Por Peter Rollins, filósofo e escritor.
Tradução: Paulo Brabo
Perto do final da vida o teólogo e ativista Dietrich Bonhoeffer começou a preocupar-se com o fato de que a compreensão cristã de Deus havia sido em grande parte reduzida ao status de uma muleta psicológica. Ele descreveu essa compreensão como um “Deus ex machina”.
A expressão, que significa “deus proveniente de uma máquina”, refere-se originalmente a uma técnica usada na Grécia antiga, pela qual uma pessoa era descida ao palco através de um mecanismo, a fim de representar a entrada em cena de um ser sobrenatural. O processo, no entanto, ganhou uma má reputação quando muitos dramaturgos de segunda categoria começaram a usar esse artifício de modo indolente e arbitrário. Quando queriam matar um personagem, criar um novo desafio para o protagonista ou resolver um conflito do enredo, essas caras simplesmente arriavam um deus história adentro. Desse modo, o ser sobrenatural não era parte orgânica da história, mas uma presença intrusiva empregada unicamente para fazer o enredo avançar ou resolver alguma questão.
A expressão deus ex machina passou a significar a introdução de um elemento que não faz parte da lógica interna do desdobramento de uma história, mas que é na verdade um artifício deselegante despejado na narrativa só para desempenhar um papel específico.
Para Bonhoeffer, a igreja encara Deus como um deus ex machina. Deus é só uma ideia toscamente despejada no nosso mundo a fim de cumprir uma tarefa. Ele é inserido no mundo em nossos próprios termos a fim de resolver um problema, em vez de expressar uma realidade vivida. O resultado disso é um Deus que simplesmente justifica nossas crenças e nos ajuda a dormir tranquilos. Deus é trazido em cena apenas quando enfrentamos um problema que não se presta a ser resolvido por outros meios. Na visão de Bonhoeffer, esse Deus desempenha o mesmo papel medíocre dos seres sobrenaturais nas peças gregas de terceira categoria.
O resultado é uma fé que só existe nas margens da nossa vida, uma fé que só tem algo a oferecer quando nos sentimos deprimidos, assustados ou diante da morte. Mas e aquela pessoa que gosta de viver e abraça a vida? O Deus que é uma muleta psicológica não parece ter-lhe algo a oferecer. A única opção que resta ao apologista que é confrontado com alguém que de fato aprecia a vida é tentar demonstrar que essa pessoa se recusa a enfrentar a realidade e está na verdade clamando por Deus pela via de sua negação. Se não conseguir convencer essa pessoa feliz de que ela é na realidade infeliz, fica sem outra opção não rejeitá-la como alguém aferrado à rebelião, ao engano e à desobediência.
Embora Bonhoeffer acreditasse que o Deus da religião já havia chegado ao fim de sua carreira no nosso mundo, a realidade parece discordar. Algumas das maiores organizações do mundo são religiosas, e parece não haver um fim para a fila de gente disposta e encher os pratos de coleta daqueles que afirmam ter a solução. Há todo um exército de indivíduos que apoia entusiasticamente os seus ministérios, compra os seus livros e senta-se nos seus bancos. Levar as pessoas a crer em alguma forma de deus ex machina é fácil como levar crianças a acreditar em Papai Noel.
Em contraste, convidar gente a abrir-se para experimentar a dúvida e o desconhecido é muito mais complicado: o Deus da religião nos provê com tamanha estabilidade que a experiência de perdê-lo envolve nada menos do que a aterrorizante experiência de ser abandonado. Tal jornada escuridão adentro pode ser tão pouco natural e tão assustadora que evitamos a todo custo esse caminho estreito, usando até mesmo de violência contra quem nos encoraja a fazê-lo.
Aquele que se compromete com a tarefa de ajudar gente a realmente adentrar o domínio da dúvida, do desconhecido e da ambiguidade precisa ser dez, vinte ou cem vezes melhor do que os que vendem certeza. Se quer convidar pessoas a entrar nesse mundo sombrio e incerto, tem de estar preparado para caminhar ele mesmo por um caminho difícil e por vezes perigoso, pois no processo acaba trazendo à superfície toda uma multidão de ansiedades que gastamos muito tempo e muitos recursos reprimindo.
É compreensível que determinados pastores encham estádios com gente que anseia por solidificar desejos já estabelecidos, reconvertendo gente à aquilo a que já se converteram tantas vezes antes. Levar as pessoas a acreditar é fácil precisamente porque é tão natural em nós. Qualquer pessoa persuasiva pode fazê-lo, e ainda ganhar algum dinheiro no processo. Mas para de fato puxar da tomada o Deus da religião, com toda a ansiedade e angústia que o processo envolve, requer-se coragem.
Pode-se na verdade dizer que requer-se Deus.
Fonte: A Bacia das Almas
Um comentário:
Olá Marcelo!
Ótima reflexão proposta pelo texto. Já compartilhei no facebook.
Um abraço,
Marcos Vichi
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