Por Rogério Martins, na Carta Capital
Após defender o Estado laico e o reconhecimento jurídico da união homoafetiva em entrevista a CartaCapital no fim de abril (clique aqui para ler), o pastor Ricardo Gondim, líder da Igreja Betesda e mestre em teologia pela Universidade Metodista, virou alvo de ferrenhos ataques de grupos evangélicos na internet. Um fiel chegou a dizer, pelo Twitter, que se pudesse “arrancaria a cabeça” do pastor herege. “É como se vivêssemos nos tempos da Inquisição”, comenta Gondim, que já previa uma reação de setores do mainstream evangélico, os movimentos neopentecostais com forte apelo midiático. Surpreendeu-se, no entanto, ao ser informado que, graças às declarações feitas à revista, não poderia mais escrever para uma publicação evangélica na qual é colunista há 20 anos.
“Fui devidamente alertado pelo reverendo Elben Lenz Cesar de que meus posicionamentos expostos para a CartaCapital trariam ainda maior tensão para a revista Ultimato”, escreveu Gondim em seu site pessoal, na sexta-feira 20. “Respeito o corpo editorial da Ultimato por não se sentir confortável com a minha posição sobre os direitos civis dos homossexuais. Todavia, reafirmo minhas palavras: em um Estado laico, a lei não pode marginalizar, excluir ou distinguir como devassos, promíscuos ou pecadores, homens e mulheres que se declaram homoafetivos e buscam constituir relacionamentos estáveis. Minhas convicções teológicas ou pessoais não podem intervir no ordenamento das leis.”
Por telefone, o pastor explicou as razões expostas pela revista evangélica para “descontinuar” a sua coluna, falou sobre as ofensas que sofreu na internet e não demonstrou arrependimento por ter falado à CartaCapital em abril. “A entrevista foi excelente para distinguir algumas coisas. Nem todos os evangélicos pensam como esses grupos midiáticos que confundem preceitos religiosos com ordenamento jurídico e querem impor sua vontade a todos.”
CartaCapital: Qual foi a justificativa dada pela revista Ultimato para descontinuar a sua coluna na publicação?
Ricardo Gondim: Eu escrevi para a Ultimato por 20 anos. Trata-se de uma publicação evangélica bimensal, na qual eu tinha total liberdade para escrever sobre o que quisesse. Não falava apenas da doutrina, mas de muitos assuntos relacionados ao cotidiano evangélico. E nunca sofri qualquer tipo de censura. Mas, agora, eles entenderam que as minhas declarações a CartaCapital eram incompatíveis com o que a Ultimato defende e expuseram três argumentos para justificar a decisão. Eu não concordo com essas teses e, para dar uma satisfação aos leitores, publiquei uma carta de despedida no meu site (www.ricardogondim.com.br).
CC: A defesa dos direitos civis de homossexuais foi um dos aspectos criticados pelo corpo editorial da revista?
RG: Sim. Eles entendem que o apoio à união civil de homossexuais abriria um precedente dentro das igrejas evangélicas para a legitimação do ato em si, a homossexualidade. Tentei explicar que uma coisa é teologia, outra é o ordenamento das leis. Num Estado é laico, não podemos impor preceitos religiosos à toda a sociedade. Uma coisa não transborda para a outra. Dei como exemplo o fato de a Igreja Católica viver muito bem em países que reconhecem juridicamente o divórcio, embora ela condene a prática e se recuse a casar pessoas divorciadas. Eu não fiz uma defesa da homossexualidade, e sim dos direitos dos homossexuais. O direito deve premiar a todos. Num Estado democrático, até mesmo os assassinos têm direitos. Não é porque eles cometeram um crime que possam ser torturados ou agredidos, por exemplo. As igrejas podem ter uma posição contrária à homossexualidade, mas não podem confundir seus preceitos com o ordenamento jurídico do país ou tentar impor sua vontade. Muitos disseram que o Supremo Tribunal Federal tripudiou sobre as igrejas evangélicas ao reconhecer a união estável homoafetiva. Nada disso, o STF estava apenas garantindo os direitos de um segmento da sociedade. Essa é sua função.
CC: Quais foram os outros aspectos criticados?
RG: Eles também criticaram uma passagem da entrevista na qual eu contesto a visão de um Deus títere, controlador da história e da liberdade humana, como se tudo que acontecesse de bom ou ruim fosse por vontade divina e ou tivesse algum significado maior. E apresentaram um argumento risível: o de que a minha tese coloca em xeque a ideia de um Deus soberano. Claro que sim! Deus soberano é uma visão construída na Idade Média, e serviu muito aos interesses de nobres e pessoas do clero que, para justificar seu poder, se colocavam como representantes da vontade divina na terra. Só que essa visão é incompatível com o mundo de hoje. O Estado é laico. As pessoas guiam os seus destinos. Deus não pode ser culpado por uma guerra, por exemplo. Não vejo nisso nenhuma expressão da vontade divina, nem como punição.
CC: O fato de o senhor ter criticado a expansão do movimento evangélico no País também foi destacada?
RG: Sim. Eu fiz um contraponto à tese de que o Brasil ficará melhor com o crescimento da comunidade evangélica. Não acho que é bem assim. Critica-se muito a Europa pelo fato de as igrejas de lá estarem vazias, mas eu não vejo isso como um sinal de decadência. Ao contrário, igreja vazia pode ser sinal do cumprimento de preceitos do protestantismo se os cidadãos estão mais engajados com suas comunidades, dedicados às suas famílias, preocupados com os direitos humanos, vivendo os preceitos do cristianismo no cotidiano. Eu critico essa visão infantilizadora da vida, na qual um evangélico precisa da igreja para tudo e Deus é responsável por tudo o que acontece.
CC: O senhor se arrepende de ter concedido aquela entrevista à CartaCapital?
RG: De maneira alguma. O repórter Gerson Freitas Jr. até conversou comigo, preocupado com a reação que as minhas declarações poderia causar na comunidade evangélica. Mas a entrevista foi excelente para distinguir algumas coisas. Nem todos os evangélicos pensam como esses grupos midiáticos que confundem preceitos religiosos com ordenamento jurídico e querem impor sua vontade a todos. Eu já esperava alguma reação, só não sabia que viria com tanta virulência. Um evangélico chegou a dizer, pelo Twitter, que se pudesse arrancaria a minha cabeça. É como se vivêssemos nos tempos da Inquisição. Recebi inúmeros e-mails com ofensas e mensagens de ódio. Não sei precisar quantos, porque fui deletando na medida em que chegavam à caixa postal. Também surgiram centenas de textos me satanizando em blogs, sites e redes sociais.
CC: E entre os fiéis da sua igreja? Houve algum constrangimento?
RG: Alguns, influenciados pelo bafafá na internet, vieram me questionar. Então fiz questão de dar uma satisfação à minha comunidade. Após discursar, acabei aplaudido de pé, fiquei até meio constrangido diante daquela manifestação de apoio.
- Considerações do Prof. Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro -
- sobre a entrevista do Pr. Gondim -
1. Ricardo Gondim concede nova entrevista à Carta Capital, interessada nos desdobramentos, previsíveis, da primeira entrevista. Não apenas foi demitido da Ultimato, mas foi vítima de uma avalanche reacionária de e-mail e manifestações nas redes sociais contra a sua posição: houve quem dissesse que alguém devia arrancar a sua cabeça... Profundo espírito cristão esse!
2. No fundo, a vida cristã constitui uma luta: luta da Bíblia contra a Bíblia. Há tradições bíblicas que são muito violentas. Deus, em muitas narrativas, gosta de sangue, de matar, e não apenas soldados, mas mulheres, crianças, animais, qualquer coisa que respire, e, quando ele manda matar, mate, caso contrário, você é quem morrerá. São narrativas antigas, de uma época, digamos "pré-moral", à moda de Is 45,7 - Yahweh faz a "paz" e a "desgraça", dá a vida e mata, enterra e desenterra. Yahweh é rei: quem há de questionar o rei?
3. Tempos depois, passando pela fase "moral" (persa), Yahweh torna-se "bonzinho", e cria-se um - depois dois, dez, cem, mil - diabo(s) para com isso explicar o que antes se explicava por meio da teologia de um Deus ao mesmo tempo violento e amoroso. O "novo" Yahweh é só bom - mau, agora, é Satanás, logo elevado à categoria de anjo caído e pessoal, já quase (quase?) um deus. No Novo Testamento, aquilo que, à época, se entende por "bom", isso Deus faz. O resto, os diabos.
4. Todavia, está tudo junto na mesma Bíblia, de capa a capa. Sem manual. Lado a lado. Com um pouco de lucidez crítica, você separa bem as coisas. Sempre permanecerá uma faixa um pouco cinza, em que se escrevem coisas que a uns parecerá bom, a outros, mau, mas, na maior parte das narrativas, parece ser coisa fácil discernir entre coisas boas e más. Matar - nunca - é coisa boa. Nem quando é Deus a fazê-lo.
5. Os protestantes, todavia, inventaram uma coisa chamada inerrancia e infalibilidade. Por meio dessa retórica político-religiosa, contralúcida, a Bíblia inteira adquire a mesma dimensão "moral e ética" - "a" e "b" tornam-se a mesma coisa. O que poderia ser lido como "mau" e como "bom" dissolve-se numa teologia sem pé nem cabeça, política, insisto, de controle social. O resultado é que o crente desavisado e o crente de má fé servem-se dessas passagens violentas ao mesmo tempo em que se servem do Sermão do Monte - sem constrangimentos.
6. Ai, quando Gondim fala coisas das quais eles, aqueles crentes desavisados e aqueles de má fé, discordam, sacam com máxima rapidez os textos de violência, do Deus colérico, do Deus que mata, e deixam-se tomar pela "ira santa", crendo que, nessa ira, é Deus e sua santidade quem os toma - quando, sabemos, é a loucura da fé, a irracionalidade hiperbólica da demência religiosa.
7. Não, a religião não é de todo má: mas ela precisa ser educada. Sem educação, sem crítica, sem critérios, sem controle, se Deus baba por sangue, dá-lhe sangue, se Deus quer a cabeça de Gondim, dá-lhe a cabeça de Gondim - e que o Estado não se intrometa nesses assuntos de Deus! Estamos às portas da Igreja Manicômio - se é que algum dia saímos dela.
Fonte: Carta Capital e Peroratio
Nenhum comentário:
Postar um comentário