Há quase 20 anos o antropólogo Ronaldo de Almeida estuda as religiões pentecostais brasileiras. Em seu novo livro, "A Igreja Universal e seus demônios" (Terceiro Nome/Fapesp), ele faz um resumo da expansão do pentecostalismo no Brasil, e examina uma das protagonistas desse crescimento, a Igreja Universal do Reino de Deus. Pesquisador do Cebrap e professor da Unicamp, Almeida mostra como o antagonismo com outras religiões (em especial a umbanda) é fundamental para a Universal definir sua identidade. Nesta entrevista, o antropólogo analisa esse processo de "satanização da fé inimiga", e explica como o discurso da Universal se adapta às exigências do capitalismo contemporâneo.
Você diz que é no confronto com outras religiões que a Igreja Universal define seus contornos. Poderia falar um pouco sobre isso?
A tese do livro é que a Igreja Universal constituiu seu universo simbólico tendo como referência principal o seio do qual é fruto (os evangélicos pentecostais) mas também teve como contraponto esse caldo religioso "católico-afro-kardecista" disseminado pela sociedade brasileira. Ela é uma religiosidade que assimila e re-elabora conteúdos simbólicos e práticas rituais de outras religiões localizando-os no pólo negativo da fé cristã. Em resumo, suas práticas passam pela demonização do outro, mas ao mesmo tempo incorpora suas formas de apresentação. Assim, ela nos dá a impressão de combater aquilo do qual se alimenta o seu próprio discurso religioso. Daí o titulo "A Igreja Universal e seus demônios", que a meu ver sintetiza uma de suas formas de expansão.
A umbanda é a principal "antagonista" religiosa da Universal? Por que você acha que ela fez essa escolha?
A umbanda, devido à própria imagem de uma religião que trabalha com espíritos, alguns destes considerado "das trevas", é entendida pela Universal como a causadora dos males da vida (problemas familiares, financeiros, doenças etc). Isto fica mais explícito nos cultos de exorcismo. Mas também não podemos perder de vista que a Igreja Católica é pensada como uma adversária devido à devoção aos santos e às suas imagens, o que é considerada pela Universal como idolatria. Além disso, a Igreja Católica é um adversário forte devido ao enraizamento na sociedade brasileira. Mas o que é importante reter é que no processo de expansão da Universal ocorre este mecanismo de satanização da fé inimiga, que em outros países serão outras práticas religiosas.
Que tipo de ethos é formado e transmitido nos cultos da Universal?
Esta é uma questão ampla, mas destacaria dois aspectos: a intolerância com as religiões alheias e e um forte incentivo à prosperidade financeira, não propriamente por meio do trabalho formal mas a partir do estímulo a uma postura empreendedora por parte dos fiéis. A meu ver, este segundo aspecto está em sintonia com o contexto de crescente informalidade no mundo do trabalho que exigem soluções criativas e autônomas para a geração de renda. É menos uma ética do trabalho típica do protestantismo clássico e mais uma "viração" no mundo do trabalho para ter uma ascenção social sem culpa.
E como a Universal se relaciona com a tradição pentecostal brasileira? O que a distingue de outras pentecostais?
Além dessa questão da prosperidade financeira, destaco a interação entre os fiéis. Uma das características do meio protestante e pentecostal é a lógica congregacional, onde templos abrigam uma comunidade de fiéis que convivem por muitos anos entre si, gerando forte lações de amizade e parentesco. Não quero dizer que isto não ocorra na Universal, mas a arquitetura de seus templos (grandes salões), as várias reuniões que são realizadas diariamente, a rotatividade dos pastores entre os templos, entre outros aspectos, não favorecem o fortalecimento dos laços horizontais entre os fiéis como nas igrejas pentecostais mais clássicas. Parece-me uma religiosidade muito mais de massa, de fluxo e midiática que se contrapõe ao ethos congregacional dos "irmãos de fé" encontrado mais explicitamente nas igrejas protestantes como Batista e Presbiteriana e pentecostais tradicionais como a Assembléia de Deus e Congregação Cristã do Brasil. Convém destacar, no entanto, que devido ao sucesso deste modelo no arregimento de fiéis, algumas igrejas mais tradicionais começam a copiar o modelo da Universal.
Como se deu a chegada e expansão do pentecostalismo no Brasil?
A literatura sobre o tema costuma organizar a expansão do pentecostalismo em três momentos. O primeiro deu-se com a chegada em São Paulo, em 1910, de um missionário presbiteriano italiano que conheceu o recém-nascido pentecostalismo nos Estados Unidos e fundou a Congregação Cristã do Brasil no bairro do Brás; e a vinda de missionários suecos para Belém do Pará, em 1911, também via Estados Unidos, que fundaram a Assembléia de Deus. O segundo momento refere-se ao surto de expansão nos anos 50, sobretudo com a Cruzada Nacional de Evangelização, também vinda dos Estados Unidos e liderada pela Igreja do Evangelho Quadrangular, que gerou posteriormente as igrejas Deus é Amor e o Brasil Para Cristo. O terceiro momento, também chamado de neopentecostalismo, ocorreu como um processo autóctone a partir do final dos anos 70, do qual surgiram a Igreja Universal, a Internacional da Graça do Reino de Deus, a Renascer em Cristo, dentre outras. Creio que o importante a reter é que se o pentecostalismo é um fenômeno planetário, o Brasil se tornou um pólo emissor dessa religiosidade para outras partes do mundo, sobretudo África, América Latina e mais timidamente para Europa e o próprio Estados Unidos.
É possível hoje traçar um perfil do fiel pentecostal? Quem seria?
No ano que vem, 2010, o pentecostalismo completará 100 anos de Brasil, e o que vemos não é apenas a sua expansão numérica mas também a sua diversificação interna. Creio que falar genericamente do perfil do fiel pentecostal é simplesmente redutor. Temos aquele da teologia da prosperidade, outros ligados a movimentos sociais com militância política, outros mais voltados para uma estética e estilo de vida "gospel", como também aquele crente mais tradicional com homens usando ternos e as mulheres usando obrigatoriamente vestidos e cabelos compridos. Enfim, meu livro sobre a Igreja Universal, sem perder de vista esta diversidade interna, concentra-se em um determinado perfil, que embora específico é um exemplo paradigmático do pentecostalismo contemporâneo.
Fonte: Prosa Online - O Globo
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Você diz que é no confronto com outras religiões que a Igreja Universal define seus contornos. Poderia falar um pouco sobre isso?
A tese do livro é que a Igreja Universal constituiu seu universo simbólico tendo como referência principal o seio do qual é fruto (os evangélicos pentecostais) mas também teve como contraponto esse caldo religioso "católico-afro-kardecista" disseminado pela sociedade brasileira. Ela é uma religiosidade que assimila e re-elabora conteúdos simbólicos e práticas rituais de outras religiões localizando-os no pólo negativo da fé cristã. Em resumo, suas práticas passam pela demonização do outro, mas ao mesmo tempo incorpora suas formas de apresentação. Assim, ela nos dá a impressão de combater aquilo do qual se alimenta o seu próprio discurso religioso. Daí o titulo "A Igreja Universal e seus demônios", que a meu ver sintetiza uma de suas formas de expansão.
A umbanda é a principal "antagonista" religiosa da Universal? Por que você acha que ela fez essa escolha?
A umbanda, devido à própria imagem de uma religião que trabalha com espíritos, alguns destes considerado "das trevas", é entendida pela Universal como a causadora dos males da vida (problemas familiares, financeiros, doenças etc). Isto fica mais explícito nos cultos de exorcismo. Mas também não podemos perder de vista que a Igreja Católica é pensada como uma adversária devido à devoção aos santos e às suas imagens, o que é considerada pela Universal como idolatria. Além disso, a Igreja Católica é um adversário forte devido ao enraizamento na sociedade brasileira. Mas o que é importante reter é que no processo de expansão da Universal ocorre este mecanismo de satanização da fé inimiga, que em outros países serão outras práticas religiosas.
Que tipo de ethos é formado e transmitido nos cultos da Universal?
Esta é uma questão ampla, mas destacaria dois aspectos: a intolerância com as religiões alheias e e um forte incentivo à prosperidade financeira, não propriamente por meio do trabalho formal mas a partir do estímulo a uma postura empreendedora por parte dos fiéis. A meu ver, este segundo aspecto está em sintonia com o contexto de crescente informalidade no mundo do trabalho que exigem soluções criativas e autônomas para a geração de renda. É menos uma ética do trabalho típica do protestantismo clássico e mais uma "viração" no mundo do trabalho para ter uma ascenção social sem culpa.
E como a Universal se relaciona com a tradição pentecostal brasileira? O que a distingue de outras pentecostais?
Além dessa questão da prosperidade financeira, destaco a interação entre os fiéis. Uma das características do meio protestante e pentecostal é a lógica congregacional, onde templos abrigam uma comunidade de fiéis que convivem por muitos anos entre si, gerando forte lações de amizade e parentesco. Não quero dizer que isto não ocorra na Universal, mas a arquitetura de seus templos (grandes salões), as várias reuniões que são realizadas diariamente, a rotatividade dos pastores entre os templos, entre outros aspectos, não favorecem o fortalecimento dos laços horizontais entre os fiéis como nas igrejas pentecostais mais clássicas. Parece-me uma religiosidade muito mais de massa, de fluxo e midiática que se contrapõe ao ethos congregacional dos "irmãos de fé" encontrado mais explicitamente nas igrejas protestantes como Batista e Presbiteriana e pentecostais tradicionais como a Assembléia de Deus e Congregação Cristã do Brasil. Convém destacar, no entanto, que devido ao sucesso deste modelo no arregimento de fiéis, algumas igrejas mais tradicionais começam a copiar o modelo da Universal.
Como se deu a chegada e expansão do pentecostalismo no Brasil?
A literatura sobre o tema costuma organizar a expansão do pentecostalismo em três momentos. O primeiro deu-se com a chegada em São Paulo, em 1910, de um missionário presbiteriano italiano que conheceu o recém-nascido pentecostalismo nos Estados Unidos e fundou a Congregação Cristã do Brasil no bairro do Brás; e a vinda de missionários suecos para Belém do Pará, em 1911, também via Estados Unidos, que fundaram a Assembléia de Deus. O segundo momento refere-se ao surto de expansão nos anos 50, sobretudo com a Cruzada Nacional de Evangelização, também vinda dos Estados Unidos e liderada pela Igreja do Evangelho Quadrangular, que gerou posteriormente as igrejas Deus é Amor e o Brasil Para Cristo. O terceiro momento, também chamado de neopentecostalismo, ocorreu como um processo autóctone a partir do final dos anos 70, do qual surgiram a Igreja Universal, a Internacional da Graça do Reino de Deus, a Renascer em Cristo, dentre outras. Creio que o importante a reter é que se o pentecostalismo é um fenômeno planetário, o Brasil se tornou um pólo emissor dessa religiosidade para outras partes do mundo, sobretudo África, América Latina e mais timidamente para Europa e o próprio Estados Unidos.
É possível hoje traçar um perfil do fiel pentecostal? Quem seria?
No ano que vem, 2010, o pentecostalismo completará 100 anos de Brasil, e o que vemos não é apenas a sua expansão numérica mas também a sua diversificação interna. Creio que falar genericamente do perfil do fiel pentecostal é simplesmente redutor. Temos aquele da teologia da prosperidade, outros ligados a movimentos sociais com militância política, outros mais voltados para uma estética e estilo de vida "gospel", como também aquele crente mais tradicional com homens usando ternos e as mulheres usando obrigatoriamente vestidos e cabelos compridos. Enfim, meu livro sobre a Igreja Universal, sem perder de vista esta diversidade interna, concentra-se em um determinado perfil, que embora específico é um exemplo paradigmático do pentecostalismo contemporâneo.
Fonte: Prosa Online - O Globo
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