Aos 77 anos, Radha Burnier, presidente da Sociedade Teosófica, ainda hoje percorre o mundo impulsionando a busca espiritual de pessoas de várias religiões e filosofias. Nesta entrevista a PLANETA, ela fala, entre outras coisas, da importância da diversidade de idéias para quem procura a verdade.
Por Carlos Cardoso Aveline
Fotos: André Dusek
Radha Burnier é a sétima pessoa a ocupar a presidência internacional da Sociedade Teosófica, desde a sua fundação em 1875. Ela nasceu em 15 de novembro de 1923, na própria sede internacional da instituição – uma comunidade de trabalho e um local de retiro que hoje são também um refúgio ecológico no sul da Índia.
Do signo de Escorpião, com ascendente e também a Lua em Aquário, Radha não parece ter envelhecido mais de uma semana desde que a vi pela última vez, cinco anos atrás. Continua a percorrer o mundo, dando palestras e impulsionando a busca espiritual de pessoas de diversas religiões, filosofias e classes sociais, nos vários continentes. Aos 77 anos, seu olhar penetrante transmite uma extraordinária energia interior, que toca o íntimo das pessoas a quem fala e ajuda a dissolver os conflitos do mundo psicológico superficial.
Perguntada sobre os pensadores que mais influíram em sua formação, Radha cita autores antigos e modernos: entre eles estão Lao-tsé, Platão, Plotino, Ramana Maharshi, Annie Besant, Helena Blavatsky e Jiddu Krishnamurti. E também seu pai, N. Sri Ram, que foi um dos grandes teosofistas do século 20. Radha Burnier é presidente da Sociedade Teosófica desde 1980. Ela esteve no Brasil em setembro passado, quando foi lançado seu pequeno livro O Caminho do Autoconhecimento(1).
PLANETA – Qual a importância da diversidade de idéias para um grupo de buscadores da verdade?
Radha – Não é possível dar completa expressão à verdade através de conceitos ou palavras. Alcançar a verdade é ter uma percepção profunda da natureza essencial de uma parte da vida, ou da vida como um todo. A mente que olha uma questão é como uma câmera fotográfica. A câmera tira a foto de um ângulo; para obter uma perspectiva adequada, nós necessitamos olhar para ela de diversos pontos de vista. Quando há muitos pontos de vista diferentes, ainda não temos a verdade, mas estamos mais próximos dela. Penso que é por isso que devemos ter diversidade de pensamento. Sem ela, o ponto de vista estreito de umas poucas pessoas passa a ser visto como verdade.
PLANETA – Grande parte dos conflitos entre as pessoas ocorre por causa de opiniões...
Radha – As pessoas só brigam por opiniões quando fecham as portas da sua mente. Também há uma dificuldade de perceber a diferença entre uma opinião, que é resultado dos condicionamentos do cérebro, e uma percepção interior, um insight, que vem de um contato mais direto e íntimo com as coisas como elas são. Mas as diferenças de opinião são necessárias, porque a diversidade é parte do processo de manifestação do universo. Há uma riqueza enorme no fato de que as pessoas olham para tudo de várias maneiras e fazendo diferentes interpretações. A diversidade é uma manifestação da riqueza da existência. Mas em vez de considerá-la como uma maravilha e como um indício do conteúdo imensurável do universo, as pessoas estão condicionadas a ver os elementos diversos da vida como se fossem separados e estivessem em conflito. Esse condicionamento é um problema enorme. A diversidade pode ser uma fonte de inspiração. Ela é bonita – só não reconhecemos isso porque estamos condicionados a pensar que diferença significa conflito.
PLANETA – Há uma dualidade, às vezes trágica e às vezes cômica, na vida humana: de um lado, aquilo que é divino; de outro, o que é terreno e animal. Como melhorar, na prática, a qualidade dessa relação entre “eu superior” e “eu inferior”?
Radha – O que é chamado de “lado inferior do ser humano” é, na verdade, um reflexo, um espelho, do mais elevado. Se ocorrer um processo de refinamento, haverá uma harmonia natural entre cada elemento da alma imortal e o seu elemento correspondente da personalidade inferior. Assim, a purificação das emoções liberta a intuição espiritual (buddhi); os sentidos físicos, purificados, se unem ao espírito imortal (atma), e o que se chama normalmente de “mente inferior”, quando purificada, se une à mente superior. Quando as emoções são purificadas e o único desejo é o bem-estar do conjunto dos seres vivos, a vontade não empurra a mente para os níveis inferiores, mas facilita a união daquela mente inferior com a mente superior.
PLANETA – Um mestre de sabedoria escreveu que o constante reexame das nossas intenções e metas pessoais é um mecanismo fundamental para a evolução interior...
Radha – Certamente. O reexame das metas, e também do modo pelo qual nós buscamos essas metas, deve ser constante. Muitos não sabem qual é o propósito da vida. Na ausência dessa clareza, eles se agarram a qualquer coisa que possam obter através da possessividade, do desejo de poder ou dinheiro. São como crianças pequenas que pegam e puxam para si qualquer coisa, até o cabelo ou o nariz da mãe!
PLANETA – Como a senhora define a virtude do desapego?
Radha – É não estar envolvido psicologicamente com algo. O desapego permite olhar como uma testemunha para todas as coisas. A literatura oriental fala da “consciência da testemunha”, e isso é desapego.
PLANETA – Por que a sabedoria deve ser prática?
Radha – Você pode ter uma quantidade imensa de conhecimento científico, técnico, filosófico, religioso, etc. sem que ele altere seu comportamento ou a sua relação com os outros seres. Esse tipo de conhecimento não é sabedoria. A sabedoria é o conhecimento que produz relações harmoniosas; que nos desperta para o nosso próprio potencial. Ela nos torna conscientes de que em todos e em cada um há a possibilidade de crescer até a bondade e alcançar a iluminação. Assim, sabedoria é algo totalmente diferente do conhecimento comum. Os hindus antigos ensinavam que há dois tipos de conhecimento: o conhecimento menor, comum, e o conhecimento maior, da verdade sobre todas as coisas, que não está fragmentada. Do ponto de vista dela, você não pode falar da “verdade sobre a árvore”, da “verdade sobre Buda”, ou da verdade sobre outra coisa – esses são apenas aspectos da existência una. Alcançar a verdade é alcançar a compreensão dessa unidade, do Uno, como dizia Plotino. Se você olha a vida desse ponto de vista, tudo parece diferente, e você age de modo diferente, porque sabe que tudo é parte da unidade.
PLANETA – Para muitos, ioga é uma combinação de posturas físicas com exercícios de respiração. Mas, no livro O Caminho do Autoconhecimento: a senhora afirma que “ioga é altruísmo”...
Radha – Numa tradução do clássico hindu Bhagavad-Gita, Annie Besant usa a palavra ocidental correta para “ioga”. Esta é uma palavra difícil de traduzir. Tem sido traduzida como “integração”, etc., mas Besant usa a palavra “harmonia” – uma harmonia que abrange tudo, que é total. Há um motivo para usar esse termo, em vez de qualquer outro. Às vezes, a essência da ioga, que é descrita como o êxtase do samadhi, também é descrita como uma “completa ausência de dualidade”. A mente dualista, naturalmente, separa as coisas. Mas quando há completa não-dualidade, não há separatividade. Ioga certamente não é apenas fazer exercícios. Os exercícios podem ser uma pequena parte da preparação necessária. Depois de fazer os exercícios, sejam eles posturas ou exercícios de respiração, certas práticas éticas devem ser adotadas. Em função disso é que há uma série de práticas e abstenções, chamadas niyama e yama. Tudo isso deve levar a um estado de harmonia que é feito de altruísmo. Se estiver em harmonia com todas as coisas, você não destrói. Você age de modo que aumenta sempre o que é bom e belo.
PLANETA – Um dos pontos-chave de O Caminho do Autoconhecimento é a prática da auto-observação, ou seja, a observação do que ocorre internamente...
Radha – O autoconhecimento deve começar com a auto-observação. Os psicólogos sabem que medos profundos, frustrações e outros fatores psicológicos ocultos afetam o comportamento. Uma pessoa que está frustrada, por exemplo, tende a criar discórdia ao seu redor. Ela pode até não estar consciente disso e, depois de criar discórdia, culpar todos os outros pelo problema. Só pela auto-observação podemos perceber que a causa não está fora, mas dentro de nós. E, então, descobrimos que quase todos os nossos problemas têm sua origem profunda na nossa própria psique e não dependem das circunstâncias externas. Alguém pode estar igualmente frustrado em meio a riquezas ou à pobreza. Mas, se há uma real compreensão interior, não há frustração, e pode haver felicidade com muito pouco. Se quisermos resolver os problemas da sociedade humana, penso que a auto-observação é necessária, e é preciso fazê-la com firmeza, perseverança e honestidade. Então podemos confiar em nós mesmos, porque não atribuímos causas ao mundo externo: sabemos que todas as causas são internas, e alcançamos o autocontrole.
PLANETA – Em uma carta de um mestre de sabedoria há uma passagem afirmando que grande parte do sofrimento humano é causada por um exagero da função natural do sexo, hoje transformado em mercadoria...
Radha – Bem, a mente humana é capaz de aumentar enormemente impulsos que, nos estágios pré-humanos, eram necessários à sobrevivência. No estágio humano, dizem os sábios, os impulsos têm de ser contidos e mantidos dentro dos limites do estritamente necessário. O que quero dizer é o seguinte: há necessidade de alimento; nenhuma criatura pode sobreviver sem comida. Assim, a natureza incluiu a fome em seu sistema, de modo que as espécies continuem. Do mesmo modo, o impulso pelo intercurso sexual está incluído no sistema. A natureza põe um limite a isso nos estágios pré-humanos. Se você tem um gato, sabe que ele deixa de comer no momento em que sua fome está satisfeita. Ninguém consegue fazê-lo comer mais do que o necessário. Mas a mente humana diz: “A comida está deliciosa. Deixe-me provar mais um pedaço.” E a pessoa come o que não é necessário. Com o sexo ocorre a mesma coisa. O animal tem atividade sexual durante um período particular, tem filhotes, e então pára, até a próxima estação. Mas a mente humana continua pensando no sexo. Assim, o que é um instinto natural se torna luxúria. O exagero causa grande mal ao cérebro, e o indivíduo faz mal a muitas pessoas na tentativa de satisfazer a luxúria.
PLANETA – A teosofia não propõe um moralismo autoritário, portanto, mas levanta uma questão científica, de relação de causa e efeito?
Radha – Claro, de resultados práticos. Além disso, o que é um ser humano? Se não há capacidade de observar, de produzir ordem e controle dentro da sua mente, o ser humano se torna uma espécie de “animal degenerado”. Porque os instintos animais estão presentes, mas a restrição natural, que é colocada no animal pela natureza, não existe. Surge então um “animalismo” sem limites, e o ser humano perde um dos aspectos da sua condição humana. Colocar e aceitar limites é uma parte essencial do processo humano. Quando se perde isso, há grande infelicidade. O excesso sexual é semelhante a qualquer dependência ou vício, e talvez faça mais mal que outros vícios.
PLANETA – Por que os teosofistas têm necessidade de investigar a verdade por si mesmos? Isso não é uma perda de tempo e energia? Não bastaria que alguém mais evoluído nos dissesse em que devemos acreditar, ao invés de termos de descobrir tudo por nós próprios?
Radha – Uma coisa que o sentido comum nos ensina é que “a crença divide as pessoas”. Há guerras por causa de crenças. Crueldades imensas são perpetradas por causa de crenças. Os costumes e crenças supersticiosas restringem o crescimento do indivíduo. Se colocarmos um papagaio em uma gaiola, e o impedirmos de viver sua vida natural e de experimentar o céu, o espaço, etc., podemos estar confinando a alma do animal e impedindo-o de crescer na vida. Do mesmo modo, as crenças são extremamente nocivas. Elas separam as pessoas, criam conflitos, criam competição. A verdade nunca pode ser percebida através da crença. A verdade não é um conjunto de conceitos. Não pode ser colocada em palavras: é necessário experimentá-la. Por exemplo: seria possível conhecer a verdade sobre a paz por meio da crença? Não. Só quando nós próprios vivemos a paz é que podemos conhecer a verdade sobre ela.
PLANETA – O que a senhora pensa da reencarnação?
Radha – A questão da reencarnação tem sido bastante pesquisada nos últimos tempos. O pesquisador mais destacado nessa área foi Ian Stevenson, e foi reunida uma quantidade considerável de evidências a respeito. Mas, além disso, acredito na reencarnação porque creio que todo o movimento da vida avança no sentido de manifestar externamente a perfeição latente ou potencial, e isso não pode ocorrer em uma só encarnação. Se você acredita em uma só encarnação, está condenando milhões de seres humanos a uma completa confusão e muitos deles a uma estupidez eterna.
PLANETA – Mas, se há reencarnação, o que é, afinal, que reencarna? Não é o eu pessoal, ao contrário do que alguns pensam...
Radha – Existe uma individualidade que está além do eu pessoal. A literatura teosófica diz que a verdadeira individualidade está no mundo das causas. Essa individualidade se desenvolve gradualmente através de muitas encarnações. Através das experiências de uma determinada encarnação, algo de essencial se soma à consciência daquela individualidade. Depois de um tempo, surge nela o desejo de ter mais experiências e passar por outras colheitas. Assim, ela volta a encarnar. Poderíamos dizer que é o desejo de experiências que faz o indivíduo encarnar novamente. Mas o processo ocorre trazendo certas tendências, acumuladas em encarnações prévias, que nem sempre são agradáveis para quem faz a colheita.
PLANETA – A teosofista norte-americana Joy Mills disse que a renúncia, considerada indispensável no caminho espiritual, “é como desistir do excesso de bagagem”, bagagem mental, emocional...
Radha – Para mim, o grande desafio é renunciar ao egoísmo, o que tem uma relação com a questão do excesso de bagagem. Mas, mesmo depois que a bagagem mental foi abandonada, o sentido básico de “eu” permanece. Isso também tem de ser deixado de lado, na chamada “grande renúncia do eu”: o abandono da própria noção de que existimos como entidades separadas do resto.
PLANETA – A senhora acredita que é possível, ao mesmo tempo, ter auto-estima e ser altruísta?
Radha – Eu não usaria a palavra auto-estima, embora saiba que os psicólogos usam termos semelhantes. Eu diria que o importante é reconhecer a existência de algo que é imensamente valioso, na parte mais profunda do nosso próprio ser, assim como no interior de tudo o que há.
PLANETA – Então, quando estivermos prontos para isso, poderemos reconhecer que somos fundamentalmente sagrados, e secundariamente imperfeitos.
Radha – Os hindus antigos contavam aquela história sobre um príncipe que pensava que era um mendigo. Se você pensa que é um mendigo, se comporta da maneira correspondente. Mas, se reconhecer que é uma pessoa de linhagem real, você se comporta com dignidade. Essa imagem, como todas as analogias, tem suas limitações, mas pode ser útil.
PLANETA – Era uma vez atma, a consciência suprema. Porém um dia ela acordou pensando que fosse kama-manas, a mente inferior, e não foi nada fácil redescobrir sua natureza divina…
Radha – Sim, algo semelhante.
PLANETA – Qual é, em duas ou três frases, a essência da sabedoria teosófica?
Radha – Penso que é a fraternidade universal, associada à liberdade de busca. Os dois fatores, combinados, fazem parte da essência. Um, sem o outro, é insuficiente.
Nota
(1) O Caminho do Autoconhecimento, de Radha Burnier (formato de bolso), Editora Teosófica, Brasília, 2000, 123 pp. Pedidos pelo telefone 0800-61.00.20. Radha Burnier tem também outros livros traduzidos para o português, inclusive A Regeneração Humana (Ed. Teosófica, 1992, 172 pp.).
Fonte: Revista PLANETA Ed.339
Por Carlos Cardoso Aveline
Fotos: André Dusek
Radha Burnier é a sétima pessoa a ocupar a presidência internacional da Sociedade Teosófica, desde a sua fundação em 1875. Ela nasceu em 15 de novembro de 1923, na própria sede internacional da instituição – uma comunidade de trabalho e um local de retiro que hoje são também um refúgio ecológico no sul da Índia.
Do signo de Escorpião, com ascendente e também a Lua em Aquário, Radha não parece ter envelhecido mais de uma semana desde que a vi pela última vez, cinco anos atrás. Continua a percorrer o mundo, dando palestras e impulsionando a busca espiritual de pessoas de diversas religiões, filosofias e classes sociais, nos vários continentes. Aos 77 anos, seu olhar penetrante transmite uma extraordinária energia interior, que toca o íntimo das pessoas a quem fala e ajuda a dissolver os conflitos do mundo psicológico superficial.
Perguntada sobre os pensadores que mais influíram em sua formação, Radha cita autores antigos e modernos: entre eles estão Lao-tsé, Platão, Plotino, Ramana Maharshi, Annie Besant, Helena Blavatsky e Jiddu Krishnamurti. E também seu pai, N. Sri Ram, que foi um dos grandes teosofistas do século 20. Radha Burnier é presidente da Sociedade Teosófica desde 1980. Ela esteve no Brasil em setembro passado, quando foi lançado seu pequeno livro O Caminho do Autoconhecimento(1).
PLANETA – Qual a importância da diversidade de idéias para um grupo de buscadores da verdade?
Radha – Não é possível dar completa expressão à verdade através de conceitos ou palavras. Alcançar a verdade é ter uma percepção profunda da natureza essencial de uma parte da vida, ou da vida como um todo. A mente que olha uma questão é como uma câmera fotográfica. A câmera tira a foto de um ângulo; para obter uma perspectiva adequada, nós necessitamos olhar para ela de diversos pontos de vista. Quando há muitos pontos de vista diferentes, ainda não temos a verdade, mas estamos mais próximos dela. Penso que é por isso que devemos ter diversidade de pensamento. Sem ela, o ponto de vista estreito de umas poucas pessoas passa a ser visto como verdade.
PLANETA – Grande parte dos conflitos entre as pessoas ocorre por causa de opiniões...
Radha – As pessoas só brigam por opiniões quando fecham as portas da sua mente. Também há uma dificuldade de perceber a diferença entre uma opinião, que é resultado dos condicionamentos do cérebro, e uma percepção interior, um insight, que vem de um contato mais direto e íntimo com as coisas como elas são. Mas as diferenças de opinião são necessárias, porque a diversidade é parte do processo de manifestação do universo. Há uma riqueza enorme no fato de que as pessoas olham para tudo de várias maneiras e fazendo diferentes interpretações. A diversidade é uma manifestação da riqueza da existência. Mas em vez de considerá-la como uma maravilha e como um indício do conteúdo imensurável do universo, as pessoas estão condicionadas a ver os elementos diversos da vida como se fossem separados e estivessem em conflito. Esse condicionamento é um problema enorme. A diversidade pode ser uma fonte de inspiração. Ela é bonita – só não reconhecemos isso porque estamos condicionados a pensar que diferença significa conflito.
PLANETA – Há uma dualidade, às vezes trágica e às vezes cômica, na vida humana: de um lado, aquilo que é divino; de outro, o que é terreno e animal. Como melhorar, na prática, a qualidade dessa relação entre “eu superior” e “eu inferior”?
Radha – O que é chamado de “lado inferior do ser humano” é, na verdade, um reflexo, um espelho, do mais elevado. Se ocorrer um processo de refinamento, haverá uma harmonia natural entre cada elemento da alma imortal e o seu elemento correspondente da personalidade inferior. Assim, a purificação das emoções liberta a intuição espiritual (buddhi); os sentidos físicos, purificados, se unem ao espírito imortal (atma), e o que se chama normalmente de “mente inferior”, quando purificada, se une à mente superior. Quando as emoções são purificadas e o único desejo é o bem-estar do conjunto dos seres vivos, a vontade não empurra a mente para os níveis inferiores, mas facilita a união daquela mente inferior com a mente superior.
PLANETA – Um mestre de sabedoria escreveu que o constante reexame das nossas intenções e metas pessoais é um mecanismo fundamental para a evolução interior...
Radha – Certamente. O reexame das metas, e também do modo pelo qual nós buscamos essas metas, deve ser constante. Muitos não sabem qual é o propósito da vida. Na ausência dessa clareza, eles se agarram a qualquer coisa que possam obter através da possessividade, do desejo de poder ou dinheiro. São como crianças pequenas que pegam e puxam para si qualquer coisa, até o cabelo ou o nariz da mãe!
PLANETA – Como a senhora define a virtude do desapego?
Radha – É não estar envolvido psicologicamente com algo. O desapego permite olhar como uma testemunha para todas as coisas. A literatura oriental fala da “consciência da testemunha”, e isso é desapego.
PLANETA – Por que a sabedoria deve ser prática?
Radha – Você pode ter uma quantidade imensa de conhecimento científico, técnico, filosófico, religioso, etc. sem que ele altere seu comportamento ou a sua relação com os outros seres. Esse tipo de conhecimento não é sabedoria. A sabedoria é o conhecimento que produz relações harmoniosas; que nos desperta para o nosso próprio potencial. Ela nos torna conscientes de que em todos e em cada um há a possibilidade de crescer até a bondade e alcançar a iluminação. Assim, sabedoria é algo totalmente diferente do conhecimento comum. Os hindus antigos ensinavam que há dois tipos de conhecimento: o conhecimento menor, comum, e o conhecimento maior, da verdade sobre todas as coisas, que não está fragmentada. Do ponto de vista dela, você não pode falar da “verdade sobre a árvore”, da “verdade sobre Buda”, ou da verdade sobre outra coisa – esses são apenas aspectos da existência una. Alcançar a verdade é alcançar a compreensão dessa unidade, do Uno, como dizia Plotino. Se você olha a vida desse ponto de vista, tudo parece diferente, e você age de modo diferente, porque sabe que tudo é parte da unidade.
PLANETA – Para muitos, ioga é uma combinação de posturas físicas com exercícios de respiração. Mas, no livro O Caminho do Autoconhecimento: a senhora afirma que “ioga é altruísmo”...
Radha – Numa tradução do clássico hindu Bhagavad-Gita, Annie Besant usa a palavra ocidental correta para “ioga”. Esta é uma palavra difícil de traduzir. Tem sido traduzida como “integração”, etc., mas Besant usa a palavra “harmonia” – uma harmonia que abrange tudo, que é total. Há um motivo para usar esse termo, em vez de qualquer outro. Às vezes, a essência da ioga, que é descrita como o êxtase do samadhi, também é descrita como uma “completa ausência de dualidade”. A mente dualista, naturalmente, separa as coisas. Mas quando há completa não-dualidade, não há separatividade. Ioga certamente não é apenas fazer exercícios. Os exercícios podem ser uma pequena parte da preparação necessária. Depois de fazer os exercícios, sejam eles posturas ou exercícios de respiração, certas práticas éticas devem ser adotadas. Em função disso é que há uma série de práticas e abstenções, chamadas niyama e yama. Tudo isso deve levar a um estado de harmonia que é feito de altruísmo. Se estiver em harmonia com todas as coisas, você não destrói. Você age de modo que aumenta sempre o que é bom e belo.
PLANETA – Um dos pontos-chave de O Caminho do Autoconhecimento é a prática da auto-observação, ou seja, a observação do que ocorre internamente...
Radha – O autoconhecimento deve começar com a auto-observação. Os psicólogos sabem que medos profundos, frustrações e outros fatores psicológicos ocultos afetam o comportamento. Uma pessoa que está frustrada, por exemplo, tende a criar discórdia ao seu redor. Ela pode até não estar consciente disso e, depois de criar discórdia, culpar todos os outros pelo problema. Só pela auto-observação podemos perceber que a causa não está fora, mas dentro de nós. E, então, descobrimos que quase todos os nossos problemas têm sua origem profunda na nossa própria psique e não dependem das circunstâncias externas. Alguém pode estar igualmente frustrado em meio a riquezas ou à pobreza. Mas, se há uma real compreensão interior, não há frustração, e pode haver felicidade com muito pouco. Se quisermos resolver os problemas da sociedade humana, penso que a auto-observação é necessária, e é preciso fazê-la com firmeza, perseverança e honestidade. Então podemos confiar em nós mesmos, porque não atribuímos causas ao mundo externo: sabemos que todas as causas são internas, e alcançamos o autocontrole.
PLANETA – Em uma carta de um mestre de sabedoria há uma passagem afirmando que grande parte do sofrimento humano é causada por um exagero da função natural do sexo, hoje transformado em mercadoria...
Radha – Bem, a mente humana é capaz de aumentar enormemente impulsos que, nos estágios pré-humanos, eram necessários à sobrevivência. No estágio humano, dizem os sábios, os impulsos têm de ser contidos e mantidos dentro dos limites do estritamente necessário. O que quero dizer é o seguinte: há necessidade de alimento; nenhuma criatura pode sobreviver sem comida. Assim, a natureza incluiu a fome em seu sistema, de modo que as espécies continuem. Do mesmo modo, o impulso pelo intercurso sexual está incluído no sistema. A natureza põe um limite a isso nos estágios pré-humanos. Se você tem um gato, sabe que ele deixa de comer no momento em que sua fome está satisfeita. Ninguém consegue fazê-lo comer mais do que o necessário. Mas a mente humana diz: “A comida está deliciosa. Deixe-me provar mais um pedaço.” E a pessoa come o que não é necessário. Com o sexo ocorre a mesma coisa. O animal tem atividade sexual durante um período particular, tem filhotes, e então pára, até a próxima estação. Mas a mente humana continua pensando no sexo. Assim, o que é um instinto natural se torna luxúria. O exagero causa grande mal ao cérebro, e o indivíduo faz mal a muitas pessoas na tentativa de satisfazer a luxúria.
PLANETA – A teosofia não propõe um moralismo autoritário, portanto, mas levanta uma questão científica, de relação de causa e efeito?
Radha – Claro, de resultados práticos. Além disso, o que é um ser humano? Se não há capacidade de observar, de produzir ordem e controle dentro da sua mente, o ser humano se torna uma espécie de “animal degenerado”. Porque os instintos animais estão presentes, mas a restrição natural, que é colocada no animal pela natureza, não existe. Surge então um “animalismo” sem limites, e o ser humano perde um dos aspectos da sua condição humana. Colocar e aceitar limites é uma parte essencial do processo humano. Quando se perde isso, há grande infelicidade. O excesso sexual é semelhante a qualquer dependência ou vício, e talvez faça mais mal que outros vícios.
PLANETA – Por que os teosofistas têm necessidade de investigar a verdade por si mesmos? Isso não é uma perda de tempo e energia? Não bastaria que alguém mais evoluído nos dissesse em que devemos acreditar, ao invés de termos de descobrir tudo por nós próprios?
Radha – Uma coisa que o sentido comum nos ensina é que “a crença divide as pessoas”. Há guerras por causa de crenças. Crueldades imensas são perpetradas por causa de crenças. Os costumes e crenças supersticiosas restringem o crescimento do indivíduo. Se colocarmos um papagaio em uma gaiola, e o impedirmos de viver sua vida natural e de experimentar o céu, o espaço, etc., podemos estar confinando a alma do animal e impedindo-o de crescer na vida. Do mesmo modo, as crenças são extremamente nocivas. Elas separam as pessoas, criam conflitos, criam competição. A verdade nunca pode ser percebida através da crença. A verdade não é um conjunto de conceitos. Não pode ser colocada em palavras: é necessário experimentá-la. Por exemplo: seria possível conhecer a verdade sobre a paz por meio da crença? Não. Só quando nós próprios vivemos a paz é que podemos conhecer a verdade sobre ela.
PLANETA – O que a senhora pensa da reencarnação?
Radha – A questão da reencarnação tem sido bastante pesquisada nos últimos tempos. O pesquisador mais destacado nessa área foi Ian Stevenson, e foi reunida uma quantidade considerável de evidências a respeito. Mas, além disso, acredito na reencarnação porque creio que todo o movimento da vida avança no sentido de manifestar externamente a perfeição latente ou potencial, e isso não pode ocorrer em uma só encarnação. Se você acredita em uma só encarnação, está condenando milhões de seres humanos a uma completa confusão e muitos deles a uma estupidez eterna.
PLANETA – Mas, se há reencarnação, o que é, afinal, que reencarna? Não é o eu pessoal, ao contrário do que alguns pensam...
Radha – Existe uma individualidade que está além do eu pessoal. A literatura teosófica diz que a verdadeira individualidade está no mundo das causas. Essa individualidade se desenvolve gradualmente através de muitas encarnações. Através das experiências de uma determinada encarnação, algo de essencial se soma à consciência daquela individualidade. Depois de um tempo, surge nela o desejo de ter mais experiências e passar por outras colheitas. Assim, ela volta a encarnar. Poderíamos dizer que é o desejo de experiências que faz o indivíduo encarnar novamente. Mas o processo ocorre trazendo certas tendências, acumuladas em encarnações prévias, que nem sempre são agradáveis para quem faz a colheita.
PLANETA – A teosofista norte-americana Joy Mills disse que a renúncia, considerada indispensável no caminho espiritual, “é como desistir do excesso de bagagem”, bagagem mental, emocional...
Radha – Para mim, o grande desafio é renunciar ao egoísmo, o que tem uma relação com a questão do excesso de bagagem. Mas, mesmo depois que a bagagem mental foi abandonada, o sentido básico de “eu” permanece. Isso também tem de ser deixado de lado, na chamada “grande renúncia do eu”: o abandono da própria noção de que existimos como entidades separadas do resto.
PLANETA – A senhora acredita que é possível, ao mesmo tempo, ter auto-estima e ser altruísta?
Radha – Eu não usaria a palavra auto-estima, embora saiba que os psicólogos usam termos semelhantes. Eu diria que o importante é reconhecer a existência de algo que é imensamente valioso, na parte mais profunda do nosso próprio ser, assim como no interior de tudo o que há.
PLANETA – Então, quando estivermos prontos para isso, poderemos reconhecer que somos fundamentalmente sagrados, e secundariamente imperfeitos.
Radha – Os hindus antigos contavam aquela história sobre um príncipe que pensava que era um mendigo. Se você pensa que é um mendigo, se comporta da maneira correspondente. Mas, se reconhecer que é uma pessoa de linhagem real, você se comporta com dignidade. Essa imagem, como todas as analogias, tem suas limitações, mas pode ser útil.
PLANETA – Era uma vez atma, a consciência suprema. Porém um dia ela acordou pensando que fosse kama-manas, a mente inferior, e não foi nada fácil redescobrir sua natureza divina…
Radha – Sim, algo semelhante.
PLANETA – Qual é, em duas ou três frases, a essência da sabedoria teosófica?
Radha – Penso que é a fraternidade universal, associada à liberdade de busca. Os dois fatores, combinados, fazem parte da essência. Um, sem o outro, é insuficiente.
Nota
(1) O Caminho do Autoconhecimento, de Radha Burnier (formato de bolso), Editora Teosófica, Brasília, 2000, 123 pp. Pedidos pelo telefone 0800-61.00.20. Radha Burnier tem também outros livros traduzidos para o português, inclusive A Regeneração Humana (Ed. Teosófica, 1992, 172 pp.).
Fonte: Revista PLANETA Ed.339
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