quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Libertação e o "ego" do pão

Por Nilton Bonder

Liberar-se é deixar de ser escravo; libertar-se é deixar de ser escravo e escravista.

O Pessach, a Páscoa judaica, ou a cerimônia que comemorava Jesus na "última ceia", é acima de tudo uma lição do inacabado.

A celebração recordando a libertação dos escravos no Egito, na verdade, só consolidou seu significado quando em meio a um novo período de opressão, cerca de mil anos depois. O processo reincidente de subjugação deixava claro que a escravidão não se extingue com a liberação. A escravidão não se extingue quando saímos dela, mas quando ela sai de nós. É por isso que, mesmo liberados, continuamos fazendo parte daqueles que escravizam. É por isso que, mais cedo ou mais tarde, tornamos a encontrar a opressão diante de nós.

Essa incômoda verdade está na nossa mesa. Pensamos que a liberdade e o respeito ao ser humano não existem por conta "deles": dos torturadores, dos inquisidores, dos assassinos, dos ladrões, dos escravistas, dos exploradores, dos mafiosos, dos corruptos, dos fascistas, dos terroristas e dos egoístas. Enfim, esses seriam os inimigos: "Eles", e não "eu". No entanto, tem se tornado cada vez mais difícil em nosso mundo identificar as forças externas que possam representar a fonte do "mal".

A falta de faraós está "democratizando" o mal, fazendo de cada um de nós faraós preocupados em construir suas pirâmides. Vivemos num mundo unificado econômica e politicamente cujo sistema traz bem-estar para alguns enquanto aumenta a miséria de outros.

Em 1960 os 20% mais ricos do planeta detinham 70% da riqueza; hoje são 86%. Os 20% mais pobres tinham apenas 2,3%; hoje, têm menos de 1%. Na noite em que celebramos o jantar do Seder (ritual judaico) e o da Sexta-Feira Santa, centenas de milhões irão dormir com fome. Milhões estarão à morte na África e no mundo, vítimas da alienação que se dissimula de "progresso".

É interessante lembrar que o jantar do Pessach, o jantar da última ceia, não era um jantar de pessoas livres como queria simbolizar. Era um ato subversivo de pessoas novamente subjugadas com o objetivo de ocultar o óbvio -o que não poderia ser dito. O "não-dito" era o ápice da celebração, e por isso a noite de Pessach terminava em prisões e repressão, como no acontecido também com o judeu Jesus.

O que não se podia falar naquela época e também nos dias de hoje é que a crueldade não é destino e que a maneira como as coisas são não é obrigatoriamente a maneira como têm de ser. A libertação começa sempre com o reconhecimento de que há possibilidade de outras possibilidades.

Liberar-se é deixar de ser escravo; libertar-se é deixar de ser escravo e escravista. Vivemos num mundo muito mais liberado, mas muito pouco libertado. Como diz um ditado iídiche: a maldição não é um telegrama, não chega assim tão rápido. Quanto mais liberados e não-libertos, maior a maldição. Trata-se da maldição de cairmos presas, todos, das relações de escravidão de um mundo não libertado sabendo disso e apreciando a vida de liberado.
Como chegar então à liberdade? Como vencer o mais terrível de todos os grilhões, a porta fechada e a alienação?

Talvez seja necessário dar-nos conta de alguns interesses próprios que nos levem a não querer escravizar.

1) Só posso ser livre se você for. Posso ser liberado sem que o outro seja, mas não posso ser livre. Martin Luther King brilhantemente apontou essa dependência ao despertar brancos e negros dizendo: "O negro necessita do homem branco para libertar-se de seus medos; e o homem branco precisa do negro para libertar-se de sua culpa". O que escraviza -medo e culpa- só pode ser libertado pelo outro. Qualquer outra tentativa trará mais medo e mais culpa.

2) A liberdade está menos naquilo que somos livres para fazer e mais no que somos livres para não fazer. A liberdade é uma conquista interna e nunca um ajuste externo. Quando não fazemos o que queremos por opção, com o mesmo prazer e convicção que fazemos o que queremos, então somos livres. Poderíamos dizer que liberado é aquele que faz o que quer. Livre é o que faz o que quer e o que não quer -liberto até da escravidão de seu querer.

O liberado teme a escravidão iminente porque vive num lugar estreito, repleto de medos do outro, de seu verdadeiro "self" e de perda de controle. O liberto reconhece e assimila seu ódio, sua tristeza, sua frustração e sua inveja e aceita a si e aos outros como humanos. A paz se faz de libertos; o conflito se faz de liberados ou dos que buscam ser liberados.

O pão ázimo (não fermentado) que é símbolo dessa celebração tem um gosto que desperta uma memória milenar: pão que é a essência, mas pão sem fermento. Pão sem o "ego" da essência. Sem inflar-se, na sua humildade, esse é um pão sem "eu". Símbolo de uma batalha milenar da civilização, esse pão aponta para a libertação do maior dos tiranos -desse "eu" que libera com o compromisso de não libertar.

É o pão inacabado, de um processo inacabado. Lembrança daquilo que não podemos falar.

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