Por Osvaldo Luiz Ribeiro, biblista e exegeta.
1. José casou com Maria. Foram onze
mil, setecentos e trinta e duas vezes e meia que José disse a Maria que a
amava - a meia é porque, numa das vezes, ela o interrompeu com um beijo
profundo... A lua-de-mel foi em Komodo, num hotel simples, mas
confortável, e com longos passeios de barco e mergulhos em regiões
paradisíacas. Ele a enchia de presentes e roupas caras - de lingerie,
eram gavetas e gavetas. Maria era sua pequena boneca - e ele se derretia
de amores...
2. No seu aniversário de casamento de sete anos, na manhã seguinte
àquela segunda lua-de-mel, Maria disse a José que precisava lhe contar
um segredo. Maria fora prostituta por dois anos, antes que José a
conhecesse. Depois que Maria conheceu José, abandonou a profissão. Nunca
revelou, com medo. Mas, agora, diante da prova de tanto amor, confessa
seu passado...
3. José fica petrificado. O sangue lhe ferve. Esbofeteia-a. De novo.
Outra vez. Maria chora, convulsiona-se, José a tem caída ao chão e não
contém um chute. Cospe-lhe. Vira as costas e vai sair do quarto... Olha
para ela:
_ Prostituta! E eu, que tanto te amei...
4. Maria levanta, retém todas as lágrimas que já encharcavam o chão. Sua
respiração é profunda. Controlada, Maria dirige a José essas palavras,
que me interessam dizer:
_ Você nunca me amou, nunca! Amou a imagem que fez de mim, seu brinquedo
e bibelô. A mim, a mim você não amou foi é nunca! Eu, essa que aqui
está e a quem você vê inteira e pela primeira vez como ela é, não, a mim
você não ama nem nunca amou...
5. Essa história ilustra bem como se dá a relação entre crentes que
nunca estudaram academicamente a Bíblia e a Bíblia. Casaram-se com ela.
Contaram-lhes historinhas leves, tranquilas: ela é uma santa, seu
passado não é pesado, não pode machucar. E eles, sem nunca terem
conhecido o que ela de fato foi e é, sentem que a amam...
6. Um dia, sentam-se em bancos de estudo acadêmico. É seu sétimo
aniversário de casamento. É o dia de a Bíblia lhes contar seu passado.
Quando começam a descobrir, arregalam os olhos. O sangue lhes ferve. Têm
ímpetos de esbofetear, de cuspir, de chutar. Fariam-no, se pudessem...
7. Nunca amaram a Bíblia, porque nunca a conheceram. O que tinham dela
era uma paródia doutrinária, construída em catecismos muito mau
montados, que não resistem a dez minutos de estudo sério. Não podiam
amar o que nunca conheceram e, então, amaram uma leitura, uma história,
uma interpretação. A Bíblia, mesmo, nunca amaram...
8. À medida que ela se lhes revela seu passado - montagens,
interpolações, manipulações, erros, conflitos, contradições, mitos,
contos, lendas, inverdades (tudo o que é humano diz respeito à Bíblia!)
-, eles sentem seu amor desaparecer. É a imagem que tinham dela que eles
amam - mas não ela mesma.
9. Sua situação será uma de duas: a) como o marido que nunca amou a
esposa, eles a abandonam, ou b) como o marido que finge que não ouve a
história, eles continuam a tratá-la como se não soubessem quem de fato
ela é. De qualquer forma, ela, a Bíblia, tal qual ela é, é negada,
recalcada: ou é jogada fora ou é fantasiada e falseada...
10. Se, de fato, amassem esse livro - e não amam, amam é sua
interpretação -, ouviriam com interesse, curiosidade, atenção, zelo,
buscariam informações, vasculhariam seu passado, para saberem exatamente
quem ela é e, independentemente de quem ela se revelasse, a amariam do
mesmo modo, a estudariam do mesmo modo.
11. Não há muita gente que ame esse livro.
12. Grande é, todavia, a multidão dos que enchem de lingerie sua imagem-esposa...
Fonte: Peroratio 2013/462
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