domingo, 17 de maio de 2009

A herança escolástica do protestantismo

"A Reforma é considerada, por vezes, como um movimento progressista. Não resta dúvida de que de início o foi, pois começou como humanismo. Contudo, nos anos de luta, de guerra ideológica, o humanismo foi logo esmagado. Os grandes doutores da Reforma, assim como os da Contra-Reforma, e seus numerosos lacaios clericais, eram essencialmente conservadores, e da tradição medieval conservavam muito mais do que estariam dispostos a admitir. Podiam rejeitar a supremacia romana e remontar, para a montagem do sistema de sua Igreja, à organização rudimentar da idade apostólica. Podiam suprimir as incrustações de doutrina, o monasticismo, as "devoluções mecânicas", a astúcia clerical da "corrompida" Igreja medieval. Mas estas rejeições eram superficiais. Sob sua disciplina e doutrina religiosa "purificadas", os reformadores conservaram toda a infra-estrutura filosófica do catolicismo escolástico. Não houve nenhuma física protestante nova, nenhuma visão exclusivamente protestante da Natureza. Em cada esfera do pensamento, o calvinismo e o luteranismo, assim como o catolicismo da Contra-Reforma, marcaram um recuo, uma obstinada defesa de posições fixas. E sendo a demonologia, tal como foi desenvolvida pelos inquisitores, uma extensão da cosmologia pseudo-aristotélica, foi defendida não menos obstinadamente. Lutero talvez não citasse o Malleus; Calvino talvez não assumisse uma dívida para com os escolásticos; mas a dívida era clara, e seus sucessores a reconheceriam. A demonologia, como a ciência da qual fazia parte, constituía uma herança comum que não podia ser negada por tais reformadores conservadores. Situava-se num plano mais profundo que as disputas superficiais acerca de práticas religiosas e da mediação do sacerdote. (...)"

Fonte: TREVOR-ROPER, H. R. "A fobia às bruxas na Europa". In: Religião e Sociedade, V. 12/2. Rio de Janeiro: ISER/CER, out. 1985. p.60.