quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A isca e o anzol

A religião se propõe a explicar a realidade sempre, desde sempre. Para isso usa modelos. Proposto um modelo de explicação, segue-se o ajustamento dos eventos contingenciais dentro dos contornos que partem dos efeitos para interpretar as causas. Acomoda-se na constatação irreversível de uma desgraça, com o diagnóstico tardio dos prenúncios.

Pra que então religião, coisa inútil que só serve pra cutucar o obvio? Marx já dizia que religião é necessária apenas como instrumento de denuncia dos esquemas alienantes de uma sociedade.

A religião presta um desfavor à sociedade ao parir o religioso, que folga no escrutínio do irredutível e incontornável com certa aura de sabedor da trama invisível que movimenta as mínimas ações no mundo sensível.

O religioso sempre encontra nas máximas e sentenças prontas o consolo e o ajuste do seu mundo, que embora desgraçado, lhe parece o melhor dos mundos possíveis, nas mãos de um ídolo, cujas estratégias de comoção ele conhece e domina com maestria. O evangélico recusa o rótulo de religioso, no entanto seu comportamento reproduz os mesmos modelos que ele, com a boca nega, mas com os gestos efetiva.

A religião evangélica produziu um tipo de religioso ainda pior do que o que já normalmente faz. Nas cercanias do povo de Deus esse tipo de religioso fundou uma banca que atende pelo nome de “ministério profético”. Cada vez mais comuns e abundantes no arraial de Jeová Cerol - para usar e expressão do Danilo Fernandes -, estes têm por hábito dar o alarme quando o caldo já entornou. A vovó Maria Conga que atende na Rua Ceci reivindica para si o mesmo dom, e ainda ganha uns trocados.

Quem se propõe a dar um veredito quando as evidências demonstram por A mais B e com mais detalhes, inclusive das estatísticas, a ocorrência de um evento, demonstra sua inutilidade profética, revelando-se um autêntico agoureiro do futuro. Foi assim na época das Tsunamis na Indonésia, foi assim no terremoto do Haiti, foi assim nas enchentes que devastaram a cidade de São Luis do Paraitinga, está sendo assim nos deslizamentos que estão engolindo casas, sonhos, expectativas e vidas no Rio de Janeiro.

Depois da tragédia, enquanto ainda se contam os mortos e feridos, aqui e ali podem se ouvir os vaticínios tardios ecoarem, apontando as causas e decretando que se isso não for suficiente o inferno aguarda os impenitentes - como se já não estivessem vivenciando um. Verificando os efeitos tais profetas assinalam o que em ocasião são pretextos; vodu, idolatria, luxúria, resistência ao evangelho, etc. Alguém chegou a sugerir que no Rio depois da festa da carne na Sapucaí sem cair uma gota sequer na cachimônia dos fanfarrões a cobrança da conta literalmente desabou no atacado sobre a cidade.

Assim, a chuva torrencial que caiu em Niterói foi o meio de silenciar com terra na goela quem só recebeu educação pela pedra. A religião evangélica com seus profetas munidos de um bisturi mal amolado opera o nervo exposto - os despossuídos - de um sistema falido e isentam os verdadeiros culpados por empurrar para as encostas dos morros quem na vida até a dignidade lhe foi negada.

Meus joelhos doem diante de um bom motivo que me traga fé nessa gente.
Estes têm em mãos a isca e o anzol, os versículos chaves e a exegese.
Apelar para a coerência é enfadar no tédio da mesma arenga de sempre.

Enquanto louvam JEOVÁ-TSIDKENU, pela ferida aberta, imploram à JEOVÁ-RAFÁ que ao menos assopre aonde dói. Oferecem fogo estranho no altar dando os créditos e o ônus da tragédia a Deus, ao mesmo tempo em que se debulham em clemência para que Ele conforte as vítimas.

Tapam o sol com a peneira para livrarem a própria pele, pois se admitem que Deus não tem nada a ver com isso, logo, recai sobre alguém, senão a culpa, ao menos o não exercício da responsabilidade exigida pelo Cristo nos evangelhos. Pregam o Jesus que salva, mas agem como Tiago e João ansiosos por condenar, sem saber de que espírito são (Lc 9.54-55).

Incoerência maior impossível. Prefiro a lucidez do Saramago que parece entender desse negócio de crente que anuncia o renascimento de um mundo admirável, mas que está sempre prenhe de um feto indesejado, ao afirmar que a Bíblia nas mãos de gente má intencionada é um perigo, palavras de um ateu convicto, que sozinho é mais coerente do que muito ministério profético.

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