Por Franz Hinkelammert, teólogo e economista.
Vivemos numa economia que depende do crescimento, porém cada vez está mais evidente que o crescimento está chegando aos seus limites.
As ameaças globais
Estamos enfrentando três grandes ameaças globais concretas: a exclusão da população, a subversão das relações sociais e a ameaça à natureza. Entretanto, a maior delas é outra: é a inflexibilidade absoluta da estratégia de globalização. É, de fato, a verdadeira ameaça, porque esta ameaça torna impossível enfrentar as outras ameaças mencionadas.
Trata-se de uma ameaça que, de maneira alguma, é um produto necessário de um mundo tornado global. Na realidade, a estratégia da globalização é completamente incompatível com o fato de que o mundo chegou a ser um mundo global. Esse é o verdadeiro problema. A estratégia de globalização destrói um modelo tornado global e é incompatível com a existência deste mundo.
O mercado não é um sistema autorregulado. As chamadas forças de autorregulação do mercado não existem. O que existe é uma determinada autorregulação de mercados particulares, não do mercado em seu conjunto. O mercado como conjunto não possui a mínima tendência ao equilíbrio, mas tende sempre de novo e sistematicamente a desequilíbrios. O mercado é pura vontade de poder.
As mencionadas ameaças globais concretas são desequilíbrios do mercado. Em benefício de certos equilíbrios financeiros estas ameaças globais são sistematicamente alargadas.
Contudo, a política do crescimento econômico mostra outro lado: quanto mais se insiste numa cega política de crescimento, maiores são as ameaças globais e, consequentemente, sacrifica-se qualquer política que tente enfrentá-las. Essa é a lógica da estratégia de globalização.
A estratégia de globalização apresenta a si mesma como política de crescimento, porém não é simplesmente isso. É preciso lembrar apenas as características desta estratégia para mostrar o que ela é. É a comercialização de todas as relações sociais, é a privatização como política, que obedece somente a princípios sem maior consideração com a própria realidade. Por isso, nem questiona em que lugar a privatização seria uma solução mais adequada e precisamente onde a propriedade pública representaria uma solução melhor. O fato de que a privatização do Metrô de Berlim (S-Bahn) o arruinou, não é nenhum argumento contrário à sua privatização. Contra determinadas privatizações não há argumentos porque existem somente artigos de fé. Segundo esta fé, todas as esferas da vida devem ser submetidas ao mercado, o que significa usá-las para investimentos do capital. Não apenas qualquer um dos serviços públicos, também as prisões e os exércitos. Como também, é claro, o sistema de educação, o sistema de saúde e do seguro de vida.
Isto é apresentado como se fosse uma política de crescimento, porém é claro que se trata, principalmente, de uma política de acumulação total de capital.
No nosso idioma orwelliano é tudo a mesma coisa: a globalidade do mundo, a estratégia de globalização e a totalização do mercado e da acumulação de capital. Junto a isto, também, a submissão de todas as decisões ao cálculo de custos e utilidades.
O que não se pode perceber é a contradição fundamental da nossa atual sociedade: a contradição entre um mundo tornado global e a universalização desta estratégia de globalização.
Esta política de maximização do crescimento, hoje, tocou seus limites. O que o relatório do Clube de Roma, em 1972, anunciava com o título “Os limites do crescimento”, hoje é real. A crise de 2008 não é simplesmente uma crise do sistema financeiro, mas o começo de uma crise produzida pelos limites do crescimento, constantemente notável e sem remédio. O que se dá é a rebelião dos limites.
A crise de 2008 eclodiu após um extraordinário aumento no preço do petróleo. O que acarretava em dificuldades de pagamento, que tornaram obrigatórios a venda de títulos financeiros, que agora quase não possuem valor no mercado. Isso levou a uma crise financeira que estourou a bolha financeira do sistema financeiro. Foram os limites do crescimento que levaram a esta crise financeira, que se reforçou a si mesma pelo fato de que todo o sistema financeiro foi corrupto porque se baseava em títulos financeiros sem nenhum valor.
De 1987 até 2007, o consumo de petróleo aumentou aproximadamente um terço. Trata-se de um aumento próximo de 15%, com um crescimento econômico próximo de 5%. Este crescimento não seria possível sem o correspondente aumento do consumo de petróleo e, por isso, sem um aumento correspondente da produção de petróleo. Voltar a ter um crescimento no consumo de petróleo parecido, nos próximos 20 anos, parece um pouco impossível. Enquanto ainda não há um substituto importante para o petróleo, parece impossível, também, um crescimento do produto social mundial deste tamanho.
Não somente o petróleo demonstra limites. Em todos os setores da economia surgem produtos imprescindíveis para um processo de crescimento comparável que se apresentam escassos sem que se encontrem substitutos adequados com a agilidade que seria necessária. Muda, também, a situação mundial de início. A crise ambiental determinará, cada vez mais, limites para este processo de crescimento, que em algum momento terão que ser levados em conta.
A busca de substitutos para o petróleo tem inclusive consequências perversas. Atualmente, a produção agrária ainda se expande, mas a produção de alimentos, ao contrário, tende a baixar. Milho, soja, óleo de palma, açúcar e muitos outros produtos são transformados em combustível para automóveis. Nos Estados Unidos, é o caso de mais de um terço da produção de milho. No século XVI, na Inglaterra se dizia: as ovelhas devoram as pessoas. Esta situação levou tal terror para a população expulsa do campo, que o roubo de uma galinha era castigado com a pena capital. Hoje, teríamos que dizer: os automóveis devoram as pessoas. Os automóveis têm rendas elevadas. Os famintos, ao contrário, não têm nenhum poder de compra. O que hoje se entende por ação racional é que os automóveis, em nome da ação racional, devem ter preferência. O conceito de racionalidade da nossa vigente teoria da ação racional é perfeitamente perverso. [1]
Por esta razão, dificilmente parece possível manter um nível de crescimento como nas décadas passadas. O que se pode esperar é o aumento do crescimento em prazos mais curtos, mas que logo volta a entrar em colapso: uma espécie de decadência do sistema. Todos os planos para uma retomada do crescimento devem levar isso em conta.
Derrubamos todos os limites e hoje chegamos a novos limites, que antes a humanidade nem suspeitava. O ser humano é um ser infinito atravessado pela finitude. Trata-se da finitude do ser humano que descobriu que é infinito, e que, justamente por isso, choca-se de novo com a finitude. Porém, não é a finitude do pensamento anterior, como, por exemplo, do pensamento grego.
A crise da dívida
Até agora falamos de desequilíbrios provocados e inauditamente reforçados pelo mercado de mercadorias: a exclusão da população, a subversão das relações sociais e a ameaça à natureza. Trata-se de desequilíbrios da vida real. Porém, também aparecem desequilíbrios em relação ao próprio mercado que reforçam de maneira assombrosa os mencionados desequilíbrios da vida real. Neste sentido, o desequilíbrio mais importante vem dos processos de endividamento.
Atualmente, encontramo-nos novamente num destes processos de endividamento, que desta vez se refere, sobretudo, aos países europeus. O endividamento chega a um tamanho tal que se torna impagável para os países mais endividados. O fato de que a dívida se torna impagável é exatamente o negócio dos bancos. Para as burocracias privadas, das grandes empresas e dos bancos, trata-se da grande oportunidade. Os países endividados agora são saqueados sem a mínima possibilidade de defesa. Tudo o que é interessante para o capital, agora é vendido a preço mínimo. No entanto, as dívidas não baixam, mas muitas vezes aumentam. Aqueles economicamente mais potentes, dos países afetados, possuem participação neste negócio, ainda que apenas como sócios minoritários. O país que não tem condições de pagar, precisa pagar ao menos o que pode, perdendo assim a sua independência. Quando é dado um limite ao endividamento, isto acontece porque só é possível saquear apenas o que há. O cálculo da máfia é feito quando se calcula o “protection money”. Será sacado o máximo possível, mas não exageradamente, para que seja possível continuar roubando no futuro. Os países endividados perdem sua autonomia e os bancos maximizam – como atores “racionais” que são – seu “protection money”.
Passamos por uma situação de endividamento parecida à dos anos 1980 na América Latina. Os ajustes estruturais que foram impostos a estes países levaram ao saque de todo um continente. Em grande parte, o Estado social foi dissolvido e foi privatizado tudo o que era possível. Produziu-se uma assombrosa miséria das populações, e uma destruição da natureza, maiores do que em qualquer época histórica anterior. O endividamento foi a alavanca que tornou possível submeter toda a América Latina à estratégia de globalização, que é cega e jamais produz razões.
Os mesmos ajustes estruturais hoje são impostos aos países endividados da Europa, porém, desta vez, são impostos pelos próprios Estados da Europa, que fazem isto porque o capital tem o poder de impor esta política a estes mesmos Estados. A crise da dívida se transforma num gigantesco processo de expropriação que aquiesce uma espécie de acumulação primitiva, que acompanha toda a história do capitalismo.
Não quero tentar apresentar o que poderia ser a solução. Ao contrário, quero apresentar o fato de que em nossa história há um caso em que foi solucionada uma crise de endividamento visando evitar o desencadeamento destes processos de destruição. Isto ocorreu no caso da crise de endividamento resultante do final da II Guerra Mundial.
Uma semelhante crise da dívida tinha ocorrido após a I Guerra Mundial. No entanto, neste caso não se buscava uma solução, mas se impôs simplesmente pagamentos máximos, sem considerar sequer as resultantes consequências destrutivas. Esta cegueira dogmática foi uma das principais razões para o êxito posterior do nazismo, na Alemanha, que provocou a II Guerra Mundial. Keynes, que tinha participado das negociações de paz de Versalhes, em 1919, havia advertido sobre o perigo de um desdobramento deste tipo, em consequência da atitude dos ganhadores, em seu livro sobre estas negociações em Versalhes.
Após a II Guerra Mundial, o tratamento da dívida foi muito diferente. Pode-se até dizer que foi muito razoável e acertado. Quero brevemente sintetizar esta política, para discutir posteriormente por que isto foi possível depois da II Guerra Mundial, e quais as razões para hoje não se tirar nenhum aprendizado desta experiência. Ao contrário, nem se menciona esta experiência.
Em sua essência, tratava-se das seguintes medidas, aplicadas coordenadamente:
1. Partia-se de uma anulação quase completa de todas as dívidas da Europa Ocidental, inclusive da Alemanha. Isso se deu, em grande parte, como moratória de longo prazo. Durante o tempo destas moratórias, sobre as dívidas não pagas, não se calculava juros. Isso foi fixado, em 1953, no acordo de Londres sobre as dívidas.
2. Sobre esta postergação do pagamento foram dados novos créditos sem juros e sem devolução em longo prazo. Trata-se dos créditos do plano Marshall. Transformaram-se nos países receptores em “revolving fonds”.
3. Fundou-se uma União Europeia de Pagamento para evitar o surgimento de novas relações de endividamento entre os países europeus inclusos. Os desequilíbrios da balança comercial entre estes países não foram financiados por créditos comerciais. Os saldos positivos dos países mais exitosos financiaram o déficit de outros países sem cobrar juros.
4. Altos impostos sobre rendimentos de capital e altos rendimentos em geral. Imposto de herança, das propriedades.
5. Fundou-se o Estado social. Aumentaram significativamente os gastos sociais naquilo que se chamou Estado de Bem-estar. Depois, chamou-se a isto de rosto humano do capitalismo.
Esse é o núcleo desta política muito razoável, que conquistou um considerável êxito. Sem esta política, a recuperação econômica da Europa teria demorado muito mais.
A pergunta que precisamos fazer é a seguinte: por que era possível esta política após a II Guerra Mundial e não após a I Guerra Mundial? E a outra pergunta é: por que esta política após a II Guerra Mundial, no entanto, é impossível diante da atual crise da dívida, como também não era possível nos anos 1980, na América Latina?
A razão é clara. Começava a guerra fria na relação com a União Soviética, e os partidos comunistas eram muito fortes, sobretudo, na França e na Itália. O sistema capitalista parecia ameaçado em sua própria existência.
O sistema percebeu o perigo e por isso reagiu como um sistema global. Isso levou a medidas completamente incompreensíveis do ponto de vista da lógica do capitalismo, mas que são compreensíveis como medidas de combate na guerra fria. Neste sentido, tratava-se de uma economia de guerra, que interrompeu a lógica do capitalismo no interior do próprio capitalismo. Até mesmo os altos gastos sociais, do ponto de vista do poder econômico, eram gastos de guerra. No fundo, dinheiro disponibilizado, que precisava ser gasto, simplesmente para vencer uma guerra.
O fato de que se tratava efetivamente de custos de guerra, nota-se também no caso dos Estados Unidos, que renunciaram ao pagamento das dívidas de guerra, em relação aos países da Europa ocidental, mas não ao pagamento das grandes dívidas de guerra da União Soviétiva do Lend-Lease-Act, de 1941 – aproximadamente 10 bilhões de dólares. Pretendia fazer negócio “as usual”. Quando a União Soviética rejeitou esta exigência, foi denunciada pelo não cumprimento do contrato.
Estas medidas limitaram extraordinariamente o poder do sistema bancário e seu negócio com a miséria das populações. Efetivamente, renunciaram e até participaram da planificação destas medidas para salvar o sistema. Não o fizeram por levar em conta as necessidades da população.
Certamente, sem estas medidas teria acontecido algo possivelmente pior do que ocorreu após a I Guerra Mundial.
Isso demonstra muito bem que os banqueiros, mas também os políticos, sabem muito bem da catástrofe perfeitamente desnecessária que origina sua política de cobrança cega da dívida e que, igualmente, sabem muito bem qual seria a efetiva e, além disso, humana solução para uma crise da dívida. Eles escolhem conscientemente o crime implicado na imposição do pagamento indiscriminado.
Atualmente, eles não veem nenhuma razão para medidas deste tipo, porque não há uma resistência correspondente. Tampouco perceberam alguma razão para tais medidas durante a crise da dívida, dos anos 1980, na América Latina e no Terceiro Mundo. No tempo de Reagan, nos Estados Unidos, isto era dito abertamente: por que continuar jogando dinheiro e lançar pérolas aos porcos, se o perigo para o sistema já passou? E nossos meios de comunicação nos apresentam isso todos os dias.
Os banqueiros e os políticos hoje sabem muito bem as catástrofes sociais que estão produzindo, mas não veem a mínima razão para limitar o negócio que estão fazendo com a miséria das populações e da natureza. A prova para o fato que tudo isso é visto hoje, está no fato de que isto era visto perfeitamente após a II Guerra Mundial, mas quase ninguém fala. Sacrificamos vidas humanas e realizamos grandes genocídios e sabemos disto em nosso subconsciente. Os economistas inventam qualquer coisa como pretexto e para isso são pagos. Todos sabem, mas quase todos respeitam o tabu tão bem guardado em volta destes genocídios.
O que foi a solução após a II Guerra Mundial, é algo absolutamente único na história do capitalismo. A crise da dívida é um negócio muito bom para se renunciar a ele, a não ser que isso se torne inevitável para que seja assegurada a própria existência do sistema. Quanto pior a crise da dívida, melhor é o negócio oferecido quando um país já não pode pagar. Neste caso, ao prestamista passa a pertencer tudo o que há no país. Hoje, podemos ver isto na Grécia, onde está a caminho um genocídio econômico deste tipo. Isto irá se estender para muitos outros países. No final, chegará até aos países dominantes, porque o poder econômico também quer um saqueamento do próprio país, da mesma maneira como é feito em países estrangeiros. Os Estados Unidos avançaram mais neste sentido, mas a Alemanha também passará exatamente pelo mesmo, após acabar com os outros países da Europa.
Caso tudo isso ainda não seja suficiente, os governos dos países pouco endividados precisam respaldar as dívidas dos outros para que a banca não quebre e continue dando sua contribuição para o “progresso”. No entanto, nos aproximamos de uma situação em que, de repente, nem a totalidade de todos os governos possa respaldar estas dívidas. Quando só é possível pagar as dívidas com novas dívidas, a dívida total cresce sem nenhum limite, na velocidade da progressão dos juros compostos. Devoram tudo. Inclusive, os Estados Unidos se encontram hoje num tal automatismo da dívida, cujo fim ninguém pode prever.
As medidas que vão sendo tomadas são exatamente contrárias ao que se fez diante da crise da dívida após a II Guerra Mundial, mas nem se discute este fato. Atualmente, propor uma reação à crise da dívida, como aconteceu após a II Guerra Mundial – é claro, sem copiar mecanicamente –, é considerado coisa de malucos, além de extremista. Em nossa sociedade hipócrita, quem rejeita estes genocídios econômicos é considerado extremista, e quem os apoia é moderado e realista.
Para nós, do ponto de vista da nossa sociedade, está claro: o capitalismo já não necessita de um rosto humano e, por isso, todos os gastos sociais e todas as considerações de uma humanização da sociedade significam dinheiro desperdiçado.
O esvaziamento da democracia
Temos apontado dois elementos decisivos da atual crise. Por um lado, a estratégia de globalização chegou a ser o obstáculo decisivo para obter uma resposta frente às grandes ameaças para o nosso mundo: a exclusão de partes cada vez maiores da população mundial, a dissolução interna das relações sociais e a cada vez mais perceptível destruição da natureza. Por outro lado, a total subordinação da política ao automatismo da dívida transformou-se no motor deste processo destrutivo.
São os países democráticos, ou seja, aqueles que arrogantemente se apresentam como as democracias modelo, que impõem esta política ao mundo inteiro. Até agora, estes países possuem maiorias internas para esta política e declaram todos os governos que não aceitam incondicionalmente esta política, como não-democráticos. Quando eles se submetem a esta política são democráticos, mesmo que seus presidentes se chamem Pinochet ou Mubarak. Ao menos são democráticos em sua essência, embora não em sua aparência. Este critério é o das democracias modelo, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa. Com este critério democratizam o mundo.
Porém, por que há maiorias a favor desta deficiência mental? Brecht dizia: somente os vitelos maiores e tontos escolhem, eles próprios, seus carniceiros (Nur die allergrössten Kälber wählen ihre Schlächter selber). Contudo, continuam escolhendo-os. Embora às vezes não.
Trata-se do que se chama soberania popular, que supostamente vale nas democracias modelo: todo poder sai do povo. No entanto, esta soberania popular tem um ponto problemático. Atualmente, consiste em que o povo declara soberanamente que o poder econômico e, portanto, o Capital, é o soberano. Na Alemanha, a chanceler Merkel disse: “a democracia deve estar de acordo com o mercado”. Isso foi dito numa linguagem muito específica. Foi dito que o mercado é um ser autorregulado que não deve sofrer a intervenção de nenhuma vontade humana e, portanto, também não da vontade expressa nas escolhas do soberano popular. A União Europeia entende isso como o conteúdo central da sua constituição.
Essa é exatamente a afirmação segundo a qual o Capital é o soberano, que precisa ser confirmado pela soberania popular. Segundo nossos apologetas da soberania do Capital, a soberania popular deixa de ser democrática caso não afirmar esta soberania do Capital. Na linguagem de Rousseau, isso significa - embora não corresponda completamente ao que disse Rousseau -, que a vontade geral (volonté général) é esta decisão da soberania popular que declara e assume a soberania do Capital e que esta não pode ser mudada pela vontade de todos (volonté de tous). Portanto, a soberania popular que não afirma a soberania do Capital é antidemocrática, inclusive totalitária. Pinochet e Mubarak são democráticos pelo fato de que impõem a vontade geral (volonté général), embora não sejam eleitos. Estão de acordo com o mercado, como o disse a Frau Merkel.
Este é o esvaziamento da democracia, da forma como tomou lugar nas democracias modelo. O povo renuncia à sua soberania e a entrega ao poder econômico, que se faz presente como Capital. Os métodos para conquistar isto são muitos. Quero mencionar apenas dois, que tem um caráter central: a criação da opinião pública, no sentido de uma opinião publicada, e a ampla determinação da política pelo financiamento das eleições.
No momento atual, o domínio sobre os meios de comunicação está quase totalmente nas mãos de sociedades de capital, que são suas proprietárias. Estes meios de comunicação se baseiam na liberdade de imprensa, que é a liberdade dos proprietários dos meios de comunicação. Estes se financiam por uma espécie de subsídio, na forma de propaganda comercial paga, que são pagas, principalmente, por outras sociedades de capital. Quanto mais os meios de comunicação pressupõem grandes capitais, mais se transformam em instâncias de controle da opinião pública e, portanto, da liberdade de opinião. Para estes meios de comunicação, não há outra liberdade de opinião a não ser a liberdade particular de seus proprietários e de suas fontes de financiamento. Esta garante a liberdade de imprensa.
O direito humano não é a liberdade de imprensa, mas a liberdade de opinião de todos e, portanto, universal. Entretanto, ao fazer da liberdade de imprensa o único critério para os direitos de opinião nos meios de comunicação, a liberdade de imprensa tem se transformado num instrumento sumamente eficaz para o controle da liberdade da opinião universal. Esta é limitada, embora somente em certa medida, pelos meios de comunicação públicos, na medida em que exercem uma autonomia efetiva. Berlusconi, como proprietário da grande maioria dos meios de comunicação na Itália, podia expressar até com trompetes sua opinião sem quase nenhuma contestação. No entanto, um dos canais de televisão que lhe fez oposição, era um canal da televisão pública, a RAI. Não podia intervir porque possuía uma autonomia assegurada pelo direito. Por outro lado, o presidente Reagan assegurou seu poder, em boa parte, por sua indiscriminada política de privatização dos meios de comunicação, inclusive com um conflito duríssimo com aUNESCO, da qual retirou seu financiamento. Com isso, assegurou um domínio incontestado sobre o direito humano da liberdade de opinião nos Estados Unidos.
Para os políticos, trata-se de um sério limite porque necessitam dos meios de comunicação para se mostrar presentes, como também as suas posições políticas. Porém, para eles, a condição para este acesso é reconhecer o poder econômico, portanto, o capital como o soberano de fato.
Uma situação muito parecida acontece em quase todos os processos eleitorais. Um participante importante nas eleições, e muitas vezes decisivo, é o poder econômico como o verdadeiro soberano. Sempre participa, porém sua presença é invisível e podemos somente derivá-la. Este grande outro está presente até mesmo quando ele próprio não tem consciência. Está presente nas escolhas dos candidatos, nos discursos e nos meios de comunicação.
Com isso, a política recebe uma nova e muito importante função. Para ter êxito, quase sempre precisa representar este grande outro para os eleitores, que aparentemente sempre representa. Necessita fazer isso de uma forma que aparentemente os cidadãos decidam eles mesmos por sua própria vontade que este grande outro é o soberano real. O político de sucesso é, então, aquele cuja representação do grande outro é vivida pelos cidadãos como a própria decisão deles mesmos.
Os Indignados na Espanha se deram conta deste caráter da democracia esvaziada que os dominava e lhes tira qualquer possibilidade de participação. Por isso, exigiram “democracia real já”, diante de um sistema que se apresenta, inclusive através da polícia, como a democracia verdadeira.
Por isso, a soberania popular não deixa de ser algo real e efetivo. Que os cidadãos tomem consciência da soberania popular é o grande perigo para esta democracia das democracias modelo. A soberania popular não é o resultado de uma lei que a reconhece; muito pelo contrário, a lei que a reconhece parte do fato de que um povo que se sabe soberano e que atua correspondentemente assim, é efetivamente soberano, haja a lei ou não. É esta soberania popular que nossas democracias têm que transformar em soberania do mercado e do Capital; contudo, com isso, podem fracassar, e temem este resultado quando começam os levantes populares democráticos.
Hoje, estes levantes estão em curso e outros se anunciam. Em 2001, começamos na Argentina. Paralelamente, apareceram governos de esquerda como na Venezuela, Bolívia e Equador, que rejeitam colocar a soberania do mercado e do Capital no lugar da soberania popular. É por isso que na opinião pública publicada das democracias ocidentais são considerados não-democráticos.
No entanto, com uma força muito especial, apareceram estes movimentos populares, em 2011, nos países árabes, sobretudo da África do Norte. Então, isso levou ao movimento dos indignados na Espanha no mesmo ano.
Nas democracias ocidentais surgiu a voz de alarme. Quando se mostrava entusiasmo, quase sempre era simples palavreado. No entanto, precisavam aceitar a democratização em alguns países árabes. Em seguida, foi oferecido apoio, mas este apoio sempre era para a mesma coisa: fundar democracias que coloquem a soberania do mercado e do Capital no lugar da soberania popular. Querem “democracias verdadeiras”. Isso parece ainda mais fácil quando a rebelião dos movimentos populares se dirige contra os regimes ditatoriais, embora estes regimes ditatoriais sempre tivessem contado, anteriormente, com o apoio quase absoluto de nossas democracias modelo. Por isso, amigos da liberdade, como Mubarak e Kadhafi, foram declarados monstros de um dia para o outro. Antes eram bons, agora são maus. Porém, por trás disso havia somente a preocupação de também criar democracias esvaziadas nestes países, como são atualmente as democracias ocidentais. Democracias como as já criadas no Iraque e no Afeganistão. Uma coisa está clara: os movimentos democráticos rebeldes não querem, de modo algum, democracias modelo como as que foram criadas no Iraque e no Afeganistão.
Nesse caminho seguiram os levantes democráticos na Espanha e, por conseguinte, no interior de uma destas democracias modelo ocidentais. Também este movimento anseia por democracia. Deixa bem claro que enfrentam uma democracia em que os políticos - quase todos - fazem a política dos poderes do mercado e do capital, e representam a estes como os poderes soberanos. Na Argentina, em 2001, estes rebeldes gritaram: “que se vayan todos”.
Na Espanha, o nome dado a este movimento, que antes já tinha sido dado a alguns movimentos árabes, é significativo. Denominam-se indignados. Significa que se sentem como seres humanos cuja dignidade foi desprezada e pisada. O próprio sistema dominante transformou-se num sistema de negação da dignidade humana [2].
Este movimento tem se alargado cada vez mais, com novas ampliações de seu conteúdo, mantendo, no entanto, sua identidade. Isso ocorreu com os protestos no Chile contra a comercialização do sistema de educação e de saúde. Ao mesmo tempo, aconteceu nos Estados Unidos, com o movimento “Occupy Wall Street”, e está se expandindo para o mundo inteiro. Um de seus lemas era: “stop trading with our future”, colocando no centro, outra vez, a exigência do reconhecimento da dignidade humana.
Apresentam seus interesses, mas os apresentam a partir de um ponto de vista: o da dignidade humana. É o que também se encontra nos movimentos democráticos árabes. Seres humanos protestam e se rebelam porque são violados em sua dignidade humana. Querem outra democracia porque a violação de sua dignidade humana é um produto da própria lógica da democracia esvaziada. Estas democracias ocidentais apenas podem rir quando escutam as palavras dignidade humana. Nada disso existe, esse é o núcleo desta nossa democracia esvaziada. O lugar da dignidade humana está ocupado pela consideração do ser humano como capital humano, porque se acredita que isto é “realista”. Porém, nos faz compreender a forma como o Ocidente esvaziou bem democraticamente a dignidade humana e a fez desaparecer. Trata-se da transformação do ser humano em capital humano e da sua total subordinação ao cálculo da utilidade. Certamente, o capital humano não tem dignidade humana, é altamente niilista.
É disso que trata a rebelião em nome da dignidade humana. E não somente da dignidade humana, mas também da dignidade da natureza. Os seres humanos não são capital humano e a natureza não é capital natural. Existe algo como a dignidade. Há muito tempo, as democracias ocidentais esqueceram isso. Contudo, trata-se da recuperação da dignidade humana: o tratamento digno do ser humano, do outro ser humano, de si mesmo e também da natureza.
Os indignados não falam em nome de interesses e da utilidade a ser atingida. Falam em nome da sua dignidade humana, em cima da qual não é possível fazer nenhum cálculo de utilidade. Certamente, comer tem utilidade, mas não representa uma diminuição da utilidade, mas uma violação da dignidade humana. Isso nenhum cálculo da utilidade pode mudar. No entanto, nossa sociedade é tão desumanizada que este horizonte da dignidade humana quase desapareceu, pela consequência de que quase todos se interpretam ou se deixam interpretar como capital humano. O que precisamos fazer com a pessoa humana, quem indica é o mercado. E o mercado diz aquilo que dizem os nossos banqueiros. E os políticos dizem o que primeiro dizem os banqueiros. Por isso, se o mercado aponta algo como útil, em qualquer momento o genocídio pode começar. Então, o mercado se transforma naquilo que Stiglitz chamou de as armas financeiras da destruição em massa, que hoje realizam o seu trabalho na Grécia e na Espanha.
O poder econômico deixa morrer, o poder político executa. Ambos matam, embora com meios diferentes. Por isso, o poder político tem que justificar a morte, enquanto o poder econômico tem que justificar a razão pela qual deixa morrer e não intervém no genocídio ditado pelo mercado. Ambos são assassinos. Nenhuma destas justificativas significa mais do que a simples ideologia de obsecados.
O assassinato por meio do deixar morrer
A denúncia do assassinato ordenado pelo poder econômico tem história. Na Bíblia judaica é expressamente denunciado: “Mata o próximo quem lhe tira seus meios de vida, e derrama sangue quem priva o operário de seu salário” (Eclesiástico 34, 22).
Bartolomeu de las Casas decidiu ser um dos defensores dos indígenas da América baseando-se neste texto, que lê e medita, e através do qual se converte. São os indígenas que são vítimas de assassinatos deste tipo. O Eclesiástico denuncia, igualmente, este assassinato.
No final do mesmo século XVI, Shakespeare assume este tipo de denúncia e a coloca na boca de Shylock, o personagem do Mercador de Veneza: “Tiram-me a vida se me tiram os meios pelos quais vivo”.
Esta problemática aparece novamente nos séculos XVIII e XIX. Começa-se a falar sobre o "laissez faire": "laissez faire, laissez passer". Os críticos o tomaram ironicamente: "laissez faire, laissez mourir". Porém, especialmente importante é Malthus que insiste em: "laissez mourir", em vez de "laissez faire". Adam Smith disse a mesma coisa, da seguinte maneira: “Na sociedade civil, somente entre as pessoas de classes inferiores do povo é que a escassez de alimentos pode impor limites à multiplicação da espécie humana, e isto não pode ser verificado de outro modo do que destruindo aquela escassez uma grande parte dos filhos produzidos por seus fecundos matrimônios... Assim é, como a escassez de homens, ao modo que as mercadorias regulam necessariamente a produção da espécie humana: aviva-a quando segue lenta e a contém quando se aviva muito. Esta mesma demanda de homens, ou solicitude e busca de mãos trabalhadoras que fazem falta para o trabalho, é a que regula e determina o estado de propagação, na ordem civil, em todos os países do mundo: na América Setentrional, na Europa e na China” [3] (Smith, 1983: 124).
Em Adam Smith, este deixar morrer é agora lei do mercado, o que não é o caso em Malthus. Segundo Smith, os mercados sempre deixam morrer aqueles que no interior das leis do mercado não têm possibilidade de viver e assim deve ser. Faz parte da lei do mercado. O equilíbrio da mão invisível se dá deixando morrer aqueles que caem na miséria. Se voltarmos à citação do Eclesiástico, isso significa que o equilíbrio se conquista pelo assassinato daqueles que sobram.
É claro que para Malthus e Smith a tese do Eclesiástico, segundo a qual se trata de um assassinato, não é aceitável. No entanto, Marx insiste nisso e cita no Volume I, de "O Capital", a tese correspondente de Shakespeare, mas desta maneira também o Eclesiástico, do qual Shakespeare reproduz o que disse. Por isso, também Marx sustenta que as afirmações citadas de Malthus e Smith desembocam no assassinato.
É interessante o fato de que Smith apresenta este deixar morrer como consequência de uma lei do mercado. Portanto, há um legislador que condena à morte e este é o mercado.
Desta forma, ou seja, como lei, tudo isso continua válido hoje e o vivemos, precisamente agora, com a condenação do povo grego à miséria, pela qual seguem outras condenações e ainda haverá mais. O poder econômico condena à morte por meio do mercado e executa. É a lei, ou seja, a lei do mercado, que ordena estas condenações. Com isso, dá a permissão para matar e os portadores do poder econômico se tornam agentes “007”.
Esta lei do mercado possui duas dimensões. Uma é a da ética do mercado, da qual fala Max Weber. Hayek a sintetiza: garantia da propriedade privada e cumprimento dos contratos. O cumprimento dos contratos implica o pagamento das dívidas. Esta ética do mercado é a ética do cumprimento cego: não há razões para se submeter às suas normas, todas são normas formais, um critério de julgamento e de avaliação. Como disse Milton Friedman, valem pela fé no mercado. Vale um rigorismo ético absoluto.
Ao lado desta ética do mercado estão as leis do mercado do tipo deixar morrer os seres humanos que sobram, ou seja, os que não cabem no mercado, segundo a citação deSmith. Leis do mercado deste tipo constantemente são inventadas. Hoje, toda a estratégia de globalização se considera lei do mercado, que precisa ser cumprida cegamente. Isso vale, especialmente, para a submissão de todas as relações sociais às relações do mercado e para a privatização, dentro do possível, de todas as instituições da sociedade.
Ambas as dimensões das leis do mercado estão intimamente relacionadas. Uma não existe sem a outra. Possuem em comum a capacidade de destruição da conveniência humana, seja com os outros seres humanos, seja com a natureza inteira. Então, declara-se esta destruição procedente de uma destruição criativa, da qual falava Schumpeter, usando a expressão destruição criativa de Bakunin, sem citá-lo, obviamente. Não se pode negar que existe esta destruição, mas fazem dela algo tolerável por ser supostamente criativa. Não pesa sobre a consciência moral, mais ainda quando de forma cega se declara que essa destrutividade é criativa. Quem não pode pagar com dinheiro, precisa pagar com sangue. Esse é o princípio do Fundo Monetário Internacional e dos bancos.
O caso maior destes genocídios das últimas décadas ocorreu na Rússia. Disse um autor, baseando-se numa análise sobre isto, na revista inglesa "The Lancet": “Observando que a população ‘perdeu aproximadamente cinco anos de expectativa de vida, entre 1991 e 1994’, os autores sustentam que semelhante degradação das condições de vida é consequência direta das ‘estratégias econômicas implementadas para a passagem do comunismo ao capitalismo’. Aquelas que tinham sido sugeridas, junto com outras, pelos ‘money doctors’ franceses”. [4]
Foram produzidas milhões de mortes. Entretanto, tudo com muita boa consciência. Tão boa consciência que os meios de comunicação quase não mencionaram este grande genocídio.
Os genocídios que se anunciam com o plano para a Grécia possivelmente chegam a resultados parecidos. Também não serão publicados majoritariamente.
A mesma lei, no nosso caso, a lei do mercado, é transformada na força do crime que se comete. Isso me faz lembrar de uma afirmação de São Paulo: “O ferrão da morte é o crime, e a força do crime é a lei” (1 Coríntios 15, 56). [5]
A lei se transforma na força do crime e ativa o ferrão da morte. A lei soluciona todos os problemas de uma possível má consciência daqueles que cometem o crime. Estão cumprindo uma lei e, portanto, não cometem nenhum crime. É justamente isso que agora ocorreu na Grécia. O Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu, oConselho Europeu e os governos de Merkel e Sarkozy são declarados inocentes do crime que, efetivamente, cometeram em nome de uma lei que a própria sociedade burguesa promoveu. Trata-se do coração de pedra que precisa ser cultivado em nossos executivos, para que sejam capazes de fazer o que fazem.
Quando se atua desta maneira, a consciência moral gira e se inverte. Tem-se agora má consciência caso os crimes não forem cometidos. Tornam-se, então, um dever no cumprimento da lei.
Isso dificulta muito qualquer crítica das violações dos direitos humanos. Quando Pinochet foi prisioneiro, em Londres, pela suspeita de genocídio e de muitas outras violações dos direitos humanos, Margaret Thatcher o visitou demonstrativamente. Segundo a opinião dela, Pinochet tinha cumprido com a lei ao perseguir violadores da lei. Desta maneira, toda a crítica das violações dos direitos humanos pode ser imunizada.
Cria-se, inclusive, uma posição inversa. Aquele que comete estas violações dos direitos humanos se sente tão livre de qualquer crime que goza de maneira sádica dos sofrimentos daqueles que persegue. Goza aquilo que ele considera como a justiça. Desta maneira, o exercício do poder chega a ser gozo do poder e, ao final, gozo do sofrimento dos outros.
Em 1991, o chefe da Nestlé, Maucher, escreveu um artigo na revista dos empresários alemães, em que declarou que na sua empresa necessitavam de executivos com “Killerinstinkt”, ou seja, com o instinto para matar. [6]
Não é apenas a Nestlé que necessita de “Killerinstinkt” para que seus chocolates ficarem deliciosos, mas também todo o serviço secreto. Não existiriam torturadores, caso não houvesse pessoas com “Killerinstinkt”. Killerinstinkt é o instinto de torturadores que vivem, em sua ação, o gozo sádico. Também a formação das tais chamadas tropas de elite é a formação do “Killerinstinkt” em seus membros. Desenvolveram-se, inclusive, técnicas para fomentar este instinto. Este Killerinstinkt é necessário para o fomento, tanto da violência direta, como da violência do deixar morrer em nome do mercado.
Trata-se do gozo da desgraça e da dor do outro. Trata-se do sadismo. O sadismo é o óleo da máquina do poder. Este fato está visível em todos os lados, porém quase todos se cuidam muito em analisá-lo ou denunciá-lo. É um segredo.
A alternativa
Esse assassinato ordenado pelo mercado jamais é a única alternativa, embora sempre seja interpretado pelos meios de comunicação como tal. Sempre existe a alternativa da regulação e da canalização dos mercados, como foi possível após a II Guerra Mundial. Porém, necessariamente significa a intervenção nos privilégios daqueles que possuem o poder econômico. No entanto, nossa sociedade vive tal idolatria do poder, que essa alternativa não é considerada com o resultado de que toda a sociedade tem se transformado em assassina e criminosa.
Atualmente, a tarefa é desenvolver uma sociedade capaz de regular e canalizar o mercado num tal nível que já não pode pronunciar condenação de morte. Essa é a sociedade da qual se trata.
Considerações finais
Para o que foi escrito, apoiei-me num recente e extraordinário discurso de Theodorakis, assim como também em posições de Jean Ziegler. Posições deste tipo em nossos meios de comunicação são, de forma uníssona, caracterizadas como extremismos. Participar destes genocídios econômicos é considerado realismo. Rejeitá-lo é extremismo. Assim é que precisa ser numa sociedade organizada pelos responsáveis destes genocídios.
Theodorakis estava presente no tempo da ocupação militar da Grécia pelas tropas alemães, durante a II Guerra Mundial, na qual se realizou um saqueamento de todo o país e o assassinato de aproximadamente um milhão de pessoas. Foi membro da resistência grega e conheceu pessoalmente as prisões da Gestapo. Depois da guerra, a Alemanha, que era a responsável, não tinha nenhuma dívida com a Grécia. De qualquer forma, estas dívidas eram impagáveis e, portanto, foram anuladas. No entanto, hoje a Grécia também deve para a Alemanha somas absolutamente impagáveis, mas a Alemanha não anula as dívidas e exige seu pagamento até o último centavo. Mais uma vez a Alemanha fará, em nome desta dívida, um completo saque deste país e realizará um genocídio econômico sem piedade. E na Alemanha aparece apenas a resistência diante deste escândalo. Uma das poucas exceções é Günter Grass, que, no entanto, foi maltratado por quase todos os meios de comunicação. A Alemanha, que uma vez se proclamava o país dos poetas e dos pensadores, destrói suas raízes. E uma destas raízes é a Grécia.
Em seu discurso, Theodorakis disse que agora todo o campo está livre para a privatização, inclusive a Acrópole. Não tenho dúvida de que o capital alemão, com gosto, é capaz de comprá-la e declará-la propriedade de algum banco alemão. E os filósofos alemães? Irão celebrar este fabuloso êxito? E o que dirá Hölderlin? [7]
Notas
[1] Thomas Morus, no ano de 1516, dizia: "But I do not think that this necessity of stealing arises only from hence; there is another cause of it, more peculiar to England.' 'What is that?' said the Cardinal: 'The increase of pasture,' said I, 'by which your sheep, which are naturally mild, and easily kept in order, may be said now to devour men and unpeople, not only villages, but towns; for wherever it is found that the sheep of any soil yield a softer and richer wool than ordinary, there the nobility and gentry, and even those holy men, the abbots not contented with the old rents which their farms yielded, nor thinking it enough that they, living at their ease, do no good to the public, resolve to do it hurt instead of good. They stop the course of agriculture, destroying houses and towns, reserving only the churches, and enclose grounds that they may lodge their sheep in them". (http://en.wikipedia.org/wiki/Enclosure )
[2] Isso é muito consciente. Camila Vallejo, uma das vozes do movimento chileno, dizia: “É preciso apostar numa linguagem que chegue até o mais humilde, o mais pobre. E isso é algo que devemos tratar com inteligência, sem perder o conteúdo. É uma recomendação, e seguir em frente, pois esta luta não é somente dos chilenos, mas é uma luta de todos os jovens, de todos os estudantes, de todos os povos do mundo, é a luta pela dignidade humana e pela recuperação de nossos direitos para alcançar essa dignidade que todos queremos, e para consolidar sociedades mais humanas”.
[3] Smith, Adam (1983). La riqueza de las naciones (Tomo I). Barcelona: Editorial Bosch.
[4] Renaut, Lambert: Los economistas en campaña. Le Monde Diplomatique. Bogotá, março 2012, p. 13. Cita como sua fonte: David Stuckler, Lawrence King, Martin Mckee: Mass privatisation and the post-communist mortality crisis: a cross-national analysis. The Lancet, Volume 373, Issue 9661, Páginas 399-407, Londres, 31 janeiro 2009.
Pode-se ler algo parecido em Naomi Klein: Klein, N. (2008) A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
[5] São Paulo fala de algo que geralmente se traduz como pecado. Todo crime é pecado, embora nem todo pecado seja um crime. Por isso, corrigi a tradução usual, porque a palavra pecado não transmite o que Paulo está dizendo.
Ver Hinkelammert, F. (2010). La maldición que pesa sobre la ley: las raíces del pensamiento crítico en Pablo de Tarso. San José: Arlekín.
[6] vgl. Arbeitgeber, 1/91. Gemäss Spieler, Willy: Liberale Wirtschaftsordnung – Freiheit für die Starken? In: Neue Wege. Setembro, 2002, Zürich.
[7] Ver o discurso de Theodorakis com o título: La verdad sobre Grecia: (http://www.contrainjerencia.com/?p=39245).
Fonte:
IHU Unisinos