Por Demétrio Cherobini, cientista social e educador.
Uma transformação social de grande envergadura pode ser considerada pejorativamente, por muitos, um sonho. Pode ser sonho ingênuo, do ponto de vista dos senhores da ordem, uma condição em que superamos um modo de vida no qual existimos como meros meios para fins que nos são alheios. No entanto, há que se levar em conta, são sonhos que não emergem isoladamente nem são eventos acidentais no fluxo constante que é a história.
O que é, pois, sonhar? O que é que são os sonhos (diurnos ou noturnos)? Por que, afinal, sonhamos e desejamos tão ansiosamente, tão entranhadamente a emancipação que nos escapa? O que sabemos, de fato, pela simples constatação empírica diária, é que esse fenômeno existe, é que sonhamos e frequentemente sonhamos acordados (devaneamos). Em algumas situações, na realidade, chegamos a estar face-a-face com o objeto dos nossos sonhos. No entanto, raras são as vezes em que os tocamos. E mais raras ainda são as vezes em que com eles conseguimos permanecer. Por que isso acontece?
Slavoj Zizek arrisca uma resposta em seu brilhante ensaio Mao Tsé-Tung, “Senhor do Desgoverno” marxista, em que apresenta elementos-chave de suas concepções sobre cultura e revolução. Esse escrito foi concebido para servir de apresentação a uma edição de Sobre a prática e a contradição, possivelmente a obra mais célebre do velho líder chinês. Trata-se de um balanço crítico das razões teóricas do fracasso da revolução chinesa em conseguir realizar a “livre associação dos produtores”, a comunidade humana emancipada de que falavam Marx e Engels.
Quais as limitações do pensamento e da práxis política de Mao? Segundo Zizek, o grande problema de seu projeto revolucionário estaria na recusa da ideia hegeliana de síntese enquanto unidade superior entre os contrários. Mao teria razão, explica o filósofo esloveno, em romper com as noções padronizadas de síntese enquanto mero equilíbrio e conciliação entre os opostos, pois, de fato, o conceito de Aufhebung (isto é, de síntese dialética), desenvolvido por Hegel, é muito mais complexo que isso. No entanto, ele insiste unilateralmente em priorizar a luta dos opostos e rejeitar qualquer tipo de síntese (ou de unidade) entre esses pólos.
Ou seja, Mao rejeita a noção vulgar de síntese, mas recusa também, de antemão, que exista qualquer forma
possível de superação dialética. A processualidade do real se daria,
assim, meramente, por meio do confronto entre tese e antítese e nunca se
verificaria o momento da negação da negação. Como explica Zizek:
“Mao rejeita de forma cáustica a
categoria da ‘síntese dialética’ dos contrários, promovendo sua própria
versão da ‘dialética negativa’ – toda síntese é, para ele, em última
instância, o que Adorno em sua crítica a Lukács chamou de erpresste Versöhung
(reconciliação forçada), na melhor das circunstâncias momentânea pausa
na luta verdadeiramente em processo, que ocorre não quando os contrários
estão unidos, mas quando um lado simplesmente vence o outro.” (Zizek,
2008, 19)
Para Mao, em sua “ontologia”, tudo está condenado a se dividir, e nada realmente se sintetiza. Quais são as consequências políticas desse tipo de orientação teórica?
A grosso modo, para a filosofia hegeliana, o real é composto de uma unidade de contrários em permanente luta. Há, para cada afirmação, uma correspondente negação. Desse processo, emerge uma terceira coisa, que é produto da negação da negação. Dito de outro modo: existe, num primeiro “momento”, a tese, que, em seguida, é negada pelo seu contrário; a sua antítese e, desse conflito, surge a síntese, o “terceiro elemento”, um ente que nega a negação realizada pela antítese sobre a síntese.
A síntese é o ápice do processo em que
os contrários lutam entre si e o ser emerge numa terceira configuração,
“qualitativamente diferente” das duas primeiras. Há, dessa maneira, dois
momentos na transformação do ser: o primeiro é a negação; o segundo, o decisivo, corresponde à negação da negação, à síntese hegeliana. Para designar a síntese, Hegel utiliza a palavra alemã Aufhebung, que significa, simultaneamente, negação, conservação e superação.
É esse tipo de raciocínio que Mao rejeita por completo. Para ele,
explica Zizek, só tese e antítese se sucedem, nada de fato se sintetiza e
tudo permanece sempre dividido.
Se não há a síntese, pensa Mao, o
próprio comunismo deve se constituir em uma realidade inerentemente
cindida, produzindo antagonismos fundamentais, teses e antíteses, sem a
possibilidade de alguma Aufhebung. Por recusar a noção de
síntese dialética e assumir apenas a realidade do conflito que se
desenvolve em interminável sucessão de teses e antíteses, Mao acabou
abrindo a possibilidade prática para a reafirmação do conflito entre as
classes, o que, por sua vez, eliminou, segundo Zizek, a viabilidade da
realização do comunismo na China.
A Revolução Chinesa conseguiu, então, negar a tese original – a ordem social anterior -, mas não pôde ir além disso, não realizou a negação da negação. Verificou-se uma mudança na ordem, mas não da própria
ordem, como necessariamente deve haver se se pretende levar a efeito um
processo genuinamente transformador. Nas palavras do filósofo esloveno,
“O problema de Mao foi justamente a
falta de ‘negação da negação’, o fracasso das tentativas de transpor a
negatividade revolucionária em nova ordem verdadeiramente positiva.
Todas as estabilizações temporárias da revolução equivaliam a outras
tantas restaurações da velha ordem, de tal modo que a única forma de
manter a revolução viva era a ‘infinidade espúria’ da negação repetida
interminavelmente, que atingiu seu ápice na Grande Revolução Cultural.”
(ibid, 30)
É nesse preciso sentido que, segundo Zizek, Mao foi o “Senhor do Desgoverno” marxista. O que significa isso?
Na Europa da Idade Média, um dos
costumes das casas feudais era escolher um “senhor do desgoverno”, um
sujeito que, num dia qualquer de festividade, seria considerado o mentor
das atividades gerais. Durante esse dia, a ordem e a hierarquia usuais
estariam abolidas. Os papéis de gênero eram revertidos, os aprendizes
tomavam o lugar dos mestres etc. Mas, quando esse momento de exceção
acabava, os “senhores do desgoverno” e os antigos amos voltavam às suas
ocupações habituais.
O fracasso de Mao, pois, tem a ver com
essa incapacidade de, uma vez instaurado o “desgoverno” – a reversão da
ordem tradicional -, não ter conseguido “negar a negação”, isto é,
transcender completa e radicalmente a própria ordem que foi brevemente
negada. Houve, portanto, uma negação dentro da ordem (isto é, no interior da ordem mesma), mas não da própria ordem.
Dito de outro modo: por um curto período
de tempo, no âmago de uma determinada estrutura de relações sociais,
alguns elementos trocaram de posição. Mas o processo decisivo, de
alterar o sistema que exigia a presença de hierarquia e antagonismo, em
direção a outro, qualitativamente diferente, organizado de forma
horizontal, não se logrou alcançar.
Por isso Zizek afirma que a revolução levada a cabo pelo líder chinês foi certamente negativa, mas de forma alguma foi sintética,
ou “superadora”, isto é, não estabeleceu na prática a “negação da
negação”. Tal foi a fraqueza central do pensamento e da política de Mao.
Faltou-lhe a radicalidade para, uma vez transformada a ordem dentro de certos pressupostos, modificar, em seguida, os próprios pressupostos em que a ordem se assentava. Como explica o filósofo esloveno,
“A verdadeira revolução é a ‘revolução
com revolução’, uma revolução que, em seu transcurso, revoluciona seus
próprios pressupostos iniciais. Hegel pressentiu essa necessidade quando
escreveu: ‘É uma loucura moderna alterar um sistema ético corrupto, sua
constituição e legislação, sem mudar a religião, ter uma revolução sem
reforma.’ Hegel anunciava, assim, a necessidade de uma Revolução
Cultural como condição para o sucesso da revolução social. Isso
significa que o problema com as tentativas revolucionárias até agora não
é que elas tenham sido ‘demasiado extremadas’, mas que não foram suficientemente radicais, que não questionaram seus próprios pressupostos.” (ibid, 33).
Aqui começamos a chegar ao ponto talvez
mais interessante da reflexão do filósofo esloveno. Para ele, como
dissemos, há dois momentos no processo revolucionário: o primeiro é o
que se dá dentro da ordem; o segundo diz respeito à transformação da ordem mesma. A primeira atitude é a da negação; a segunda é a da negação da negação.
A Revolução Chinesa, com todas as transformações sociais, econômicas,
culturais e políticas que promoveu, conseguiu varrer com violência um
velho mundo que, até então, afirmava-se oprimindo a grande nação
oriental. Um ato desse tipo é, sem dúvida, segundo Zizek, a precondição
para que outra formação social nova possa nascer. Mas uma segunda etapa,
a da “invenção da nova vida”, deve acontecer na sequência. Uma situação
em que ocorra “não apenas a construção da nova realidade social na qual nossos sonhos utópicos serão realizados, mas a (re)construção desses próprios sonhos” (ibid, 34.) [grifos nossos].
Entra agora em cena o referencial
psicanalítico com o qual Zizek analisa a sociedade e a cultura no
contexto do capitalismo. Seguindo uma linha interpretativa desenvolvida
anteriormente por intelectuais ligados à chamada Escola de Frankfurt, o
filósofo esloveno toma a cultura como uma objetivação que, no âmbito da sociedade, corresponde àquilo que o sonho
é no plano da existência psíquica individual: a realização de desejos
originados por conflitos desencadeados no pretérito e que continuam a
existir, numa instância “inconsciente”, no presente.
A cultura seria uma espécie de “sonho
coletivo”, no qual se verificam alguns fragmentos de consciência
envoltos num grande oceano de inconsciência. Nas sociedades divididas em
classes, observamos esse conflito fundamental se expressar, de várias
formas, nas obras de arte, na disposição da cidade, na arquitetura, na
moda, nos interiores etc. – e certamente nos ideais políticos, que são,
algumas vezes, o produto mais ou menos acabado da interpretação dos sonhos coletivos produzidos em sociedade.
Na sociedade de classe vigente, o sonho
que muitas vezes a população de oprimidos e infelizes alimenta, ora
velada, ora abertamente – e que as teorias políticas tentam dar conta de
interpretar, de modo a proporcionar que, uma vez que os sujeitos
coletivos estejam conscientes dos seus conflitos, possam vir a
superá-los -, é o sonho, justamente, da emancipação do profundamente arraigado conflito de classes vigente. Nesse contexto, a revolução comunista é como se fosse, literalmente falando, a realização de um sonho cultivado coletivamente.
Ora, no século XX assistimos a várias
revoluções desse tipo, ainda que cada uma delas tenha tido a sua
configuração e o seu desfecho específicos. No caso particular da
Revolução Chinesa, o que é que de fato ocorreu para que esse sonho,
momentaneamente tangido, se esvaecesse no ar de forma a produzir o
retorno do capitalismo, mas, dessa vez, numa configuração muito mais
brutal, chegando ao ponto de, conforme Zizek, constituir-se na China um
“Estado capitalista ideal”, onde o capital explora o trabalho a seu
bel-prazer e o Estado faz o “trabalho sujo” de manter o rígido controle
sobre as classes proletárias?
Sigamos o raciocínio do filósofo
esloveno. Conforme explicamos acima, em condições de grande opressão, os
seres humanos tendem espontaneamente a fantasiar, idealizar, devanear,
ansiar por uma realidade diferente, um mundo de redenção, utopia,
emancipação, onde as condições do sofrimento vigente estejam
definitivamente abolidas. Se isso, quiçá, vier a nos acometer de novo um
dia no século XXI – e isso pode estar acontecendo neste exato momento
-, talvez uma vez mais venhamos a nos organizar, lutar, reivindicar,
aprender, analisar, teorizar, compreender os nossos sonhos mais íntimos
de outrora, agir, refazer estratégias, reinvestir contra a ordem
opressora até que uma conjuntura surja na qual esta ordem atual comece a
ser negada por completo.
Aparecerá então uma situação nova em que
poderemos assumir a condição de sujeitos de nossas próprias vidas e
passaremos a dispor de meios para a reinvenção de nossa forma de
existência coletiva. Com os motivos da opressão assim derrotados, será
como se estivéssemos “realizado o sonho” historicamente cultivado de
emancipação. Mas quando isso acontecer, recomenda-nos Zizek, devemos ter
a mais cuidadosa e refinada atenção. Uma vez “realizado o sonho”, é
preciso “encontrar um caminho para começar a imaginar a Utopia que se
vai iniciar”.
O filósofo esloveno se serve aqui das
palavras de Fredric Jameson para explicar que, assim que dermos o
primeiro passo para a construção da Utopia, devemos
“pensar o novo começo do processo utópico como uma espécie de desejar o desejo, aprender a desejar
– a invenção do desejo chamado Utopia em primeiro lugar, juntamente com
novas regras para fantasiar ou sonhar acordado sobre tal coisa – um
conjunto de protocolos narrativos sem precedente em nossas instituições
literárias prévias.” (Jameson, apud Zizek, idem, 34) [grifos nossos]
O grande perigo que nos acomete então no momento em que “realizamos o sonho” é não podermos transcendê-lo,
isto é, não conseguirmos criar outro novo desejo e outro novo sonho que
nos estimule a seguir adiante. Por quê? Porque os desejos e sonhos que
criamos em determinadas circunstâncias são a expressão de um conflito
estabelecido a partir de certas situações concretas. Esses conflitos são
os pressupostos dos quais os sonhos e desejos de emancipação
são a expressão. Se nós realizamos o sonho, mas não transformamos
radicalmente o conflito primevo – o pressuposto do qual emergiu o sonho -, e que agora se estancou momentaneamente, esse conflito tende a se afirmar de novo.
Por isso, uma vez realizado o sonho,
isto é, uma vez suspensa a condição conflitiva que se constituía em
pressuposto fundamental do próprio sonho, é preciso negar o próprio pressuposto,
o que por sua vez nos dará a possibilidade de elaborar novos tipos de
sonhos, de dar à luz novos desejos que nos permitirão, finalmente,
deixar o passado para trás. Como explica Zizek:
“A referência à psicanálise aqui é
crucial e muito precisa: numa revolução radical, as pessoas não só
‘realizam seus velhos sonhos’ (de emancipação etc.); mais propriamente,
elas têm de reinventar seus próprios modos de sonhar. (…) Aí reside a
necessidade da Revolução Cultural, muito bem entendida por Mao: como
Herbert Marcuse disse em outra maravilhosa fórmula circular da mesma
época, a liberdade (das limitações ideológicas, do modo predominante de sonhar) é a condição da libertação,
isto é, se apenas mudamos a realidade para realizar nossos sonhos e não
mudamos esses próprios sonhos, cedo ou tarde regressamos à velha
realidade. Existe uma ‘posição de pressupostos’ hegeliana funcionando
aqui: o pesado trabalho de libertação forma retroativamente seu próprio
pressuposto.” (ibid, 34)
Portanto, somente modificando os sonhos,
os pressupostos dos sonhos e a própria forma de sonhar – no sentido de
sonhar “mais alto”, de dar à luz um novo sonho superior -, conseguiremos
suplantar a origem dos males que nos afligem. Mao Tśe-Tung compreendeu
isso, fato que atesta a sua percepção para a importância de uma
revolução cultural em concomitância com a revolução social. Mas não logrou atingir o objetivo de revolucionar os pressupostos
que estavam na base da sua ação revolucionária. Transformou uma
determinada ordem, mas não a modificou em suas raízes. Ao resultado de
todo esse fracasso – a “justiça poética da história”, como diz Zizek –
assistimos hoje com o violento e brutal retorno do capitalismo à China.
A contradição de Mao, finalmente, foi a
de ter querido “revolucionar” o sistema baseado num conjunto de práticas
estruturadas de forma homóloga às do capital. O resultado da
não-concretização do evento revolucionário desejado é o retorno do
próprio sistema, mas agora não mais como senhor da ordem, da norma e da
normalidade e, sim, como “o verdadeiro senhor do desgoverno”, que rompe
com todos os padrões, que varia e modifica tudo permanentemente a fim de
continuar reproduzindo-se a si mesmo…
Zizek se pergunta, então, sobre o que é
que podemos ainda tomar como lição do velho Mao a fim de orientarmos
nossas ações políticas atuais, mas desta vez sem cairmos nos equívocos
cometidos pelo velho líder chinês:
“Como, então, poderemos revolucionar uma
ordem cujo mais genuíno princípio é o constante auto-revolucionamento?
Essa, talvez, seja a questão de hoje e esse é o modo segundo o qual deveríamos repetir Mao, reinventando sua mensagem às centenas de milhões de pessoas que sofrem a opressão, uma simples e tocante mensagem de coragem: ‘Não é para temer o que é grande. O grande será derrubado pelo pequeno. O pequeno se tornará grande.’ (…)
‘Não devemos ter medo.’ Não será essa a única
atitude correta diante da guerra? ‘Primeiro, somos contra ela; segundo,
não a tememos.’ Há definitivamente algo de aterrador nessa posição – no
entanto, esse terror nada mais é senão a condição da liberdade.” (ibid,
38) [grifo nosso]
Tais são as lições que Slavoj Zizek tira de Mao e recomenda aos revolucionários do presente.
Referência: ZIZEK, Slavoj. Mao Tsé-Tung, “Senhor do Desgoverno” marxista. in TSÉ-TUNG, Mao. Sobre a prática e a contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
Fonte: Revista O Viés
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