quinta-feira, 28 de novembro de 2013

“Preconceito contra Bolsa Família é fruto da imensa cultura do desprezo”, diz pesquisadora.

Por Roldão Arruda e Isadora Peron, repórteres do Estadão.

O Programa Bolsa Família fez 10 anos no domingo, dia 20(/10/2013). Quando foi lançado, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, atendia 3,6 milhões de famílias, com cerca de R$ 74 mensais, em média. Hoje se estende a 13,8 milhões de famílias e o valor médio do benefício é de R$ 152. No conjunto, beneficia cerca de 50 milhões de brasileiros e é considerado barato por especialistas: custa menos de 0,5% do PIB.

Para avaliar os impactos desse programa a socióloga Walquiria Leão Rego e o filósofo italiano Alessandro Pinzani realizaram um exaustivo trabalho de pesquisa, que se estendeu de 2006 a 2011. Ouviram mais de 150 mulheres beneficiadas pelo programa, localizadas em lugares remotos e frequentemente esquecidos, como o Vale do Jequitinhonha, no interior de Minas.

O resultado da pesquisa está no livro Vozes do Bolsa Família, lançado há pouco. Segundo as conclusões de seus autores, o incômodo e as manifestações contrárias que o programa desperta em alguns setores não têm razões objetivas. Seria resultado do preconceito e de uma cultura de desprezo pelos mais pobres.
Os pesquisadores também rebatem a ideia de que o benefício acomoda as pessoas. “O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida como qualquer pessoa”, diz Walquiria, que é professora de Teoria da Cidadania na Unicamp.

Na entrevista abaixo – concedida à repórter Isadora Peron – ela fala desta e de outras conclusões do trabalho.

Como surgiu a ideia da pesquisa?

Quando vimos a dimensão que o programa estava tomando, atendendo milhões de famílias, percebemos que teria impacto na sociedade. Nosso objetivo foi avaliar esse impacto. Uma vez que o programa determina que a titularidade do benefício cabe às mulheres, era preciso conhecê-las. Então resolvemos ouvir mulheres muito pobres, que continuam muito pobres, em regiões tradicionalmente desassistidas pelo Estado, como o Vale do Jequitinhonha, o interior do Maranhão, do Piauí…

E quais foram os impactos que perceberam?

Toda a sociologia do dinheiro mostra que sempre houve muita resistência, inclusive das associações de caridade, em dar dinheiro aos pobres. É mais ou menos aquele discurso: “Eles não sabem gastar, vão comprar bobagem.” Então é melhor que nós, os esclarecidos, façamos uma cesta básica, onde vamos colocar a quantidade certa de proteínas, de carboidratos… Essa resistência em dar dinheiro ao pobres acontecia porque as autoridades intuíam que o dinheiro proporcionaria uma experiência de maior liberdade pessoal. Nós pudemos constatar na prática, a partir das falas das mulheres. Uma ou duas delas até usaram a palavra liberdade. “Eu acho que o Bolsa Família me deu mais liberdade”, disseram. E isso é tão óbvio. Quando você dá uma cesta básica, ou um vale, como gostavam de fazer as instituições de caridade do século 19, você está determinando o que as pessoas vão comer. Não dá chance de pessoas experimentarem coisas. Nenhuma autonomia.

Está dizendo que essas pessoas ganharam liberdade?

Estamos tratando de pessoas muito pobres, muito destituídas, secularmente abandonadas pelo Estado. Quando falamos em mais autonomia, liberdade, independência, estamos nos referindo à situação anterior delas, que era de passar fome. O que significa dizer de uma pessoa que está na linha extrema de pobreza e que continua pobre ganhou mais liberdade? Significa que ganhou espaços maiores de liberdade ao receber o benefício em dinheiro. É muito forte dizer que ganhou independência financeira. Independência financeira temos nós – e olhe lá.

O que essa liberdade significou na prática, no cotidiano das pessoas?

Proporcionou a possibilidade de escolher. Essa gente não conhecia essa experiência. Escolher é um dos fundamentos de qualquer sociedade democrática. Que escolhas elas fazem? Elas descobriram, por exemplo, que podem substituir arroz por macarrão. No Nordeste, em 2006 e 2007, estava na moda o macarrão de pacote. Antes, havia macarrão vendido avulso. O empacotamento dava um outro caráter para o macarrão. Mais valor. Elas puderam experimentar outros sabores, descobriram a salsicha, o iogurte. E aprenderam a fazer cálculos. Uma delas me disse: “Ixe, no começo, gastei tudo na primeira semana”. Depois aprendeu que não podia gastar tudo de uma vez.

A que atribui a resistência de determinados setores da sociedade ao pagamento do benefício?

O Bolsa Família é um programa barato, mas como incomoda a classe média (ela ri). Esse incômodo vem do preconceito.

Fala-se que acomoda os pobres.

Como acomoda? O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida, como qualquer pessoa. Quem diz isso falsifica a história. Não há acomodação alguma. Os maridos dessas mulheres normalmente estavam desempregados. Ao perguntar a um deles quando tinha sido a última vez que tinha trabalhado, ele respondeu: “Faz uns dois meses, eu colhi feijão”. Perguntei quanto ele ganhava colhendo feijão. Disse que dependia, que às vezes ganhava 20, 15, 10 reais. Fizemos as contas e vimos que ganhava menos num mês do que o Bolsa Família pagava. Por que ele tem que se sujeitar a isso, praticamente à semiescravidão? Esses estereótipos tem que ser desfeitos no Brasil, para que se tenha uma sociedade mais solidária, mais democrática. É preciso desfazer essa imensa cultura do desprezo.

No livro a senhora diz que essas mulheres veem o benefício como um favor do governo.

Sim, de 70% a 80% ainda veem o Bolsa Família como um favor. Encontramos poucas mulheres que achavam que é um direito. Isso se explica porque temos uma jovem democracia. A cultura dos direitos chegou muito tarde ao Brasil. Imagino que daqui para a frente a ideia de que elas têm direito vai ser mais reforçada. Para isso precisamos, porém, de políticas públicas específicas. Seriam um segundo, um terceiro passo… Os desafios a partir de agora são muito grandes.

Qual é a sua avaliação geral do programa?

Acho que o Bolsa Família foi uma das coisas mais importantes que aconteceram no Brasil nos últimos anos. Tornou visíveis cerca de 50 milhões de pessoas, tornou-os mais cidadãos. Essa talvez seja a maior conquista.

Entre as mulheres que ouviu, alguma foi mais marcante para a senhora?

Uma das mais marcantes foi uma jovem no sertão do Piauí. Ela me disse: “Essa foi a primeira vez que a minha pessoa foi enxergada”. Tinha uma outra, do Vale do Jequitinhonha, que morava num casebre, sozinha com três filhos. Quando começou a contar a história dela, perguntei qual era a sua idade, porque parecia que já tinha vivido muita coisa. Ela respondeu: “29 anos”. E eu: “Mas só 29?” Ela: “Mas, dona, a minha vida é comprida, muito comprida.” Percebi que falar que “a minha vida é muito comprida” é quase sinônimo de “é muito sofrida”.

Fonte: Estadão

terça-feira, 26 de novembro de 2013

'Pedagogia do terror': testemunho de um ex-preso político da democracia

Por André Antunes e Cátia Guimarães, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Entrevista com Paulo Roberto de Abreu Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz.

Ele foi um dos presos políticos da atual democracia brasileira. Participando de uma manifestação organizada pelos professores municipais e estaduais do Rio de Janeiro, que estavam em greve, Paulo Roberto de Abreu Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz, foi detido junto com dezenas de outras pessoas no dia 15 de outubro. Acusado sem provas e sem direito à informação ou à presença de advogados, foi encaminhado para a delegacia e, na sequência, para dois presídios, incluindo Bangu 9. Segundo ele, circulou pelos “porões da democracia brasileira”. Desde o início de junho, Paulo Bruno vinha filmando as manifestações que tomaram as ruas do Rio de Janeiro como parte do seu trabalho de pesquisa. Levou algum tempo para que conseguisse falar sobre o assunto, mas nesta entrevista ele narra as humilhações e violências sofridas pelos presos políticos, descreve a rotina de violação de direitos do sistema carcerário brasileiro, destaca a solidariedade dos presos comuns e chama a atenção para a fragilidade das lutas políticas diante do terror que o Estado, representado no caso pelo governo estadual, pode provocar. Como, na prisão, não tiveram acesso sequer a papel e caneta, os registros que se seguem ficaram registrados, até então, apenas na memória do entrevistado.

Você está sendo acusado de quais crimes?

Dano ao patrimônio, roubo, incêndio e organização criminosa. Eu fui preso por volta de 22h30 do dia 15/11 e, no entanto, no documento que assinei no IML constava como se eu tivesse quebrado alguma coisa, por volta das 18h nas proximidades da rua Evaristo da Veiga. Não há nada quebrado lá. Além disso, nesse horário estava a caminho da Avenida Presidente Vargas, depois de embarcar num trem do metrô na estação de Del Castilho, acompanhado de duas pessoas com as quais trabalho.

Vocês sabiam que estavam sendo presos, para onde estavam indo e por que?

Não. Estava na escadaria da Câmara dos Vereadores e o policial só me puxou. Eu tropecei na alça da mochila e minhas moedas se espalharam. Reclamei disso e, autorizado a recolhê-las, pude me recompor. No ônibus, outro policial mais novo, com pouco menos de 30 anos talvez, ficou perto da porta e mandou entrar. Nisso foram entrando pessoas. Na Evaristo da Veiga, próximo à avenida Rio Branco, alguns manifestantes ainda tentaram impedir que o ônibus saísse e os policiais que estavam em frente ao Municipal jogaram bomba de efeito moral para dispersá-los. O ônibus foi embora com uma escolta, vinham dois de moto — de negro também, acho que eram do choque —, com a arma apontada para a gente, dizendo para fechar a janela, xingando. Tentamos abrir a janela e um deles dizia: ‘fecha a janela senão jogo gás de pimenta em vocês’. Aí fechamos a janela. Até então o pessoal estava revoltado, ninguém tinha noção do que iria acontecer. Eu falava para ter calma, era o mais velho. A gente tinha que estar sempre calado e em nenhum momento falaram para onde iríamos. Na delegacia, permanecemos a maior parte do tempo no ônibus. Ficamos lá de molho até 12h30 do outro dia. Soubemos que duas pessoas que estavam na 25ª, se não me engano, ficaram em condições bem piores, num lugar alagado, com um banheiro. No nosso caso, ficamos em lugares da delegacia sentados ou de pé e depois retornamos para o ônibus. Recebemos orientação dos advogados que chegaram à 37ª DP algum tempo depois de só depormos em juízo. Passamos uma procuração para os advogados do DDH [Instituto de Defesa dos Direitos Humanos] e não depusemos. 

Como foi a transferência para o presídio?

Pouco antes de 12h30 os carros começaram a se movimentar, vimos chegar aquele furgão usado pelo batalhão de choque, começaram a deslocar os carros em frente à delegacia, a gente previu que fosse acontecer alguma coisa. Imaginamos que iríamos ser transferidos, mas não sabíamos para onde porque não falaram. Alguns PMs começaram a ser mais irônicos e mais agressivos com palavras. Quando alguém pedia alguma coisa, respondiam de forma irônica. Sempre de forma intimidatória. Até que meio dia e pouco — imagino que nesse horário porque também não tínhamos relógio —, colocaram a gente na traseira desse furgão, que era dividido no meio, com dois bancos laterais. Ia uma pessoa em pé e outra sentada, algemadas. Eu não tinha noção de que algema era objeto de tortura, para mim, era só para segurar a mão do preso. Mas conforme você vai mexendo, ela vai apertando. Então, assim que o carro saiu, a algema encaixou no osso do meu pulso, causando uma sensação muito ruim, eu tentei mexer e percebi que ela apertou. Fomos para o IML [Instituto Médico Legal]. Nessa hora eu já não aguentava mais, pedi para tirarem e acabaram abrindo [a algema] lá. Mas isso nem contou lá no exame de corpo delito porque é uma coisa muito rápida, os caras não querem muita conversa. O tratamento que a gente recebeu em todo momento, a não ser em poucas ocasiões no interior da 37ª DP, era como se fôssemos criminosos. Dali saímos também sem que falassem nada. Nos algemaram de novo, colocaram no furgão e fomos para São Gonçalo, para o presídio Patrícia Accioly, no bairro Guaxindiba. Nas transferências, você é sempre humilhado, chamavam a gente de ‘black bosta’, criminosos, assassinos, vagabundos, vândalos etc. Na saída da 37ª, dois policiais nos chamaram de criminosos, falando que seríamos estuprados no presídio. Diziam que iríamos pagar por termos nos metido com policial, que tínhamos matado o amigo deles, incendiado o carro [da polícia]. Tentavam nos filmar com seus celulares. Quando chegou lá, em Guaxindiba, novamente um cardápio de ofensas e atos para nos amedrontar. Você entra, tira a roupa, fica de cócoras, levanta a sola do pé, mão, tudo para ver se está com algum objeto, e depois te encaminham nu para receber calção e camiseta. Para lá a gente foi com a roupa do corpo. Na delegacia da Ilha do Governador, deixamos as coisas com os advogados, porque tinham avisado que iríamos perder tudo no presídio. Primeiro ficamos acocorados num corredor dos presos de alta periculosidade (segundo eles próprios). A primeira pergunta de um desses presos foi se a gente tinha dinheiro. Todo mundo de mão para trás e cabeça para baixo, em pé ou sentado. Não demos ouvido. Começaram a perguntar o que a gente fez, mas ninguém respondeu. Por fim, ele perguntou se a gente estava em manifestação. O preso da frente falou ‘esse Cabral é um filho da puta, tem que sair!’ e o da cela de trás concordou: ‘É isso mesmo!’.

Dali fomos para uma cela num corredor e ficamos só nós, os presos políticos. Eram celas para seis pessoas, com três beliches de cimento. No canto, o banheiro, com um buraco no chão — um vaso sanitário, chamado de “boi” na linguagem da cadeia — e um chuveiro no alto, sem registro. A gente descobriu que a água era aberta duas vezes ao dia. Foi ato contínuo entrarmos na cela e todo mundo se apresentar. As pessoas não se conheciam. A sensação de solidariedade coletiva minimizava a apreensão causada nos deslocamentos (DP-IML-presídio). Entrar na cela naquela circunstância era como “chegar em casa”: enfim, apesar da falta de banho, teríamos a possibilidade de deitar e descansar.

Como foi a rotina dentro do presídio?

Inicialmente fomos informados sobre como funciona o sistema. Rasparam a nossa cabeça também antes de entrarmos na cela. Recebemos sabonete, escova de dente e creme dental. Toalha não! Os presos mais antigos e com bom comportamento fazem o serviço de cortar o cabelo, dar informes sobre o funcionamento, servir as refeições. Eram feitos três “conferes” ao dia: gritavam no corredor (Confere!), ou tocavam na grade e você teria que se posicionar (erguido, mãos para trás e olhar para o chão) para eles contarem. Tinha pão e café pela manhã, almoço, jantar e um copo de uma bebida que parecia guaravita. A gente foi se acostumando com a rotina. No primeiro dia, não chegou água. Chegamos ao presídio quatro horas da tarde talvez, estando desde o dia 15 sem tomar banho — já era dia 16 anoitecendo. Falaram que abririam a água por dez minutos. Nesse dia abriram a água devia ser 3h da manhã. Tinha muito mosquito nesse presídio. Já trabalhei na Amazônia, andei em várias aldeias, mas nunca vi coisa igual. Não dava para dormir. Eles deram um cobertor e a esperança era que o cobertor ajudasse. No meu caso, era velho e furado, então não adiantava porque os mosquitos entravam. Essa primeira noite foi sofrida. A gente meio que fica na expectativa de sair, mas já estava conversando e encarando a possibilidade de ficar mais tempo. As longas conversas entre o grupo que dividia a cela e a comunicação com outros presos políticos de outras celas serviram para nos mantermos num estado emocional equilibrado. Na segunda noite nesse presídio já havíamos aprendido a fazer incensos com papel higiênico, o que afastava os mosquitos, mas deixava a cela esfumaçada.

Vocês receberam a visita de alguém?

Primeiro, recebi visita dos advogados da Asfoc [Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz], Jorge da Hora e Fábio. Eles falaram da mobilização que era prevista para acontecer na Fiocruz e perguntaram sobre o meu estado. Receber notícias de fora do presídio causou um sentimento desconhecido. Não tinha a menor ideia do que poderia estar acontecendo do lado de fora. Era como se estivesse também com o pensamento aprisionado, apesar de consciente do que acontecia. Depois, na tarde do dia 17, chegaram os advogados do DDH junto com uma advogada ligada a uma ONG que trabalha com direitos humanos em presídios. O trabalho dela consiste em visitar todos os presídios do sistema do Rio de Janeiro e ver as condições dos presos. Acho que tinha alguém da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia [Legislativa]. Um pouco depois chegou o [deputado estadual] Marcelo Freixo. Fizemos duas reuniões num refeitório onde tivemos a primeira oportunidade de ver o conjunto dos presos. Dos 19 que éramos quando chegamos à 37ª delegacia, ali já éramos 62. Todo mundo se cumprimentava, apertando a mão. Recebemos uma carta de pessoas de fora. Foi um momento de muita emoção e houve um agradecimento a elas. Aquilo foi muito bom porque a gente estava isolado. É outro universo: no presídio você não tem essa dimensão do que acontece do lado de fora. É outro mundo. Tínhamos consciência de que éramos presos políticos. Foi nosso primeiro contato coletivo com o mundo. O Marcelo Freixo me pareceu muito abatido, falando que a situação era grave, que ele nunca tinha presenciado uma situação dessa no Rio de Janeiro. Comentou que se falava em colocar as forças de segurança nacional na rua e que o Beltrame chegou a aventar isso. E a imprensa estava jogando pesado na nossa criminalização.

E a transferência para Bangu 9?

Na madrugada do dia 17 para o 18, umas 3h30 da manhã, fomos acordados pelos caras batendo [na grade]. “Sai, sai. Deixa tudo!!!”, gritavam. E os meus óculos ficaram na cela. Foi o momento de maior tensão: escuro, aqueles caras enormes todos de preto, gritando muito. A sensação, pelo tratamento, era de que iriam executar a gente. Colocaram a gente num pátio externo, sempre gritando, humilhando, xingando. Eu não fui agredido, mas uma parte do grupo foi agredida com palmatória. Eles queriam que o pessoal dissesse por que o estuprador da Rocinha estava com a orelha cortada e o rosto queimado. Tinha três presos comuns com a gente, um deles era esse estuprador e alguém queimou o cara, só que ele não dividiu cela com a gente em nenhum momento. Mas os caras queriam que a gente dissesse quem foi. Isso eu ouvi do lado de fora de um portão grande de ferro. Fui colocado para fora com outro grupo, de cabeça baixa. Chovera e o chão estava molhado e todos nós estávamos descalços (desde são Gonçalo até a libertação permanecemos nesse estado). Começamos a ouvir interrogatório e, em seguida, batidas e as pessoas gritando. Depois soubemos que era a palmatória de madeira. Isso durou alguns minutos. Fomos colocados num ônibus todo escuro. Dessa vez, sentamos quase todos. Um dos presos políticos estava por desmaiar e outros se esforçavam para mantê-lo acordado. Não era possível ver os rostos mesmo dos que estavam mais próximos de nós. Havia pouca circulação de ar. O Freixo havia dito que possivelmente iríamos para um presídio próximo para aguardar uma solução na justiça. Seria um presídio em São Gonçalo, que ele disse que era mais tranquilo, que estava disposto a aceitar o grupo, tinha espaço. Como eles tiraram a gente de madrugada, só podíamos imaginar para onde estávamos indo, porque estava escuro e, sem relógio nem nada, você perde a noção de espaço e tempo. Só sentíamos o balanço do ônibus, só sabíamos que estávamos em rua esburacada. Depois de algum tempo, pela batida e por alguma luz que entrava, nos demos conta de que estávamos cruzando a ponte Rio-Niterói. Mas, adiante alguém exclamou: “Deodoro!”. Pouco depois chegamos ao Complexo Penitenciário Gericinó, mais especificamente, no presídio Bangu 9 e foi novamente aquela coisa de os caras nos tratarem mal. A fala e a atitude de um policial ficou impregnada na minha memória: ‘Só tem vocês dois de pretos aqui?’. Em seguida segurou a cabeça de um deles e bateu algumas vezes contra a parede. Teve outro preso político que pedia insistentemente para ir ao banheiro, que não aguentava mais. Estavam muito próximo de mim. Gemia... Eu sussurrava para ele: respira fundo. Os caras apenas ironizavam e procuravam humilhá-lo. Mesmo depois de uns cinco pedidos desesperados, o rapaz não teve autorização e evacuou nas calças. Depois disso ordenaram que lavassem o chão.

Fomos para a cela. Quando a gente passa pela triagem, perguntam qual a nossa facção e são apresentadas as seguintes opções num formulário: Comando Vermelho, Amigo dos Amigos, Povo de Israel, milícia ou neutro. Nos identificamos como neutros e ficamos numa galeria juntos com o Povo de Israel, que são os presos que se converteram. O melhor de Bangu é que tinha uma torneira com água 24 horas; no outro não tivemos nem água para beber até a primeira abertura do chuveiro, para banho muito menos. Se quiséssemos beber aquela água imunda, pelo menos havia água, não iríamos morrer de sede. Mas a cela era mais estreita, escura, úmida e quase não tinha espaço para circular. Parece que circulou a informação de que haveria visita do pessoal dos direitos humanos. Aí deram um jeito de transferir a gente para outra cela no final do corredor, onde entrava luz no final da tarde, tinha sol, foi um alento. Além de um pardal que entrava e saía da cela através da grade no alto da parede (no final da tarde ele se alojou num buraco no teto da cela). Dessa cela ouvíamos cantos de outros pássaros. Recebemos somente um lençol branco e limpo que, pelo fato de ser bem largo, dava para cobrir a espuma sobre a qual deitava e, ao mesmo, servir de coberta. As poucas horas que restavam da madrugada permitiram um breve cochilo. No dia 18, acordei com a sensação de que sairia: lavei minha camiseta no banho com caneco e sabonete. Eu pretendia sair limpinho do presídio, estava imundo. Nessa passagem por Bangu, os presos receberam a gente bem. Eles falavam que a gente representava os parentes deles do lado de fora, que a luta era por eles também. Foram acolhedores e respeitosos conosco.

Quando você soube que seria solto?

Durante reunião com o pessoal dos direitos humanos, que aconteceu justamente no corredor, diante da cela onde eu e mais cinco presos estávamos, deram a informação de que tinha saído um habeas corpus. E que a partir desse habeas corpus, em meu nome, a juíza estendeu o benefício para os outros. Dali, voltamos para a cela. O habeas corpus só chegou ao presídio no final da tarde. Nesse meio tempo, chegaram advogadas do DDH, a Luiza maranhão e mais duas que conheciam pessoas comuns a mim e a outros dois presos. A gente foi conversar com as advogadas e, na volta, foi interessante porque um preso parou a gente para conversar no corredor, onde havia outros dois presos soltos. Esse preso falou: ‘Pára que aqui é tranquilo, pode parar’. Parei. ‘Aperta minha mão aí’. Apertei. Tinha outros três na grade festejando a gente e que também queriam apertar as nossas mãos. Eu saí, o Deo [professor da rede municipal do Rio, companheiro de cela] veio mais atrás, parou um pouco e conversou com eles. Eles falaram: ‘Ah, você é professor?A gente é aluno do crime, a gente veio agradecer vocês’. Surpreendeu a gente: por incrível que pareça, tivemos a solidariedade de quem – os policiais falaram – iria nos maltratar. Enfim, foi o ultimo dia lá, saímos à noite. Durante a oração que é feita sempre às 18h, segundo comunicara o preso que servia as refeições, momento em que os presos leem trechos da Bíblia, discursam, cantam — as falas e canções pareciam ter sido construídas no próprio espaço carcerário, pois falavam, muito da situação dos presos —, um dos carcereiros fez uma chamada no início do corredor, o que interrompeu a oração e criou um estado de suspense. Chamaram os nomes dos nove primeiros libertos. A nossa saída pela galeria foi algo comovente! Braços eram estendidos para fora das celas para nos cumprimentar. Olhos brilhantes nos acompanhavam enquanto aguardavam cumprimentos. Ouvia-se um grito: Liberdade! Esperamos quase duas horas fora da cela. Depois saberíamos que foi feito de tudo para que ficássemos mais tempo presos, apesar de os advogados da Asfoc já terem obtido dois habeas corpus antes do que definiu a saída do nosso grupo, detido na 37ª DP. 

Dá para descrever os momentos de pavor?

Tem um pavor que é para disciplinar o corpo e, no nosso caso, intimidar. A todo momento falavam que, como era a primeira vez, a gente estava sendo tratado como homem, e que da próxima seríamos tratados de forma diferente. Falavam para que tomássemos cuidado para não voltar para lá. E funciona: nessa noite mesmo tive um sonho com um monte de policial de fuzil atirando nas pessoas aleatoriamente. Isso num nível psicológico. [Mas teve] o físico também, eles bateram em algumas pessoas. Imagino que elas estejam mais frágeis do que eu. Tem essa coisa de incutir o medo. É uma espécie de pedagogia do terror, de você ser educado para não se manifestar, não questionar. Tanto que os últimos atos estiveram meio vazios, as pessoas estão recuando porque foi feita uma coisa exemplar. Isso me faz pensar que essa estrutura de terror não se extingue com mudança de governo, eleições, ela está muito bem estruturada como sistema de tortura... Aparentemente é um sistema legal, no entanto, é uma estrutura em que você entra e é engolido. Quando vem pressão de fora, é diferente. Fora isso, é o sistema de terror. É impossível ressocializar (como sugere o calção que recebemos, com a sigla SEAP e a palavra ressocialização) em tais condições. 

Você diz que existe uma pedagogia do terror que funciona. Como é voltar a uma manifestação agora? 

Eu soube de pessoas que não pretendem voltar a manifestações por enquanto. Para mim foi difícil. Nos arredores da Cinelândia, uns dias depois da minha libertação, quando vi o carro e um micro-ônibus da polícia, foi uma sensação muito estranha. Eu fui para casa. A sensação é de que iria repetir tudo que eu falei anteriormente, uma coisa incontrolável, não de ser preso, mas de sentir tudo o que eu senti, de escuridão, de ser puxado para o escuro. De ter sido sequestrado. Mudou também o meu olhar com relação aos policiais. Eu tinha a expectativa de que pudessem se portar como trabalhadores, servidores públicos. Agora eu até entendo a situação de precariedade, que os caras têm que fazer isso para sobreviver, a questão da hierarquia militar etc., mas os possíveis resquícios de solidariedade diminuíram muito. Com a forma como muitos deles tratam as pessoas, não dá para perceber qualquer sinal de compaixão.

Qual a sua avaliação com relação ao sistema judiciário e carcerário brasileiro considerando a situação daqueles que passaram por essa experiência?

Se você está na mão do Estado, está refém do Estado. Estamos em situação de fragilidade. Hoje os grupos mais conservadores estão unidos em torno de um projeto que, a pretexto de viabilizar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, visa frear manifestações para assegurar o uso da máquina e dos recursos públicos para garantir os grandes investimentos, o lucro, a expropriação de terras. Não temos certeza se, quando formos a julgamento, podemos ganhar. Essa sociedade democrática que a gente vive é para quem não está dentro desse sistema prisional, só serve para quem nunca passou por lá. Depois que você cai ali, vê que é tudo muito frágil. No escravismo brasileiro, até o século XIX, os escravos que cometiam os “crimes” de fuga das fazendas ou atentado ao “seu senhor”, por exemplo, eram marcados/queimados com a letra “F”. Algo aparentemente superado historicamente se repete com a “marca” que a “passagem” pelo “sistema” deixa em nós. Qualquer um pode ser pinçado, cair ali e pronto! O objetivo dos grupos que controlam as estruturas de poder do Estado é ter você na mão e prorrogar esse processo por anos. Qualquer um de nós, se voltar, com certeza, terá outro tratamento. Eles nos avisaram! Há os que ainda acreditam na possibilidade da luta, garantida nos “direitos constituídos”. Penso que não tem mais direito constituído... Se por um lado a solidariedade presente entre companheiros da Fiocruz e de Manguinhos, em especial, foi extremamente importante para mim, por outro, é surpreendente o silêncio por parte de algumas entidades de classe e parte do meio acadêmico com relação a esse estado de coisas, onde cresce a opressão contra a expressão popular nas ruas, o que coloca o Estado Democrático de Direito como privilégio para poucas pessoas. Também é desprezível o reacionarismo expresso em artigos e ações de intelectuais que, outrora, eram consideradas referências importantes para a crítica ao autoritarismo.

Ainda tem gente presa...

Tem o Jair e o Rafael, um morador de rua. Ambos negros. Segundo as notícias que circulam na internet o Rafael foi preso num prédio abandonado na Lapa, onde ele estava morando. Foi no dia 20 de junho, aquele em que a polícia saiu jogando bomba de gás para todo lado. Ele estava caminhando para o lugar onde iria dormir com uma garrafa plástica de detergente e uma de água sanitária e alegaram que ele estava com material inflamável, com líquidos para produzir incêndio. Foi preso. O cara é morador de rua, está há cinco meses preso, e esteve, durante algum tempo, sem defesa. Já o Jair parece que foi preso por averiguação, e pelo fato de ter passagem anterior, estão dificultando o caso dele. Na reunião com as advogadas, no Bangu 9, foi falado que estava sendo difícil conseguir o habeas corpus para ele.

Você falou que estávamos muito fragilizados e houve uma grande união de forças para acabar com as manifestações. Mas mesmo depois dessa experiência traumática, você continua indo. Por quê?

O que impulsiona a gente a participar é a solidariedade. Aqueles que decidiram o que fazer conosco não têm noção de que, dentro da cadeia, possibilitaram a construção de uma solidariedade entre pessoas que nem se conheciam. Criaram uma liga entre essas pessoas, conheci pessoas de caráter muito firme. A grande maioria lá ficou muito solidária. Eu vejo que de toda essa experiência ruim, de aprisionamento, de repressão, está consolidando um grupo de muitas pessoas com discernimento sobre os fatos e sobre as injustiças presentes em nossa sociedade. Tive oportunidade de rever pessoas que dividiram cela comigo num ato recente de solidariedade aos presos e ex-presos. Algo inexplicável, a repressão produzira laços de amizade e confiança.

Eu volto para as manifestações com a vontade de filmar, mas não sei se vou continuar filmando por enquanto, apesar de querer dar continuidade aos registros históricos e etnográficos que iniciei em junho. Vivemos um processo histórico muito vigoroso e complexo sobre o qual precisamos refletir muito e para isso é necessário que ele seja registrado a partir de olhares diversos. Sou apenas um deles. Também não dá para abdicar de questionar o sistema da forma como está colocado. Afinal de contas, é difícil pensar na construção de um conhecimento científico neutro, principalmente, se levarmos a sério o que sugeria Paulo Freire ao dizer que toda neutralidade afirmada corresponderia a uma opção escondida.

Assim, a passagem pelo sistema prisional e carcerário não poderia ofuscar o nosso olhar sobre a sua dinâmica, sobre a forma como atuam os servidores públicos que os mantêm ativos e, sobretudo, sobre as condições nas quais se encontra seu “público-alvo”, formado por pobres, negros e mestiços em sua grande maioria. Nessa perspectiva, é difícil observar sem críticas um serviço público, financiado com recursos públicos, utilizado para punir parte desse público (presos, seus parentes e amigos). A crítica a esse tipo de serviço não pode ser colocada sem a devida correlação com toda a estrutura de governo do qual faz parte. Na atual conjuntura, essa crítica pode resultar na marcação de um “F” nas nossas costas ou no nosso encarceramento.

Fonte: EPSJV/Fiocruz

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A rebelião dos limites, a crise da dívida e o esvaziamento da democracia

Por Franz Hinkelammert, teólogo e economista.

Vivemos numa economia que depende do crescimento, porém cada vez está mais evidente que o crescimento está chegando aos seus limites.



As ameaças globais

Estamos enfrentando três grandes ameaças globais concretas: a exclusão da população, a subversão das relações sociais e a ameaça à natureza. Entretanto, a maior delas é outra: é a inflexibilidade absoluta da estratégia de globalização. É, de fato, a verdadeira ameaça, porque esta ameaça torna impossível enfrentar as outras ameaças mencionadas.

Trata-se de uma ameaça que, de maneira alguma, é um produto necessário de um mundo tornado global. Na realidade, a estratégia da globalização é completamente incompatível com o fato de que o mundo chegou a ser um mundo global. Esse é o verdadeiro problema. A estratégia de globalização destrói um modelo tornado global e é incompatível com a existência deste mundo.

O mercado não é um sistema autorregulado. As chamadas forças de autorregulação do mercado não existem. O que existe é uma determinada autorregulação de mercados particulares, não do mercado em seu conjunto. O mercado como conjunto não possui a mínima tendência ao equilíbrio, mas tende sempre de novo e sistematicamente a desequilíbrios. O mercado é pura vontade de poder.

As mencionadas ameaças globais concretas são desequilíbrios do mercado. Em benefício de certos equilíbrios financeiros estas ameaças globais são sistematicamente alargadas.

Contudo, a política do crescimento econômico mostra outro lado: quanto mais se insiste numa cega política de crescimento, maiores são as ameaças globais e, consequentemente, sacrifica-se qualquer política que tente enfrentá-las. Essa é a lógica da estratégia de globalização.

A estratégia de globalização apresenta a si mesma como política de crescimento, porém não é simplesmente isso. É preciso lembrar apenas as características desta estratégia para mostrar o que ela é. É a comercialização de todas as relações sociais, é a privatização como política, que obedece somente a princípios sem maior consideração com a própria realidade. Por isso, nem questiona em que lugar a privatização seria uma solução mais adequada e precisamente onde a propriedade pública representaria uma solução melhor. O fato de que a privatização do Metrô de Berlim (S-Bahn) o arruinou, não é nenhum argumento contrário à sua privatização. Contra determinadas privatizações não há argumentos porque existem somente artigos de fé. Segundo esta fé, todas as esferas da vida devem ser submetidas ao mercado, o que significa usá-las para investimentos do capital. Não apenas qualquer um dos serviços públicos, também as prisões e os exércitos. Como também, é claro, o sistema de educação, o sistema de saúde e do seguro de vida.

Isto é apresentado como se fosse uma política de crescimento, porém é claro que se trata, principalmente, de uma política de acumulação total de capital.

No nosso idioma orwelliano é tudo a mesma coisa: a globalidade do mundo, a estratégia de globalização e a totalização do mercado e da acumulação de capital. Junto a isto, também, a submissão de todas as decisões ao cálculo de custos e utilidades.

O que não se pode perceber é a contradição fundamental da nossa atual sociedade: a contradição entre um mundo tornado global e a universalização desta estratégia de globalização.

Esta política de maximização do crescimento, hoje, tocou seus limites. O que o relatório do Clube de Roma, em 1972, anunciava com o título “Os limites do crescimento”, hoje é real. A crise de 2008 não é simplesmente uma crise do sistema financeiro, mas o começo de uma crise produzida pelos limites do crescimento, constantemente notável e sem remédio. O que se dá é a rebelião dos limites.

A crise de 2008 eclodiu após um extraordinário aumento no preço do petróleo. O que acarretava em dificuldades de pagamento, que tornaram obrigatórios a venda de títulos financeiros, que agora quase não possuem valor no mercado. Isso levou a uma crise financeira que estourou a bolha financeira do sistema financeiro. Foram os limites do crescimento que levaram a esta crise financeira, que se reforçou a si mesma pelo fato de que todo o sistema financeiro foi corrupto porque se baseava em títulos financeiros sem nenhum valor.

De 1987 até 2007, o consumo de petróleo aumentou aproximadamente um terço. Trata-se de um aumento próximo de 15%, com um crescimento econômico próximo de 5%. Este crescimento não seria possível sem o correspondente aumento do consumo de petróleo e, por isso, sem um aumento correspondente da produção de petróleo. Voltar a ter um crescimento no consumo de petróleo parecido, nos próximos 20 anos, parece um pouco impossível. Enquanto ainda não há um substituto importante para o petróleo, parece impossível, também, um crescimento do produto social mundial deste tamanho.

Não somente o petróleo demonstra limites. Em todos os setores da economia surgem produtos imprescindíveis para um processo de crescimento comparável que se apresentam escassos sem que se encontrem substitutos adequados com a agilidade que seria necessária. Muda, também, a situação mundial de início. A crise ambiental determinará, cada vez mais, limites para este processo de crescimento, que em algum momento terão que ser levados em conta.

A busca de substitutos para o petróleo tem inclusive consequências perversas. Atualmente, a produção agrária ainda se expande, mas a produção de alimentos, ao contrário, tende a baixar. Milho, soja, óleo de palma, açúcar e muitos outros produtos são transformados em combustível para automóveis. Nos Estados Unidos, é o caso de mais de um terço da produção de milho. No século XVI, na Inglaterra se dizia: as ovelhas devoram as pessoas. Esta situação levou tal terror para a população expulsa do campo, que o roubo de uma galinha era castigado com a pena capital. Hoje, teríamos que dizer: os automóveis devoram as pessoas. Os automóveis têm rendas elevadas. Os famintos, ao contrário, não têm nenhum poder de compra. O que hoje se entende por ação racional é que os automóveis, em nome da ação racional, devem ter preferência. O conceito de racionalidade da nossa vigente teoria da ação racional é perfeitamente perverso. [1]

Por esta razão, dificilmente parece possível manter um nível de crescimento como nas décadas passadas. O que se pode esperar é o aumento do crescimento em prazos mais curtos, mas que logo volta a entrar em colapso: uma espécie de decadência do sistema. Todos os planos para uma retomada do crescimento devem levar isso em conta.

Derrubamos todos os limites e hoje chegamos a novos limites, que antes a humanidade nem suspeitava. O ser humano é um ser infinito atravessado pela finitude. Trata-se da finitude do ser humano que descobriu que é infinito, e que, justamente por isso, choca-se de novo com a finitude. Porém, não é a finitude do pensamento anterior, como, por exemplo, do pensamento grego.



A crise da dívida

Até agora falamos de desequilíbrios provocados e inauditamente reforçados pelo mercado de mercadorias: a exclusão da população, a subversão das relações sociais e a ameaça à natureza. Trata-se de desequilíbrios da vida real. Porém, também aparecem desequilíbrios em relação ao próprio mercado que reforçam de maneira assombrosa os mencionados desequilíbrios da vida real. Neste sentido, o desequilíbrio mais importante vem dos processos de endividamento.

Atualmente, encontramo-nos novamente num destes processos de endividamento, que desta vez se refere, sobretudo, aos países europeus. O endividamento chega a um tamanho tal que se torna impagável para os países mais endividados. O fato de que a dívida se torna impagável é exatamente o negócio dos bancos. Para as burocracias privadas, das grandes empresas e dos bancos, trata-se da grande oportunidade. Os países endividados agora são saqueados sem a mínima possibilidade de defesa. Tudo o que é interessante para o capital, agora é vendido a preço mínimo. No entanto, as dívidas não baixam, mas muitas vezes aumentam. Aqueles economicamente mais potentes, dos países afetados, possuem participação neste negócio, ainda que apenas como sócios minoritários. O país que não tem condições de pagar, precisa pagar ao menos o que pode, perdendo assim a sua independência. Quando é dado um limite ao endividamento, isto acontece porque só é possível saquear apenas o que há. O cálculo da máfia é feito quando se calcula o “protection money”. Será sacado o máximo possível, mas não exageradamente, para que seja possível continuar roubando no futuro. Os países endividados perdem sua autonomia e os bancos maximizam – como atores “racionais” que são – seu “protection money”.

Passamos por uma situação de endividamento parecida à dos anos 1980 na América Latina. Os ajustes estruturais que foram impostos a estes países levaram ao saque de todo um continente. Em grande parte, o Estado social foi dissolvido e foi privatizado tudo o que era possível. Produziu-se uma assombrosa miséria das populações, e uma destruição da natureza, maiores do que em qualquer época histórica anterior. O endividamento foi a alavanca que tornou possível submeter toda a América Latina à estratégia de globalização, que é cega e jamais produz razões.

Os mesmos ajustes estruturais hoje são impostos aos países endividados da Europa, porém, desta vez, são impostos pelos próprios Estados da Europa, que fazem isto porque o capital tem o poder de impor esta política a estes mesmos Estados. A crise da dívida se transforma num gigantesco processo de expropriação que aquiesce uma espécie de acumulação primitiva, que acompanha toda a história do capitalismo.

Não quero tentar apresentar o que poderia ser a solução. Ao contrário, quero apresentar o fato de que em nossa história há um caso em que foi solucionada uma crise de endividamento visando evitar o desencadeamento destes processos de destruição. Isto ocorreu no caso da crise de endividamento resultante do final da II Guerra Mundial.

Uma semelhante crise da dívida tinha ocorrido após a I Guerra Mundial. No entanto, neste caso não se buscava uma solução, mas se impôs simplesmente pagamentos máximos, sem considerar sequer as resultantes consequências destrutivas. Esta cegueira dogmática foi uma das principais razões para o êxito posterior do nazismo, na Alemanha, que provocou a II Guerra MundialKeynes, que tinha participado das negociações de paz de Versalhes, em 1919, havia advertido sobre o perigo de um desdobramento deste tipo, em consequência da atitude dos ganhadores, em seu livro sobre estas negociações em Versalhes.

Após a II Guerra Mundial, o tratamento da dívida foi muito diferente. Pode-se até dizer que foi muito razoável e acertado. Quero brevemente sintetizar esta política, para discutir posteriormente por que isto foi possível depois da II Guerra Mundial, e quais as razões para hoje não se tirar nenhum aprendizado desta experiência. Ao contrário, nem se menciona esta experiência.

Em sua essência, tratava-se das seguintes medidas, aplicadas coordenadamente:

1. Partia-se de uma anulação quase completa de todas as dívidas da Europa Ocidental, inclusive da Alemanha. Isso se deu, em grande parte, como moratória de longo prazo. Durante o tempo destas moratórias, sobre as dívidas não pagas, não se calculava juros. Isso foi fixado, em 1953, no acordo de Londres sobre as dívidas.

2. Sobre esta postergação do pagamento foram dados novos créditos sem juros e sem devolução em longo prazo. Trata-se dos créditos do plano Marshall. Transformaram-se nos países receptores em “revolving fonds”.

3. Fundou-se uma União Europeia de Pagamento para evitar o surgimento de novas relações de endividamento entre os países europeus inclusos. Os desequilíbrios da balança comercial entre estes países não foram financiados por créditos comerciais. Os saldos positivos dos países mais exitosos financiaram o déficit de outros países sem cobrar juros.

4. Altos impostos sobre rendimentos de capital e altos rendimentos em geral. Imposto de herança, das propriedades.

5. Fundou-se o Estado social. Aumentaram significativamente os gastos sociais naquilo que se chamou Estado de Bem-estar. Depois, chamou-se a isto de rosto humano do capitalismo.

Esse é o núcleo desta política muito razoável, que conquistou um considerável êxito. Sem esta política, a recuperação econômica da Europa teria demorado muito mais. 

A pergunta que precisamos fazer é a seguinte: por que era possível esta política após a II Guerra Mundial e não após a I Guerra Mundial? E a outra pergunta é: por que esta política após a II Guerra Mundial, no entanto, é impossível diante da atual crise da dívida, como também não era possível nos anos 1980, na América Latina?

A razão é clara. Começava a guerra fria na relação com a União Soviética, e os partidos comunistas eram muito fortes, sobretudo, na França e na Itália. O sistema capitalista parecia ameaçado em sua própria existência.

O sistema percebeu o perigo e por isso reagiu como um sistema global. Isso levou a medidas completamente incompreensíveis do ponto de vista da lógica do capitalismo, mas que são compreensíveis como medidas de combate na guerra fria. Neste sentido, tratava-se de uma economia de guerra, que interrompeu a lógica do capitalismo no interior do próprio capitalismo. Até mesmo os altos gastos sociais, do ponto de vista do poder econômico, eram gastos de guerra. No fundo, dinheiro disponibilizado, que precisava ser gasto, simplesmente para vencer uma guerra.

O fato de que se tratava efetivamente de custos de guerra, nota-se também no caso dos Estados Unidos, que renunciaram ao pagamento das dívidas de guerra, em relação aos países da Europa ocidental, mas não ao pagamento das grandes dívidas de guerra da União Soviétiva do Lend-Lease-Act, de 1941 – aproximadamente 10 bilhões de dólares. Pretendia fazer negócio “as usual”. Quando a União Soviética rejeitou esta exigência, foi denunciada pelo não cumprimento do contrato.

Estas medidas limitaram extraordinariamente o poder do sistema bancário e seu negócio com a miséria das populações. Efetivamente, renunciaram e até participaram da planificação destas medidas para salvar o sistema. Não o fizeram por levar em conta as necessidades da população.

Certamente, sem estas medidas teria acontecido algo possivelmente pior do que ocorreu após a I Guerra Mundial.

Isso demonstra muito bem que os banqueiros, mas também os políticos, sabem muito bem da catástrofe perfeitamente desnecessária que origina sua política de cobrança cega da dívida e que, igualmente, sabem muito bem qual seria a efetiva e, além disso, humana solução para uma crise da dívida. Eles escolhem conscientemente o crime implicado na imposição do pagamento indiscriminado.

Atualmente, eles não veem nenhuma razão para medidas deste tipo, porque não há uma resistência correspondente. Tampouco perceberam alguma razão para tais medidas durante a crise da dívida, dos anos 1980, na América Latina e no Terceiro Mundo. No tempo de Reagan, nos Estados Unidos, isto era dito abertamente: por que continuar jogando dinheiro e lançar pérolas aos porcos, se o perigo para o sistema já passou? E nossos meios de comunicação nos apresentam isso todos os dias.

Os banqueiros e os políticos hoje sabem muito bem as catástrofes sociais que estão produzindo, mas não veem a mínima razão para limitar o negócio que estão fazendo com a miséria das populações e da natureza. A prova para o fato que tudo isso é visto hoje, está no fato de que isto era visto perfeitamente após a II Guerra Mundial, mas quase ninguém fala. Sacrificamos vidas humanas e realizamos grandes genocídios e sabemos disto em nosso subconsciente. Os economistas inventam qualquer coisa como pretexto e para isso são pagos. Todos sabem, mas quase todos respeitam o tabu tão bem guardado em volta destes genocídios.

O que foi a solução após a II Guerra Mundial, é algo absolutamente único na história do capitalismo. A crise da dívida é um negócio muito bom para se renunciar a ele, a não ser que isso se torne inevitável para que seja assegurada a própria existência do sistema. Quanto pior a crise da dívida, melhor é o negócio oferecido quando um país já não pode pagar. Neste caso, ao prestamista passa a pertencer tudo o que há no país. Hoje, podemos ver isto na Grécia, onde está a caminho um genocídio econômico deste tipo. Isto irá se estender para muitos outros países. No final, chegará até aos países dominantes, porque o poder econômico também quer um saqueamento do próprio país, da mesma maneira como é feito em países estrangeiros. Os Estados Unidos avançaram mais neste sentido, mas a Alemanha também passará exatamente pelo mesmo, após acabar com os outros países da Europa.

Caso tudo isso ainda não seja suficiente, os governos dos países pouco endividados precisam respaldar as dívidas dos outros para que a banca não quebre e continue dando sua contribuição para o “progresso”. No entanto, nos aproximamos de uma situação em que, de repente, nem a totalidade de todos os governos possa respaldar estas dívidas. Quando só é possível pagar as dívidas com novas dívidas, a dívida total cresce sem nenhum limite, na velocidade da progressão dos juros compostos. Devoram tudo. Inclusive, os Estados Unidos se encontram hoje num tal automatismo da dívida, cujo fim ninguém pode prever.

As medidas que vão sendo tomadas são exatamente contrárias ao que se fez diante da crise da dívida após a II Guerra Mundial, mas nem se discute este fato. Atualmente, propor uma reação à crise da dívida, como aconteceu após a II Guerra Mundial – é claro, sem copiar mecanicamente –, é considerado coisa de malucos, além de extremista. Em nossa sociedade hipócrita, quem rejeita estes genocídios econômicos é considerado extremista, e quem os apoia é moderado e realista.

Para nós, do ponto de vista da nossa sociedade, está claro: o capitalismo já não necessita de um rosto humano e, por isso, todos os gastos sociais e todas as considerações de uma humanização da sociedade significam dinheiro desperdiçado.



O esvaziamento da democracia

Temos apontado dois elementos decisivos da atual crise. Por um lado, a estratégia de globalização chegou a ser o obstáculo decisivo para obter uma resposta frente às grandes ameaças para o nosso mundo: a exclusão de partes cada vez maiores da população mundial, a dissolução interna das relações sociais e a cada vez mais perceptível destruição da natureza. Por outro lado, a total subordinação da política ao automatismo da dívida transformou-se no motor deste processo destrutivo.

São os países democráticos, ou seja, aqueles que arrogantemente se apresentam como as democracias modelo, que impõem esta política ao mundo inteiro. Até agora, estes países possuem maiorias internas para esta política e declaram todos os governos que não aceitam incondicionalmente esta política, como não-democráticos. Quando eles se submetem a esta política são democráticos, mesmo que seus presidentes se chamem Pinochet ou Mubarak. Ao menos são democráticos em sua essência, embora não em sua aparência. Este critério é o das democracias modelo, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa. Com este critério democratizam o mundo.

Porém, por que há maiorias a favor desta deficiência mental? Brecht dizia: somente os vitelos maiores e tontos escolhem, eles próprios, seus carniceiros (Nur die allergrössten Kälber wählen ihre Schlächter selber). Contudo, continuam escolhendo-os. Embora às vezes não.

Trata-se do que se chama soberania popular, que supostamente vale nas democracias modelo: todo poder sai do povo. No entanto, esta soberania popular tem um ponto problemático. Atualmente, consiste em que o povo declara soberanamente que o poder econômico e, portanto, o Capital, é o soberano. Na Alemanha, a chanceler Merkel disse: “a democracia deve estar de acordo com o mercado”. Isso foi dito numa linguagem muito específica. Foi dito que o mercado é um ser autorregulado que não deve sofrer a intervenção de nenhuma vontade humana e, portanto, também não da vontade expressa nas escolhas do soberano popular. A União Europeia entende isso como o conteúdo central da sua constituição.

Essa é exatamente a afirmação segundo a qual o Capital é o soberano, que precisa ser confirmado pela soberania popular. Segundo nossos apologetas da soberania do Capital, a soberania popular deixa de ser democrática caso não afirmar esta soberania do Capital. Na linguagem de Rousseau, isso significa - embora não corresponda completamente ao que disse Rousseau -, que a vontade geral (volonté général) é esta decisão da soberania popular que declara e assume a soberania do Capital e que esta não pode ser mudada pela vontade de todos (volonté de tous). Portanto, a soberania popular que não afirma a soberania do Capital é antidemocrática, inclusive totalitária. Pinochet Mubarak são democráticos pelo fato de que impõem a vontade geral (volonté général), embora não sejam eleitos. Estão de acordo com o mercado, como o disse a Frau Merkel.

Este é o esvaziamento da democracia, da forma como tomou lugar nas democracias modelo. O povo renuncia à sua soberania e a entrega ao poder econômico, que se faz presente como Capital. Os métodos para conquistar isto são muitos. Quero mencionar apenas dois, que tem um caráter central: a criação da opinião pública, no sentido de uma opinião publicada, e a ampla determinação da política pelo financiamento das eleições.

No momento atual, o domínio sobre os meios de comunicação está quase totalmente nas mãos de sociedades de capital, que são suas proprietárias. Estes meios de comunicação se baseiam na liberdade de imprensa, que é a liberdade dos proprietários dos meios de comunicação. Estes se financiam por uma espécie de subsídio, na forma de propaganda comercial paga, que são pagas, principalmente, por outras sociedades de capital. Quanto mais os meios de comunicação pressupõem grandes capitais, mais se transformam em instâncias de controle da opinião pública e, portanto, da liberdade de opinião. Para estes meios de comunicação, não há outra liberdade de opinião a não ser a liberdade particular de seus proprietários e de suas fontes de financiamento. Esta garante a liberdade de imprensa.

O direito humano não é a liberdade de imprensa, mas a liberdade de opinião de todos e, portanto, universal. Entretanto, ao fazer da liberdade de imprensa o único critério para os direitos de opinião nos meios de comunicação, a liberdade de imprensa tem se transformado num instrumento sumamente eficaz para o controle da liberdade da opinião universal. Esta é limitada, embora somente em certa medida, pelos meios de comunicação públicos, na medida em que exercem uma autonomia efetiva. Berlusconi, como proprietário da grande maioria dos meios de comunicação na Itália, podia expressar até com trompetes sua opinião sem quase nenhuma contestação. No entanto, um dos canais de televisão que lhe fez oposição, era um canal da televisão pública, a RAI. Não podia intervir porque possuía uma autonomia assegurada pelo direito. Por outro lado, o presidente Reagan assegurou seu poder, em boa parte, por sua indiscriminada política de privatização dos meios de comunicação, inclusive com um conflito duríssimo com aUNESCO, da qual retirou seu financiamento. Com isso, assegurou um domínio incontestado sobre o direito humano da liberdade de opinião nos Estados Unidos.

Para os políticos, trata-se de um sério limite porque necessitam dos meios de comunicação para se mostrar presentes, como também as suas posições políticas. Porém, para eles, a condição para este acesso é reconhecer o poder econômico, portanto, o capital como o soberano de fato.

Uma situação muito parecida acontece em quase todos os processos eleitorais. Um participante importante nas eleições, e muitas vezes decisivo, é o poder econômico como o verdadeiro soberano. Sempre participa, porém sua presença é invisível e podemos somente derivá-la. Este grande outro está presente até mesmo quando ele próprio não tem consciência. Está presente nas escolhas dos candidatos, nos discursos e nos meios de comunicação.

Com isso, a política recebe uma nova e muito importante função. Para ter êxito, quase sempre precisa representar este grande outro para os eleitores, que aparentemente sempre representa. Necessita fazer isso de uma forma que aparentemente os cidadãos decidam eles mesmos por sua própria vontade que este grande outro é o soberano real. O político de sucesso é, então, aquele cuja representação do grande outro é vivida pelos cidadãos como a própria decisão deles mesmos.

Os Indignados na Espanha se deram conta deste caráter da democracia esvaziada que os dominava e lhes tira qualquer possibilidade de participação. Por isso, exigiram “democracia real já”, diante de um sistema que se apresenta, inclusive através da polícia, como a democracia verdadeira.

Por isso, a soberania popular não deixa de ser algo real e efetivo. Que os cidadãos tomem consciência da soberania popular é o grande perigo para esta democracia das democracias modelo. A soberania popular não é o resultado de uma lei que a reconhece; muito pelo contrário, a lei que a reconhece parte do fato de que um povo que se sabe soberano e que atua correspondentemente assim, é efetivamente soberano, haja a lei ou não. É esta soberania popular que nossas democracias têm que transformar em soberania do mercado e do Capital; contudo, com isso, podem fracassar, e temem este resultado quando começam os levantes populares democráticos.

Hoje, estes levantes estão em curso e outros se anunciam. Em 2001, começamos na Argentina. Paralelamente, apareceram governos de esquerda como na Venezuela, Bolívia e Equador, que rejeitam colocar a soberania do mercado e do Capital no lugar da soberania popular. É por isso que na opinião pública publicada das democracias ocidentais são considerados não-democráticos.

No entanto, com uma força muito especial, apareceram estes movimentos populares, em 2011, nos países árabes, sobretudo da África do Norte. Então, isso levou ao movimento dos indignados na Espanha no mesmo ano.

Nas democracias ocidentais surgiu a voz de alarme. Quando se mostrava entusiasmo, quase sempre era simples palavreado. No entanto, precisavam aceitar a democratização em alguns países árabes. Em seguida, foi oferecido apoio, mas este apoio sempre era para a mesma coisa: fundar democracias que coloquem a soberania do mercado e do Capital no lugar da soberania popular. Querem “democracias verdadeiras”. Isso parece ainda mais fácil quando a rebelião dos movimentos populares se dirige contra os regimes ditatoriais, embora estes regimes ditatoriais sempre tivessem contado, anteriormente, com o apoio quase absoluto de nossas democracias modelo. Por isso, amigos da liberdade, como Mubarak Kadhafi, foram declarados monstros de um dia para o outro. Antes eram bons, agora são maus. Porém, por trás disso havia somente a preocupação de também criar democracias esvaziadas nestes países, como são atualmente as democracias ocidentais. Democracias como as já criadas no Iraque e no Afeganistão. Uma coisa está clara: os movimentos democráticos rebeldes não querem, de modo algum, democracias modelo como as que foram criadas no Iraque e no Afeganistão.

Nesse caminho seguiram os levantes democráticos na Espanha e, por conseguinte, no interior de uma destas democracias modelo ocidentais. Também este movimento anseia por democracia. Deixa bem claro que enfrentam uma democracia em que os políticos - quase todos - fazem a política dos poderes do mercado e do capital, e representam a estes como os poderes soberanos. Na Argentina, em 2001, estes rebeldes gritaram: “que se vayan todos”.

Na Espanha, o nome dado a este movimento, que antes já tinha sido dado a alguns movimentos árabes, é significativo. Denominam-se indignados. Significa que se sentem como seres humanos cuja dignidade foi desprezada e pisada. O próprio sistema dominante transformou-se num sistema de negação da dignidade humana [2].

Este movimento tem se alargado cada vez mais, com novas ampliações de seu conteúdo, mantendo, no entanto, sua identidade. Isso ocorreu com os protestos no Chile contra a comercialização do sistema de educação e de saúde. Ao mesmo tempo, aconteceu nos Estados Unidos, com o movimento “Occupy Wall Street”, e está se expandindo para o mundo inteiro. Um de seus lemas era: “stop trading with our future”, colocando no centro, outra vez, a exigência do reconhecimento da dignidade humana.

Apresentam seus interesses, mas os apresentam a partir de um ponto de vista: o da dignidade humana. É o que também se encontra nos movimentos democráticos árabes. Seres humanos protestam e se rebelam porque são violados em sua dignidade humana. Querem outra democracia porque a violação de sua dignidade humana é um produto da própria lógica da democracia esvaziada. Estas democracias ocidentais apenas podem rir quando escutam as palavras dignidade humana. Nada disso existe, esse é o núcleo desta nossa democracia esvaziada. O lugar da dignidade humana está ocupado pela consideração do ser humano como capital humano, porque se acredita que isto é “realista”. Porém, nos faz compreender a forma como o Ocidente esvaziou bem democraticamente a dignidade humana e a fez desaparecer. Trata-se da transformação do ser humano em capital humano e da sua total subordinação ao cálculo da utilidade. Certamente, o capital humano não tem dignidade humana, é altamente niilista.

É disso que trata a rebelião em nome da dignidade humana. E não somente da dignidade humana, mas também da dignidade da natureza. Os seres humanos não são capital humano e a natureza não é capital natural. Existe algo como a dignidade. Há muito tempo, as democracias ocidentais esqueceram isso. Contudo, trata-se da recuperação da dignidade humana: o tratamento digno do ser humano, do outro ser humano, de si mesmo e também da natureza.

Os indignados não falam em nome de interesses e da utilidade a ser atingida. Falam em nome da sua dignidade humana, em cima da qual não é possível fazer nenhum cálculo de utilidade. Certamente, comer tem utilidade, mas não representa uma diminuição da utilidade, mas uma violação da dignidade humana. Isso nenhum cálculo da utilidade pode mudar. No entanto, nossa sociedade é tão desumanizada que este horizonte da dignidade humana quase desapareceu, pela consequência de que quase todos se interpretam ou se deixam interpretar como capital humano. O que precisamos fazer com a pessoa humana, quem indica é o mercado. E o mercado diz aquilo que dizem os nossos banqueiros. E os políticos dizem o que primeiro dizem os banqueiros. Por isso, se o mercado aponta algo como útil, em qualquer momento o genocídio pode começar. Então, o mercado se transforma naquilo que Stiglitz chamou de as armas financeiras da destruição em massa, que hoje realizam o seu trabalho na Grécia e na Espanha.

O poder econômico deixa morrer, o poder político executa. Ambos matam, embora com meios diferentes. Por isso, o poder político tem que justificar a morte, enquanto o poder econômico tem que justificar a razão pela qual deixa morrer e não intervém no genocídio ditado pelo mercado. Ambos são assassinos. Nenhuma destas justificativas significa mais do que a simples ideologia de obsecados.



O assassinato por meio do deixar morrer

A denúncia do assassinato ordenado pelo poder econômico tem história. Na Bíblia judaica é expressamente denunciado: “Mata o próximo quem lhe tira seus meios de vida, e derrama sangue quem priva o operário de seu salário” (Eclesiástico 34, 22).

Bartolomeu de las Casas decidiu ser um dos defensores dos indígenas da América baseando-se neste texto, que lê e medita, e através do qual se converte. São os indígenas que são vítimas de assassinatos deste tipo. O Eclesiástico denuncia, igualmente, este assassinato.

No final do mesmo século XVI, Shakespeare assume este tipo de denúncia e a coloca na boca de Shylock, o personagem do Mercador de Veneza: “Tiram-me a vida se me tiram os meios pelos quais vivo”.

Esta problemática aparece novamente nos séculos XVIII e XIX. Começa-se a falar sobre o "laissez faire": "laissez faire, laissez passer". Os críticos o tomaram ironicamente: "laissez faire, laissez mourir". Porém, especialmente importante é Malthus que insiste em: "laissez mourir", em vez de "laissez faire". Adam Smith disse a mesma coisa, da seguinte maneira: “Na sociedade civil, somente entre as pessoas de classes inferiores do povo é que a escassez de alimentos pode impor limites à multiplicação da espécie humana, e isto não pode ser verificado de outro modo do que destruindo aquela escassez uma grande parte dos filhos produzidos por seus fecundos matrimônios... Assim é, como a escassez de homens, ao modo que as mercadorias regulam necessariamente a produção da espécie humana: aviva-a quando segue lenta e a contém quando se aviva muito. Esta mesma demanda de homens, ou solicitude e busca de mãos trabalhadoras que fazem falta para o trabalho, é a que regula e determina o estado de propagação, na ordem civil, em todos os países do mundo: na América Setentrional, na Europa e na China” [3] (Smith, 1983: 124).

Em Adam Smith, este deixar morrer é agora lei do mercado, o que não é o caso em Malthus. Segundo Smith, os mercados sempre deixam morrer aqueles que no interior das leis do mercado não têm possibilidade de viver e assim deve ser. Faz parte da lei do mercado. O equilíbrio da mão invisível se dá deixando morrer aqueles que caem na miséria. Se voltarmos à citação do Eclesiástico, isso significa que o equilíbrio se conquista pelo assassinato daqueles que sobram.

É claro que para Malthus Smith a tese do Eclesiástico, segundo a qual se trata de um assassinato, não é aceitável. No entanto, Marx insiste nisso e cita no Volume I, de "O Capital", a tese correspondente de Shakespeare, mas desta maneira também o Eclesiástico, do qual Shakespeare reproduz o que disse. Por isso, também Marx sustenta que as afirmações citadas de Malthus e Smith desembocam no assassinato.

É interessante o fato de que Smith apresenta este deixar morrer como consequência de uma lei do mercado. Portanto, há um legislador que condena à morte e este é o mercado.

Desta forma, ou seja, como lei, tudo isso continua válido hoje e o vivemos, precisamente agora, com a condenação do povo grego à miséria, pela qual seguem outras condenações e ainda haverá mais. O poder econômico condena à morte por meio do mercado e executa. É a lei, ou seja, a lei do mercado, que ordena estas condenações. Com isso, dá a permissão para matar e os portadores do poder econômico se tornam agentes “007”.

Esta lei do mercado possui duas dimensões. Uma é a da ética do mercado, da qual fala Max WeberHayek a sintetiza: garantia da propriedade privada e cumprimento dos contratos. O cumprimento dos contratos implica o pagamento das dívidas. Esta ética do mercado é a ética do cumprimento cego: não há razões para se submeter às suas normas, todas são normas formais, um critério de julgamento e de avaliação. Como disse Milton Friedman, valem pela fé no mercado. Vale um rigorismo ético absoluto.

Ao lado desta ética do mercado estão as leis do mercado do tipo deixar morrer os seres humanos que sobram, ou seja, os que não cabem no mercado, segundo a citação deSmith. Leis do mercado deste tipo constantemente são inventadas. Hoje, toda a estratégia de globalização se considera lei do mercado, que precisa ser cumprida cegamente. Isso vale, especialmente, para a submissão de todas as relações sociais às relações do mercado e para a privatização, dentro do possível, de todas as instituições da sociedade.

Ambas as dimensões das leis do mercado estão intimamente relacionadas. Uma não existe sem a outra. Possuem em comum a capacidade de destruição da conveniência humana, seja com os outros seres humanos, seja com a natureza inteira. Então, declara-se esta destruição procedente de uma destruição criativa, da qual falava Schumpeter, usando a expressão destruição criativa de Bakunin, sem citá-lo, obviamente. Não se pode negar que existe esta destruição, mas fazem dela algo tolerável por ser supostamente criativa. Não pesa sobre a consciência moral, mais ainda quando de forma cega se declara que essa destrutividade é criativa. Quem não pode pagar com dinheiro, precisa pagar com sangue. Esse é o princípio do Fundo Monetário Internacional e dos bancos.

O caso maior destes genocídios das últimas décadas ocorreu na Rússia. Disse um autor, baseando-se numa análise sobre isto, na revista inglesa "The Lancet": “Observando que a população ‘perdeu aproximadamente cinco anos de expectativa de vida, entre 1991 e 1994’, os autores sustentam que semelhante degradação das condições de vida é consequência direta das ‘estratégias econômicas implementadas para a passagem do comunismo ao capitalismo’. Aquelas que tinham sido sugeridas, junto com outras, pelos ‘money doctors’ franceses”. [4]

Foram produzidas milhões de mortes. Entretanto, tudo com muita boa consciência. Tão boa consciência que os meios de comunicação quase não mencionaram este grande genocídio.

Os genocídios que se anunciam com o plano para a Grécia possivelmente chegam a resultados parecidos. Também não serão publicados majoritariamente.

A mesma lei, no nosso caso, a lei do mercado, é transformada na força do crime que se comete. Isso me faz lembrar de uma afirmação de São Paulo: “O ferrão da morte é o crime, e a força do crime é a lei” (1 Coríntios 15, 56). [5]

A lei se transforma na força do crime e ativa o ferrão da morte. A lei soluciona todos os problemas de uma possível má consciência daqueles que cometem o crime. Estão cumprindo uma lei e, portanto, não cometem nenhum crime. É justamente isso que agora ocorreu na Grécia. O Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu, oConselho Europeu e os governos de Merkel Sarkozy são declarados inocentes do crime que, efetivamente, cometeram em nome de uma lei que a própria sociedade burguesa promoveu. Trata-se do coração de pedra que precisa ser cultivado em nossos executivos, para que sejam capazes de fazer o que fazem.

Quando se atua desta maneira, a consciência moral gira e se inverte. Tem-se agora má consciência caso os crimes não forem cometidos. Tornam-se, então, um dever no cumprimento da lei.

Isso dificulta muito qualquer crítica das violações dos direitos humanos. Quando Pinochet foi prisioneiro, em Londres, pela suspeita de genocídio e de muitas outras violações dos direitos humanos, Margaret Thatcher o visitou demonstrativamente. Segundo a opinião dela, Pinochet tinha cumprido com a lei ao perseguir violadores da lei. Desta maneira, toda a crítica das violações dos direitos humanos pode ser imunizada.

Cria-se, inclusive, uma posição inversa. Aquele que comete estas violações dos direitos humanos se sente tão livre de qualquer crime que goza de maneira sádica dos sofrimentos daqueles que persegue. Goza aquilo que ele considera como a justiça. Desta maneira, o exercício do poder chega a ser gozo do poder e, ao final, gozo do sofrimento dos outros.

Em 1991, o chefe da NestléMaucher, escreveu um artigo na revista dos empresários alemães, em que declarou que na sua empresa necessitavam de executivos com “Killerinstinkt”, ou seja, com o instinto para matar. [6]

Não é apenas a Nestlé que necessita de “Killerinstinkt” para que seus chocolates ficarem deliciosos, mas também todo o serviço secreto. Não existiriam torturadores, caso não houvesse pessoas com “Killerinstinkt”. Killerinstinkt é o instinto de torturadores que vivem, em sua ação, o gozo sádico. Também a formação das tais chamadas tropas de elite é a formação do “Killerinstinkt” em seus membros. Desenvolveram-se, inclusive, técnicas para fomentar este instinto. Este Killerinstinkt é necessário para o fomento, tanto da violência direta, como da violência do deixar morrer em nome do mercado.

Trata-se do gozo da desgraça e da dor do outro. Trata-se do sadismo. O sadismo é o óleo da máquina do poder. Este fato está visível em todos os lados, porém quase todos se cuidam muito em analisá-lo ou denunciá-lo. É um segredo.

A alternativa

Esse assassinato ordenado pelo mercado jamais é a única alternativa, embora sempre seja interpretado pelos meios de comunicação como tal. Sempre existe a alternativa da regulação e da canalização dos mercados, como foi possível após a II Guerra Mundial. Porém, necessariamente significa a intervenção nos privilégios daqueles que possuem o poder econômico. No entanto, nossa sociedade vive tal idolatria do poder, que essa alternativa não é considerada com o resultado de que toda a sociedade tem se transformado em assassina e criminosa.

Atualmente, a tarefa é desenvolver uma sociedade capaz de regular e canalizar o mercado num tal nível que já não pode pronunciar condenação de morte. Essa é a sociedade da qual se trata.

Considerações finais

Para o que foi escrito, apoiei-me num recente e extraordinário discurso de Theodorakis, assim como também em posições de Jean Ziegler. Posições deste tipo em nossos meios de comunicação são, de forma uníssona, caracterizadas como extremismos. Participar destes genocídios econômicos é considerado realismo. Rejeitá-lo é extremismo. Assim é que precisa ser numa sociedade organizada pelos responsáveis destes genocídios.

Theodorakis estava presente no tempo da ocupação militar da Grécia pelas tropas alemães, durante a II Guerra Mundial, na qual se realizou um saqueamento de todo o país e o assassinato de aproximadamente um milhão de pessoas. Foi membro da resistência grega e conheceu pessoalmente as prisões da Gestapo. Depois da guerra, a Alemanha, que era a responsável, não tinha nenhuma dívida com a Grécia. De qualquer forma, estas dívidas eram impagáveis e, portanto, foram anuladas. No entanto, hoje a Grécia também deve para a Alemanha somas absolutamente impagáveis, mas a Alemanha não anula as dívidas e exige seu pagamento até o último centavo. Mais uma vez a Alemanha fará, em nome desta dívida, um completo saque deste país e realizará um genocídio econômico sem piedade. E na Alemanha aparece apenas a resistência diante deste escândalo. Uma das poucas exceções é Günter Grass, que, no entanto, foi maltratado por quase todos os meios de comunicação. A Alemanha, que uma vez se proclamava o país dos poetas e dos pensadores, destrói suas raízes. E uma destas raízes é a Grécia.

Em seu discurso, Theodorakis disse que agora todo o campo está livre para a privatização, inclusive a Acrópole. Não tenho dúvida de que o capital alemão, com gosto, é capaz de comprá-la e declará-la propriedade de algum banco alemão. E os filósofos alemães? Irão celebrar este fabuloso êxito? E o que dirá Hölderlin? [7]


Notas


[1] Thomas Morus, no ano de 1516, dizia: "But I do not think that this necessity of stealing arises only from hence; there is another cause of it, more peculiar to England.' 'What is that?' said the Cardinal: 'The increase of pasture,' said I, 'by which your sheep, which are naturally mild, and easily kept in order, may be said now to devour men and unpeople, not only villages, but towns; for wherever it is found that the sheep of any soil yield a softer and richer wool than ordinary, there the nobility and gentry, and even those holy men, the abbots not contented with the old rents which their farms yielded, nor thinking it enough that they, living at their ease, do no good to the public, resolve to do it hurt instead of good. They stop the course of agriculture, destroying houses and towns, reserving only the churches, and enclose grounds that they may lodge their sheep in them". (http://en.wikipedia.org/wiki/Enclosure )
[2] Isso é muito consciente. Camila Vallejo, uma das vozes do movimento chileno, dizia: “É preciso apostar numa linguagem que chegue até o mais humilde, o mais pobre. E isso é algo que devemos tratar com inteligência, sem perder o conteúdo. É uma recomendação, e seguir em frente, pois esta luta não é somente dos chilenos, mas é uma luta de todos os jovens, de todos os estudantes, de todos os povos do mundo, é a luta pela dignidade humana e pela recuperação de nossos direitos para alcançar essa dignidade que todos queremos, e para consolidar sociedades mais humanas”.
[3] SmithAdam (1983). La riqueza de las naciones (Tomo I). Barcelona: Editorial Bosch.
[4] RenautLambert: Los economistas en campaña. Le Monde Diplomatique. Bogotá, março 2012, p. 13. Cita como sua fonte: David StucklerLawrence KingMartin MckeeMass privatisation and the post-communist mortality crisis: a cross-national analysis. The Lancet, Volume 373, Issue 9661, Páginas 399-407, Londres, 31 janeiro 2009.
Pode-se ler algo parecido em Naomi KleinKleinN. (2008) A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
[5] São Paulo fala de algo que geralmente se traduz como pecado. Todo crime é pecado, embora nem todo pecado seja um crime. Por isso, corrigi a tradução usual, porque a palavra pecado não transmite o que Paulo está dizendo.
Ver Hinkelammert, F. (2010). La maldición que pesa sobre la ley: las raíces del pensamiento crítico en Pablo de Tarso. San José: Arlekín.
[6]  vgl. Arbeitgeber, 1/91. Gemäss Spieler, Willy: Liberale Wirtschaftsordnung – Freiheit für die Starken? In: Neue Wege. Setembro, 2002, Zürich.
[7] Ver o discurso de Theodorakis com o título: La verdad sobre Grecia: (http://www.contrainjerencia.com/?p=39245).


Fonte: IHU Unisinos

segunda-feira, 10 de junho de 2013

A Pornografia das Frases de Efeito

Por Paulo Brabo, escritor.


Por mais que eu me esforce, não con­sigo pen­sar num fator que tenha con­tri­buído mais para a dilui­ção do impacto da Bíblia, tendo aberto maior bre­cha para uma lei­tura ten­den­ci­osa da sua men­sa­gem, do que o fato de que um dia alguém achou por bem dividi-​​la em versículos.

Um livro como a carta de São Paulo aos Efé­sios, que até aquele momento vinha sendo lido como um todo con­tí­nuo e orgâ­nico, acor­dou no dia seguinte esquar­te­jado de modo intei­ra­mente arbi­trá­rio, tendo adqui­rido a graça e a agra­da­bi­li­dade de lei­tura de uma pla­ni­lha do Excel. E nunca mais recuperaram-​​se da ope­ra­ção: foi reta­lhado dessa forma que cada livro da Bíblia che­gou até nós.

A divi­são em ver­sí­cu­los teve a infe­li­ci­dade de nas­cer mais ou menos ao mesmo tempo em que vinha à luz a tec­no­lo­gia dos tipos móveis de Gutem­berg – e tec­no­lo­gia sig­ni­fi­cou desde sem­pre uma coisa: não há erro for­tuito que não possa ser repro­du­zido indefinidamente.

O estrago para a inte­gri­dade da Bíblia foi enorme e, em grande parte, irre­ver­sí­vel. Mesmo diante de um texto cor­rido temos a ten­dên­cia eu e você à sele­ção e à par­ci­a­li­dade. A nova e for­jada frag­men­ta­ção con­vi­dava, pra­ti­ca­mente exi­gia, que cada iso­lada por­ção do texto bíblico fosse memo­ri­zada e enten­dida fora do seu con­texto. No caso da carta aos Efé­sios, por exem­plo, encon­tra­ram ple­ni­po­ten­ciá­ria con­sa­gra­ção entre os pro­tes­tan­tes os ver­sos oito e nove do segundo capí­tulo: por­que pela graça sois sal­vos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que nin­guém se glo­rie – ver­sos a par­tir nos quais os pro­tes­tan­tes fun­da­men­ta­ram sua tese de que a fé é essen­cial e as boas obras secun­dá­rias. Porém a arbi­trá­ria divi­são em ver­sí­cu­los dei­xou o raci­o­cí­nio de Paulo para sem­pre incom­pleto, seu argu­mento para sem­pre sus­penso e sepa­rado da frase seguinte, que qua­li­fica o que foi dito e intro­duz uma enorme revi­ra­volta: por­que somos fei­tura sua, cri­a­dos em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus pre­pa­rou de ante­mão para que andás­se­mos nelas.

A divi­são em ver­sí­cu­los, além de favo­re­cer a lei­tura sele­tiva, incen­ti­vou a feti­chi­za­ção pura e sim­ples dos tex­tos atin­gi­dos por ela, com a con­se­quente anu­la­ção do seu sig­ni­fi­cado. Na ver­dade, os tex­tos sagra­dos prestam-​​se par­ti­cu­lar­mente, por sua pró­pria natu­reza, à feti­chi­za­ção; o reta­lha­mento da Bíblia em ver­sí­cu­los ape­nas acen­tuou essa ten­dên­cia e faci­li­tou o processo.

Feti­chi­zar um texto é inflá-​​lo ao extremo, é recortá-​​lo e memorizá-​​lo e emoldurá-​​lo e reproduzi-​​lo em letras cada vez mai­o­res até dre­nar por com­pleto e tor­nar ina­ces­sí­vel o seu sig­ni­fi­cado ori­gi­nal: até que as pala­vras, dou­ra­das mas cegas, reme­tam a tudo e a nada.

Um emblema escan­da­loso da feti­chi­za­ção da Bíblia pro­mo­vida pela divi­são em ver­sí­cu­los é a caixa de pro­mes­sas (dis­po­ní­vel em diver­sos for­ma­tos na livra­ria evan­gé­lica mais pró­xima de você): uma cai­xi­nha cheia de file­tes colo­ri­dos de papel, cada um con­tendo um ver­sí­culo iso­lado da Bíblia cui­da­do­sa­mente sele­ci­o­nado para que você, lendo, sinta-​​se amado, com os flan­cos cober­tos e a pros­pe­ri­dade asse­gu­rada. Quando está pra baixo você abre a caixa e puxa uma pro­messa ao acaso, como quem lê um bis­coito da sorte: a satis­fa­ção é garan­tida, ou você pode pedir o seu espí­rito crí­tico de volta[1].

Cinco sécu­los se pas­sa­ram sem gran­des novi­da­des, porém é pre­ciso lem­brar que as ideias medío­cres dos homens dor­mem, mas não des­can­sam. Ficam em estado letár­gico, aguar­dando que novas tec­no­lo­gias per­mi­tam que arruínem-​​se as ideias gran­des e boas. E, claro, esta é a gera­ção em que esse momento che­gou: num espaço de 30 anos, os últi­mos, o com­pu­ta­dor ele­trô­nico gerou o com­pu­ta­dor pes­soal, o com­pu­ta­dor pes­soal tomou para si côn­ju­ges e for­mou a rede local, a rede local teve rela­ções extra­con­ju­gais e gerou a inter­net, e a inter­net pariu as redes sociais.

Esta­mos ins­truí­dos e capa­ci­ta­dos, colo­ni­za­do­res que somos das pai­sa­gens vir­tu­ais, e o que era impos­sí­vel é agora ine­vi­tá­vel. O twit­ter nos ensi­nou a divi­dir a rea­li­dade em por­ções iso­la­das de 140 carac­te­res, e quando a rea­li­dade tomba a lite­ra­tura não tarda a cair. Somos milhões de escri­bas e ama­nu­en­ses, intei­ra­mente pron­tos para ver­si­cu­la­ri­zar – con­ver­ter reso­lu­ta­mente em ver­sí­cu­los – toda a lite­ra­tura mun­dial, e tabulá-​​la em tra­ba­lho volun­tá­rio nos murais sempre-​​deslizantes das redes soci­ais. Não há admi­ra­dor bem-​​intencionado que não viva saque­ando a obra de poe­tas e roman­cis­tas, filó­so­fos e ensaís­tas, san­tos e com­po­si­to­res, crí­ti­cos e humo­ris­tas de todas as épo­cas, esquar­te­jando resig­na­da­mente suas ideias de modo a fazê-​​las caber nos esca­ni­nhos do twit­ter e dos gifs ani­ma­dos. Somos um mundo inteiro de taxi­der­mis­tas, e não des­can­sa­re­mos até que os melho­res e os pio­res tex­tos do mundo tenham sido redu­zi­dos a fra­ses de efeito e gotas de sabedoria.

Era ine­vi­tá­vel: as redes soci­ais, que vivem da feti­chi­za­ção e da con­se­quente anu­la­ção de todas as coi­sas, não teriam como dei­xar de seques­trar o poder da lite­ra­tura. O Face­book, em par­ti­cu­lar, assu­miu o papel de bana­li­za­dor supremo, dre­nando a vita­li­dade de tudo na expe­ri­ên­cia humana que já teve algum inte­resse e algum valor. A lite­ra­tura, aquela velha dama, não esca­pou dessa indig­ni­dade. No mural do seu Face­book alternam-​​se ver­sos pis­can­tes da Bíblia, fra­ses de Luís Fer­nando Verís­simo, pen­sa­men­tos fal­sa­mente atri­buí­dos a Sha­kes­pe­are, pro­vo­ca­ções de Gandhi, cita­ções de Mia Couto, poe­mas ani­ma­dos de Casi­miro de Abreu, letras de Chico Buar­que, péro­las de sabe­do­ria de Abraham Lin­coln e papa Fran­cesco e Bren­nan Man­ning e Dalai Lama e Mar­tin Luther King e Paulo Coe­lho e Eugene Peter­son e Richard Daw­kins e Malba Tahan e Tols­toi e coi­sas que Sha­kes­pe­are real­mente disse e Diego Mai­nardi. Tudo devi­da­mente ver­si­cu­la­ri­zado, empa­lhado e feti­chi­zado: peda­ços de carne, ao mesmo tempo expos­tos para a admi­ra­ção pública e sepa­ra­dos do corpo.

Essa, como dizia minha avó, é a hora da queima: a hora da sis­te­má­tica caixa-​​de-​​promessização de tudo neste mundo que já foi belo, humano e sagrado. Feti­chi­zar a Bíblia foi tarefa para ama­do­res; sente-​​se aí e assista enquanto reta­lha­mos cada página jamais escrita até a des­fi­gu­ra­ção completa.

Outro dia minha irmã, que está no Face­book, tro­pe­çou ali em ima­gens colo­ri­das que emol­du­ra­vam fra­ses ins­pi­ra­ti­vas – pra­ti­ca­mente Pre­ci­o­sas Pro­mes­sas – do Paulo Brabo (mais um motivo para não estar no Face­book, não?). Sendo minha irmã, ela achou meio sinis­tra aquela tie­ta­gem e me escre­veu per­gun­tando se não me inco­moda saber que coi­sas que escrevo andam cir­cu­lando pela net na forma de gotas de sabedoria.

Res­pondi que sim, claro que me inco­moda, mas que ela não devia estra­nhar por encon­trar no Face­book algo que é tão típico do Face­book: a feti­chi­za­ção de uma coisa que em outro lugar tal­vez fizesse sen­tido e tivesse o seu valor. E con­cluí que o que de fato me irrita é pen­sar que nas redes soci­ais encon­tram des­tino igual­mente indigno auto­res melhores.

Natu­ral­mente, encon­tro como todo mundo pra­zer diante de uma ideia magis­tral­mente cons­truída e arti­cu­lada – diga­mos, esta de Bor­ges: apaixonar-​​se é criar uma reli­gião cujo Deus é falí­vel. Ou esta, minha: mil gênios podem não aju­dar, mas um idi­ota faz toda a dife­rença.

Porém há um mar entre apre­ciar uma frase na cum­pli­ci­dade de uma página e reduzi-​​la a pérola de sabe­do­ria. É, pra­ti­ca­mente, a dife­rença entre fazer amor e ficar exci­tado diante de uma ima­gem de sexo que você encon­tra na inter­net. Há entre as duas coi­sas uma rela­ção mais do que casual, e você pode acre­di­tar que nesta vida há espaço para as duas coi­sas, mas são ven­tos que falam de des­ti­nos diferentes.



[1] A caixa de promessas é também conhecida pelo nome aliterado de Preciosas Promessas; os produtos complementares da mesma linha, Memoráveis Maldições e Estressantes Exigências, nunca chegaram a conquistar uma grande fatia de mercado.