacidade de penetrar o vazio que a aguarda, em forma de palavras, ruídos, canções. A fala é o semear, é o fecundar: O cérebro engravida, floresce de ideias.

A AUDIÇÃO:
“É a capacidade de reconhecer o som emitido pelo ambiente. O órgão responsável pela audição é o ouvido. As ondas sonoras chegam até o aparelho auditivo, fazem o tímpano vibrar, as vibrações viram impulsos nervosos que são transmitidos ao cérebro pelo nervo auditivo.”

A audição é o vazio sem o qual a fala não faz sentido. É a característica feminina de receber a semente, de acolher em si o mundo, de conceber e transformar através do que se recebe. Não é exclusiva das mulheres, a audição é a manifestação feminina necessária em toda a humanidade, assim como a fala, a característica masculina que em todos deve se manifestar.

A fala representa a ideia. É instrumento de poder, que pode ser agradável, comovente e transformadora, mas quando abusiva e autoritária, fere, agride, violenta. Pode ser tanto a fonte das opressões quanto a representação da conquista da dignidade.

A audição é condição para alcance da mente. Só quando o vazio se oferece, há fecundação, frutificação, Vida.

Com isso, queria que a característica feminina celebrada do dia, e fundamental em cada homem e em cada mulher, imprescindível para o desenvolvimento do mundo, levasse seu merecido destaque. Nada de lógicas invertidas, e de mulheres impenetráveis abusando de suas falas. Nada de homens incapazes de serem fecundados e transformados pela contato com os/as semelhantes.

Feliz dia Internacional das Semelhantes.
Vamos todos OUVIR?

“O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas, o que sai da boca, isto é o que contamina o homem.” Mat. 15:11.

“Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele isto é o que contamina o homem.” Mar. 7:15

“Sabeis isto, meus amados irmãos; mas todo o homem seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar.” Tiago 1.19


terça-feira, 6 de março de 2012

Agressividade e comportamento sexual

Por Drauzio Varella, médico e escritor.

“Não existe atividade, movimento ou comportamento que não seja influenciado por um programa genético.” A frase é de Ernst Mayr, um dos maiores biólogos do século 20.

Há cerca de um ano comentei nesta coluna uma pesquisa publicada na revista Cell, sobre o papel de um gene (batizado de fru) no comportamento sexual das drosófilas, as mosquinhas que sobrevoam bananas maduras; modelo de inúmeros estudos genéticos.

O gene fru se caracteriza por coordenar um circuito de 60 neurônios responsáveis pela condução de estímulos sexuais. Basta lesar um deles para que o inseto não consiga se acasalar adequadamente.

Na pesquisa, autores austríacos transplantaram a versão masculina do gene fru das drosófilas, para um grupo de fêmeas. E, num experimento paralelo, a versão feminina do mesmo gene, para um grupo de machos.

Para espanto geral, as fêmeas que receberam a versão masculina de fru, quando levadas à presença de outra fêmea, adotavam os rituais de comportamento sexual masculino: quando colocadas em ambientes com moscas de ambos os sexos, perseguiam sexualmente outras fêmeas sem dar a mínima para o sexo oposto. Ao contrário, quando a versão feminina de fru foi transplantada para os machos, eles se tornaram mais passivos, indiferentes à presença das fêmeas e atraídos por outros machos.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Inseridas e entrelaçadas

Por Orígenes de Alexandria (185-254 AD), teólogo e filósofo.
Tradução: Paulo Brabo

Ora, qual pessoa provida de entendimento irá considerar admissível a declaração de que o primeiro, o segundo e o terceiro dia, nos quais são mencionados tanto tarde quanto manhã, tenham existido sem sol, lua e estrelas – o primeiro dia até mesmo sem um céu? E quem se mostrará ignorante o bastante para supor que Deus, como se fosse um lavrador, tenha plantado árvores no paraíso, no Éden no leste, e nela uma árvore da vida – isto é, uma árvore de madeira visível e palpável, da qual quem comesse com dentes físicos obteria vida, e se comesse também da outra árvore, adquiriria o conhecimento do bem e do mal? Não creio que alguém duvidará de que a declaração de que Deus caminhava ao entardecer no paraíso, e que Adão tenha se escondido debaixo de uma árvore, estejam narrados figurativamente na Escritura, e que algum significado místico esteja sendo indicado por ela. O afastamento de Caim da presença do Senhor irá manifestamente levar o leitor atento a ponderar sobre o que é a presença de Deus, e de que forma alguém pode afastar-se dela. Porém, sem estendermo-nos além dos devidos limites na tarefa que temos diante de nós, será muito fácil, para quem quiser, distinguir na Escritura sagrada aquilo que está registrado como tendo de fato acontecido, mas que no entanto não se pode crer tenha ocorrido de modo racional e concebível da forma como foi historicamente narrado.

O mesmo estilo de narrativa escritural ocorre abundantemente nos evangelhos, como quando se diz que o diabo levou Jesus a uma montanha muito alta, a fim de mostrar-lhe dali todos os reinos do mundo e a glória deles. Como poderia ter literalmente acontecido, quer que Jesus se deixasse levar pelo diabo a uma montanha muito alta, quer que o diabo pudesse mostrar a ele todos os reinos do mundo (como se jazessem todos debaixo de seus olhos mortais, e adjacentes à montanha), isto é, os reinos dos persas, dos citas e dos hindus? Como poderia ter-lhe mostrado os modos pelos quais os reis desses reinos recebem glória dos homens? E tantas outras instâncias similares a esta se podem encontrar nos evangelhos por qualquer um disposto a lê-los com atenção, que notará que nas narrativas que parecem ter sido ser literalmente registradas estão inseridas e entrelaçadas coisas que não podem ser admitidas historicamente, mas podem ser aceitas num sentido espiritual.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Sobre - todos - os discursos sobre Deus, os nossos, os dos outros e o de todo mundo

Por Osvaldo Luiz Ribeiro, biblista e exegeta.

Todos os discursos sobre Deus, de todas as religiões, nossos e nossas, dos outros e de todo mundo, todos os discursos sobre Deus são invenções humanas, pura fantasia, imaginação, cultura, criados pelas mais diferentes razões - econômicas, políticas, sociais, históricas, biológicas, psicológicas.

Isso não tem o significado lógico de dizer que Deus não existe - tem o significado lógico de dizer que o Deus inserido em qualquer discurso humano é igualmente invenção humana. Todas as vezes que qualquer pessoa fala sobre Deus, é de uma coisa inventada e por meio de um modo inventado que ela fala.

Se Deus há fora da palavra humana, fora do pensamento humano, não se sabe nem jamais se saberá. Mas aquele e aqueles que nelas e neles vivem, é humaníssimo.

Incluo aí o Deus dos púlpitos. De todos.

Há aqueles que se deram conta disso e passaram a falar de Deus como quem faz poesia. A esses eu respeitaria numa única condição, quase nunca verificada: que sua audiência saiba que é poesia que se faz aí e saiba, sobretudo, o que isso significa. Fora dessa condição, merece desprezo, porque mente para si e para todos os que o ouvem.

Outro dia, uma e tal da manhã, eu mesmo ouvi um "teopoeta" falar de Deus na TV, pregar Jesus igualzinho a todos os pregadores da fé e da convicção inabalável - e não contive uma revolta nas tripas...

Quando ouço qualquer pessoa, amigo ou não, falar de Deus e ainda chamar outras racionalizações tão criativas e imaginativas quanto a sua - com o mesmo grau de substância, com a mesma profundidade de massa -, de tolice, quase chego a gostar do fundamentalista: pelo menos ele não se mete a intelectual (às vezes; quando o faz, o resultado é ridículo).

Sou (acho) amigo de muito pregador, muito pastor, muito cristão, muito crente. Todavia, Amicus Plato, sed magis amica veritas.

É uma pena. Eu acredito que é possível conciliar vocação pastoral, terapêutica, com as informações que temos desde o século XIX. Mas é uma pena que a pregação se faça para uma audiência que, ela sabe, não tem condições de a pôr no seu lugar.

Podia ser tão diferente... Não é preciso fazer as pessoas de bobas para cuidar delas. Fazê-las de bobas só as torna mais doentes. Há caminhos mais honrados por onde se pode ir.

Mas se vai pelo caminho mais fácil.

Nem sempre o mais ético.

PS. Se você espreme contra a parede um púlpito esclarecido, ele confessará que sabe do que você está falando, mas se a audiência desconfiar do que estamos falando, caos. Não preciso dizer mais nada. Quanto aos púlpitos que não têm sequer condição de entender do que estamos falando, bem, essa é outra história, conquanto seja, ainda, a mesma tragédia. Porque ninguém precisa saber que o pé está a pegar fogo para que o pé esteja a pegar fogo...

Fonte: Peroratio