domingo, 22 de maio de 2011

O despertar da consciência e a transcendência histórica

Por Mircea Eliade

De tanto ouvir dizer (...) que tudo o que o homem das sociedades arcaicas pensou, imaginou ou desejou, todos os seus mitos e ritos, todos os seus deuses e experiências religiosas não passavam de um monstruoso acúmulo de insanidades, crueldades e superstições felizmente abolidas pelo progresso racional do homem, de tanto ouvir quase sempre a mesma coisa, o público acabou por convencer-se disso e desinteressou-se do estudo objetivo da história das religiões. Pelo menos uma parte desse público tenta satisfazer sua legítima curiosidade lendo obras de má qualidade sobre os mistérios das Pirâmides, os milagres da Ioga, as "revelações primordiais", ou sobre Atlântida - enfim, ela se interessa pela pavorosa literatura dos diletantes, dos neo-espiritualistas ou dos pseudo-ocultistas.

De certa maneira, os responsáveis por isso encontram-se entre nós, historiadores das religiões. Quisemos a todo custo apresentar uma história objetiva das religiões, sem perceber que o que chamávamos objetividade seguia as modas do pensamento do nosso século. (...) Como se o estudo histórico de um rito ou de um mito fosse exatamente a mesma coisa que a história de certo país ou a monografia de certo povo primitivo. Em suma, negligenciamos um fato essencial: na expressão "história das religiões", a ênfase deve ser dada à palavra religião, e não à história. Pois, se existem várias maneiras de se praticar a história - desde a história das técnicas até a história do pensamento humano -, só existe uma maneira de se abordar a religião: atentar para os fatos religiosos. (...)

Sei muito bem que estamos lidando com fenômenos religiosos e que, pelo simples fato de serem fenômenos, ou seja, de se manifestarem, de se revelarem a nós, são cunhados como uma medalha pelo momento histórico que os viu nascer. Não existe fato religioso "puro", fora da história, fora do tempo. A mais nobre mensagem religiosa, a mais universal experiência mística, o mais comum dos comportamentos humanos - como por exemplo o temor religioso, o rito, a prece - singularizam-se e delimitam-se à medida que se manifestam. Quando o Filho de Deus se encarnou e se tornou o Cristo, teve de falar o aramaico; ele só podia se comportar como um hebreu do seu tempo - e não como um iogue, um taoísta ou um xamã. Sua mensagem religiosa, por mais universal que fosse, estava condicionada pela história passada e contemporânea do povo hebreu. Se o Filho de Deus tivesse nascido na Índia, sua mensagem oral teria sido obrigada a conformar-se à estrutura das línguas indianas, à tradição histórica e pré-histórica daquele conglomerado de povos.

(...) Todos concordam que um fato espiritual, sendo um fato humano, é necessariamente condicionado por tudo aquilo que concorre para compor um homem, desde a anatomia e a fisiologia até a linguagem. Em outros termos, um fato espiritual pressupõe o ser humano integral, ou seja, a entidade fisiológica, o homem social, o homem econômico, e assim por diante. Todavia, todos esses condicionamentos não conseguem esgotar, por si sós, a vida espiritual.

(...) O homem integral conhece outras situações além da sua condição histórica. Conhece, por exemplo, o estado de sonho, ou de devaneio, ou o da melancolia ou do despreendimento, ou da contemplação estética, ou da evasão etc. - e todos esses estados não são "históricos", embora sejam, para a existência humana, tão autênticos e importantes quanto a sua situação histórica. Aliás, o homem conhece vários ritmos temporais, e não somente o tempo histórico. Basta ele escutar uma bela música, ou apaixonar-se, ou rezar, para sair do presente histórico e reintegrar o presente eterno do amor e da religião. Basta ele abrir um romance ou assistir a um espetáculo dramático para encontrar um outro ritmo temporal - o que poderíamos chamar tempo adquirido - que, em todo o caso, não é o tempo histórico. Concluiu-se depressa demais que a autenticidade de uma existência depende unicamente da consciência de sua própria historicidade. Essa consciência histórica tem um papel bem modesto na consciência humana, sem falar das zonas do inconsciente que pertencem também ao ser humano integral. Quanto mais uma consciência estiver desperta, mais ela ultrapassará sua própria historicidade.

Fonte: ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos - Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp.24-29.

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