domingo, 5 de dezembro de 2010

O Cheiro da Pobreza

O objeto que representa a civilização e o progresso não é o livro, o telefone, a Internet ou a bomba atômica. É a privada.
Por Mário Vargas Llosa

Há três anos, durante uma viagem de Lima a Ayacucho por terra, fizemos uma escala no meio de uma chapada na cordilheira, numa aldeia onde havia um pequeno posto policial. Pedi licença ao chefe para usar o banheiro. “À vontade, doutor”, disse ele gentilmente. “O senhor quer urinar ou defecar?”. Respondi que a primeira alternativa. Sua curiosidade era acadêmica, porque o “banheiro” do posto era um cercado exposto à intempérie onde urina e fezes se confundiam em meio a nuvens de moscas e um fedor estonteante.

A lembrança dessa cena me perseguiu sem trégua enquanto, às vezes tapando o nariz, eu folheava as 422 páginas de um relatório, recentemente publicado pelas Nações Unidas, intitulado A água para além da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água. A prudência do título e a frieza e neutralidade de sua redação burocrática não impedem que esse extraordinário estudo, sem dúvida inspirado na sábia concepção de economia e progresso de Amartya Sen – um economista que não acredita que o progresso se resuma a estatísticas -, estremeça o leitor, ao confrontá-lo com rigor cruel à realidade da pobreza e seus horrores no mundo em que vivemos. A pesquisa realizada por Kevin Watkins e sua equipe deveria ser consulta obrigatória para todos os que queiram saber o que significa – na prática – o subdesenvolvimento econômico, a marginalização social e o fosso que separa as sociedades que os padecem daquelas que já atingiram um nível de vida alto ou médio.

A primeira conclusão dessa leitura é que o objeto que representa a civilização e o progresso não é o livro, o telefone, a Internet ou a bomba atômica, e sim a privada. Onde os seres humanos esvaziam a bexiga e os intestinos é determinante para saber se ainda estão mergulhados na barbárie do subdesenvolvimento, ou se já começaram a progredir. As conseqüências desse fato simples e transcendental na vida das pessoas são vertiginosas. No mínimo um terço da população do planeta – uns 2,6 bilhões de pessoas – não sabe o que é um sanitário, uma latrina, uma fossa séptica, e faz suas necessidades como os animais, no mato, à beira de córregos e mananciais, ou em sacolas e latas que são jogados no meio da rua. E mais ou menos 1 bilhão utiliza águas contaminadas por fezes humanas e animais para beber, cozinhar, lavar a roupa e fazer a higiene pessoal. Isso faz com que pelo menos 2 milhões de crianças morram, a cada ano, vítimas de diarréia. E que doenças infecciosas como cólera, tifo e parasitoses, causadas pelo que o relatório chama eufemisticamente de “falta de acesso ao saneamento”, provoquem enormes devastações na África, na Ásia e na América Latina, constituindo a segunda causa de mortalidade infantil no mundo.

Num importante bairro de Nairóbi, no Quênia, chamado Kibera, é generalizado o sistema das chamadas “privadas voadoras”, sacolas de plástico em que as pessoas fazem suas necessidades para em seguida atirá-las na rua (daí o nome). A prática eleva as doenças infecciosas no bairro a níveis altíssimos. E os principais atingidos são as crianças e as mulheres. Por quê? Porque cabe a elas cuidar da limpeza doméstica e do transporte da água, e com isso se expõem mais ao contágio do que os homens.

Em Dharavi, uma zona populosa de Mumbai, na Índia, há um único banheiro para cada 1.440 pessoas, e na estação das chuvas as enxurradas transformam as ruas da cidade em rios de excrementos. A fartura de água é, nesse caso, como no de muitas outras cidades do terceiro mundo, uma tragédia: as condições de existência fazem com que a água, em vez de vida, seja muitas vezes instrumento de doença e morte.

Paradoxalmente, a questão da água, indissociável da do saneamento, é talvez o principal problema que mantém homens e mulheres prisioneiros do subdesenvolvimento. Os dados do relatório são concludentes. Quando os pobres têm acesso à água, trata-se em geral de águas com todo tipo de bactérias, de males que os contaminam e matam. Mas, na maioria dos casos, a pobreza condena as pessoas a uma seca ainda mais catastrófica para a saúde e para as possibilidades de melhorar as condições de vida. Uma das conclusões mais chocantes da pesquisa é de que os pobres pagam muito mais caro pela água do que os ricos, justamente porque os povoados e bairros onde eles vivem carecem de instalações de abastecimento e descarga, o que os obriga a comprá-la de fornecedores comerciais, a preços exorbitantes.

Assim, os habitantes dos bairros pobres de Jacarta (Indonésia), Manila (Filipinas) e Nairóbi (Quênia) “pagam 5 a 10 vezes mais por unidade de água do que as pessoas que vivem nas zonas de elevado rendimento das suas próprias cidades – e mais do que pagam os consumidores em Londres ou Nova York”. Esse preço desigual faz com que os 20% de famílias mais pobres de El Salvador, Jamaica e Nicarágua invistam um quinto de seus rendimentos em água, ao passo que no Reino Unido o gasto médio dos cidadãos com a água representa apenas 3% de sua renda.

Não resisto a citar essa estatística do relatório: “Quando um europeu puxa uma descarga, ou quando um americano toma banho, utiliza mais água do que a disponível para centenas de milhões de indivíduos que vivem em bairros degradados ou zonas áridas do mundo em desenvolvimento”. E também a estimativa de que, com a água poupada caso os “civilizados” fechássemos a torneira enquanto escovamos os dentes, um continente inteiro de “bárbaros” poderia tomar banho.

À primeira vista, não parece haver muita relação entre a falta de água e a educação das meninas. E, no entanto, ela existe e é estreita. O relatório calcula que 443 milhões de dias letivos são perdidos a cada ano por causa de doenças ligadas à água, e que milhões de meninas faltam à escola e recebem uma educação deficiente ou nula, e em todo caso inferior à dos meninos, por terem que buscar água diariamente em açudes, rios e poços que, muitas vezes, ficam a horas de caminhada.

Em “Os miseráveis”, Victor Hugo escreveu que “os esgotos são a consciência da cidade”. Numa dessas digressões do narrador que pontuam o romance, enquanto Jean Valjean chapinhava na merda com o desmaiado Marius às costas, arriscou uma curiosa interpretação da história a partir do excremento humano. O formidável estudo da ONU faz coisa parecida, sem a poesia nem a eloqüência do grande romântico francês, mas com muito mais conhecimento científico. Propondo-se a apenas descrever as circunstâncias e conseqüências de um problema concreto que atinge um terço da humanidade, o relatório radiografa com dramática precisão o extraordinário privilégio de que os outros dois terços desfrutamos toda vez que, quase sem perceber, abrimos uma torneira para lavar as mãos ou o chuveiro para receber esse jato de água fresca que nos limpa e revigora, ou quando, impelidos por uma dor de barriga, sentamos na intimidade do banheiro, aliviamos as entranhas e, distraídos, limpamos com um pedaço de papel higiênico todos os rastros dessa cerimônia, para em seguida puxar a descarga e sentir, no turbilhão do vaso, nossa sujeira recôndita sumir nas entranhas dos esgotos, longe, longe de nossa vida e nosso olfato, para o bem da própria saúde e bom gosto.

Como é infinitamente diversa a experiência desses bilhões de seres humanos que nascem, vivem e morrem literalmente sufocados pela própria imundície, sem conseguir arrancá-la de suas vidas, pois, visível ou invisível, a sujeira fecal que expulsam volta para eles como uma maldição divina, na comida que comem, na água em que se lavam e até no ar que respiram, causando-lhes doenças e mantendo-os no limite da subsistência, sem chance de escapar dessa prisão na qual mal sobrevivem.

Um dos aspectos mais sombrios da questão é que, em grande parte por causa do nojo e da repulsa que os seres humanos sentimos por tudo o que tem a ver com a merda, os governos e organismos internacionais de promoção do desenvolvimento não costumam dar a ela a devida prioridade. Geralmente a subestimam, e dedicam recursos insignificantes a projetos de saneamento. A verdade é que viver em meio à sujeira é nefasto não apenas para o corpo mas também para o espírito, para a mais elementar auto-estima, para o ânimo que permite erguer a cabeça contra o infortúnio e manter viva a esperança, motor de todo progresso. “Nascemos entre fezes e urina”, escreveu Santo Agostinho. Um calafrio deveria subir por nossas costas como uma cobra de gelo ao pensarmos que um terço de nossos contemporâneos nunca acaba de sair da imundície em que veio a este vale de lágrimas.

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