quinta-feira, 16 de julho de 2009

Abuso espiritual não tem denominação, diz autora de "Feridos em nome de Deus"

A jornalista Marília de Camargo César responde às perguntas sobre o seu livro "Feridos em nome de Deus" (São Paulo: Mundo Cristão), em que denuncia abusos cometidos por pastores evangélicos. Para ela, o abuso espiritual não tem denominação, mas estará "onde houver um líder sendo superidealizado, reverenciado como super-herói, visto como senhor de todas as respostas, ali estará um enorme potencial para o abuso". Leia a entrevista, concedida ao PRAZER DA PALAVRA.

PRAZER DA PALAVRA -- Seu livro, que é uma perspectiva de dentro, inaugura o jornalismo investigativo no meio evangélico ou já há outros trabalhos desse teor?

MARÍLIA DE CAMARGO CÉSAR -- Honestamente, não sei responder a esta pergunta; se disser que sim, posso incorrer em alguma grande injustiça. Mas não tenho conhecimento de nenhuma outra obra nesse estilo de reportagem, como a que tive o privilégio de escrever. Percebo no meio evangélico brasileiro uma grande quantidade de livros escritos por pastores, teólogos, conselheiros, sempre com um tom mais acadêmico e formal. Diferente do “Feridos”, que é uma grande reportagem com um tom um pouco mais editorial em alguns momentos.

PRAZER -- Que peso teve sua experiência pessoal na decisão e motivação para escrever "Feridos em nome de Deus"?

MARÍLIA -- Minha experiência pessoal foi fundamental para me mover nesse projeto. A dor de meus amigos, principalmente, uma vez que não fui atingida pessoalmente por abuso espiritual. Não tinha com minhas antigas lideranças uma relação de co-dependência, como muitos dos feridos tinham. Eu vi como ficaram essas pessoas depois de acordarem para a realidade do abuso emocional que viveram e aquilo tocou profundamente meu coração e meu instinto jornalístico. Eu sabia que havia naquelas situações um fato importante a ser registrado, que poderia elucidar e ajudar outros caminhantes. Mas foi uma enorme surpresa ver a repercussão da obra – muito acima de toda e qualquer expectativa.

PRAZER -- Você participa regularmente de uma igreja local? Pode dizer qual?

MARÍLIA -- Frequento, com minha família, há um ano a Igreja Batista da Água Branca (IBAB), do pastor Ed René Kivitz, que tem tido uma paciência de Jó comigo, por causa da infinidade de questionamentos que tenho levado a ele.

PRAZER -- Que cuidados teve para preservar as suas fontes, além dos nomes trocados. Você acrescentou ou omitiu fatos para dificultar a identificação?

MARÍLIA -- Sim, eu mudei algumas informações para dificultar a identificação, mas as pessoas que congregavam em minha antiga comunidade sabem, pelas histórias, distinguir quem são as pessoas. O interessante é que já recebi retornos desse tipo: aquele fulano que você descreve no capítulo tal é de tal igreja, não é? Só pode ser! E eu digo, não, não é. Isto demonstra que as histórias se repetem, infelizmente.

PRAZER -- Qual foi a reação ao livro no seu círculo de amigos? Qual foi a reação das sua fontes? Em sua igreja local, como receberam sua obra?

MARÍLIA -- Eu fiquei muito feliz e emocionada com os primeiros retornos, de pessoas machucadas que leram o livro e vieram me procurar. Descreveram um sentimento de nova compreensão dos fatos. Entenderam que também tiveram sua parcela de responsabilidade nas situações de abuso – a enorme carência, a idolatria de homens falíveis, a bajulação. Antes, eles se viam apenas como vítimas, depois de lerem o livro entenderam que, no final, são todos, abusados e abusadores, vítimas, por compartilharem uma atmosfera espiritual adoentada e uma teologia cheia de problemas.

PRAZER -- Quando viu a publicidade que seu livro ganhou na mídia secular, não se viu "entregando o ouro ao bandido"?

MARÍLIA -- Não, claro que não! Eu fiquei espantada com o interesse da revista Época no assunto – e não me venham com teorias conspiratórias dizendo que dei uma entrevista para as “organizações Globo”. Que coisa mais tacanha. Eu trabalho no Valor Econômico, é bom que se entenda, conheço uma porção de jornalistas bacanas, sou jornalista há 300 anos (risos) tenho acesso a eles, não estou sendo “usada pela Globo”, como querem alguns, para falar mal de evangélicos. Isso não existe! Jornalistas não cristãos que leram a entrevista vieram me procurar, interessados em debater o tema do livro – isso é entregar ouro ao bandido? Acho que é, sim, uma tremenda oportunidade de mostrar que existe um Deus de Graça e Perdão que está sendo vituperado por lideranças sem ética, que estão detonando uma comunhão que teria que ser mais sadia e produtora de bem-estar.

PRAZER -- O abuso é algo pentecostal ou ultrapentecostal ou se distribui igualmente por todo o protestantismo?

MARÍLIA -- O abuso está por todo lado, nas históricas, nas novas, onde houver um líder sendo superidealizado, reverenciado como super-herói, visto como senhor de todas as respostas, ali estará um enorme potencial para o abuso.

PRAZER -- Os casos de abuso espiritual que chegaram ao seu conhecimento e que estão no livro lhe parecem suficientes para analisar o universo evangélico brasileiro? Você não incorreu em generalizações?

MARÍLIA -- Eu tinha um prazo a cumprir e, como trabalho diariamente no jornal, não tinha tempo nem vontade de escrever um tratado definitivo sobre o assunto. Queria passar para o papel as emoções dessas pessoas e as minhas próprias, não queria perder o timing. Poderia, sim, ter ouvido mais pessoas, houve algumas que ouvi e que não entraram no livro justamente para não tornar a obra uma leitura muito pesada. Eu queria chegar a um equilíbrio e penso que consegui. Mas, claro, deve haver uma multidão que não está ali representada, que sofreu outros tipos de abusos que não estão relatados. Se fosse entrar na área de assédio sexual, então.... este seria um outro livro.

PRAZER -- Você ouviu o outro lado (o lado dos líderes que feriram)?

MARÍLIA -- Apenas em um dos casos, que foi justamente o caso mais importante para mim, por envolver a liderança de minha antiga congregação. Algumas histórias do livro são originadas ali. Não achei pertinente ouvir o outro lado em todas as demais histórias porque, como não conhecia as outras lideranças envolvidas, achei que o livro poderia ganhar um tom acusatório que eu não queria que ele tivesse.

PRAZER -- Você acha que falta Graça no púlpito evangélico brasileiro?

MARÍLIA -- Se eu disser que sim, aí, sim estarei generalizando. Encontrei Graça no púlpito da Igreja Batista da Água Branca e encontrei graça em outros púlpitos que visitei. Sei que há centenas de boas igrejas, lideradas por bons pastores, pessoas sóbrias, que enxergam as suas limitações e pregam a Graça acima de todas as doutrinas. Tenho certeza disso! Quero enfatizar que havia, sim, MUITA GRAÇA também sendo pregada na igreja que freqüentei durante dez anos, ali aprendi tantas coisas boas, senão não teria ficado 10 anos! O problema são as sutilezas – as coisas vão mudando de mansinho, sem que se perceba, e um dia você acorda e aquela igreja que você freqüentava mudou. Os pastores tornaram-se onipotentes, inquestionáveis, poderosos. Infelizmente, muitas vezes só enxergamos isso quando os feridos se levantam e têm coragem de falar.

Fonte: Prazer da Palavra
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