terça-feira, 21 de junho de 2011

Mártires ou overdose

Por Nilton Bonder, rabino e escritor.

Quando os judeus pelo mundo afora se reúnem para celebrar a Páscoa, o Pessach, há dor e constrangimento. Há dor pela violência sofrida e constrangimento pela violência perpetrada. O aspecto mais difícil é relembrar o êxodo dos hebreus no antigo Egito em meio à luta do povo palestino por autodeterminação. Falar sobre a obrigação de respeito ao estrangeiro ("por que estrangeiro fostes na casa do Egito") e ensinar os filhos sobre a liberdade como um direito inalienável do ser humano gera, no mínimo, questionamentos.

Há, no entanto, uma importante reflexão para aqueles que se sublevam e rejeitam a opressão do status quo. O Êxodo em direção à terra prometida não acontece por meio de revolução, mas resolução. A lógica das revoluções é uma rotação brusca e triunfal sobre uma condição. A resolução, por sua vez, é uma determinação que produz um processo que transforma a realidade. É isso que os hebreus conheceram a 3000 anos e reviveram há 50 anos com o Estado de Israel.

As revoluções buscam transformações radicais, vias de regra violentas. Repletas de causa, manifestam a vitalidade da juventude e, ao mesmo tempo, a imaturidade da adolescência. Quem participou de revoluções conhece a glória das causas e o vazio profundo deixado por seus custos. A violência pode parecer um recurso eficiente, mas ela é traiçoeira, pois faz mudar de mãos a "causa" toda a vez que é utilizada.

No ritual dos judeus, em momento imortalizado por Jesus na última ceia, o partir do pão ázimo produz invariavelmente dois pedaços desiguais. Este pão representativo da "pobreza" humana, fala contundentemente da desigualdade. O universo não é simétrico. Irmãos aprendem isso dentro de suas próprias casas. Mesmo o amor materno produz sentimentos de profunda desigualdade e injustiça. Suportar a assimetria do mundo é parte do crescimento do ser humano. Nosso único poder de interferência nessa faceta da realidade é através de processos e não de mudanças bruscas e radicais. Gerar uma realidade mais simétrica é tanto sonho como esforço milenar da humanidade.

Os pais têm como tarefa maior ajudar seus filhos a mediar entre a realidade e estes sentimentos de injustiça. Ensiná-los a não se deixar seduzir pelas ilusões da juventude amplia suas chances de sobrevivência. Quando os pais não fazem isso, seus filhos tornam-se presa fácil para os "traficantes". Afinal as injustiças do mundo são iscas poderosas. Elas arrebatam milhares de jovens em torno da luta por ideais e não é tão estranho que jovens queiram ser "mártires". Ser mártir é chamar para si a atenção da mãe, é cativar a fantasia de virgens, não no paraíso, mas aqui mesmo na terra.

Os adolescentes-bomba da palestina ou mesmo os "bravos" guerreiros da Al-Qaida não estão morrendo como mártires, estão morrendo de overdose. Não é a toa que a religião é muitas vezes apontada como o ópio do povo. Pode ser uma droga e em excesso ela mata. A patologia mais do que a ideologia se faz presente nestes mártires que não morrem, mas se matam. E quando alguém se mata está querendo provar algo para os seus, algo que não é coletivo ou nacional, mas algo pessoal. E a violência põe seus ovos nestes vazios, em particular nestes vazios da juventude.

Triste é ver mães e pais celebrando o ato heróico de seus filhos. A realidade dramática de ver pais regozijando-se na overdose de seus filhos quando desesperadamente tentam ocultar sob bandeiras e símbolos pátrios a culpa dos vazios que geram tanta violência.

Este ato derradeiro de brincar de Deus, de poder olhar nos olhos das pessoas e escolher quem você irá matar: seja a bela jovem que você sempre quis e de quem não obteve atenção, seja uma família que inspira a sensação de nunca poder desfrutar de tanto calor. Os vazios contêm as violências. Como uma dengue espiritual o mundo precisa de um mutirão. A dengue espiritual está na casa de cada um. Erradicar os vazios onde as larvas se proliferam é a missão da maior das revoluções - estabelecer processos e não soluções impostas, em particular pela violência. É preciso mais coragem para lidar com as assimetrias da vida do que para estourar-se sob a ilusão de que a simetria será alcançada.

O ritual judaico do Pessach termina com uma canção-depoimento. Ela fala do ciclo de violência e sua infindável cadeia. "Meu pai tinha um cabrito, veio gato e o comeu, e veio o cão e dilacerou o gato, e veio o bastão e espancou o cão, e veio o fogo e consumiu o bastão, e veio a água e apagou o fogo, e veio o boi e bebeu a água, e veio o açougueiro e sacrificou o boi, e veio o anjo da morte e deu fim ao açougueiro".

Deter esse ciclo absurdo que está gerando listagens não de mártires, mas de overdoses, é prioritário. Não significa não usar a força, seja a força da opinião pública, seja a força da verdade ou seja a força da luta, desde que não se esconda no vazio e na dor de sua juventude. Talvez esteja também na força da imaginação. Foi com ela que o rabino Wolfe Blank refez a canção: "e veio o gato e miou para o cabrito, e veio o cão e brincou com o gato, e o bastão batucou para o cão, e veio o fogo e dançou para o bastão, e a água acalmou o coração agitado do fogo, e veio o boi e banhou-se na água, e veio o açougueiro e fez uma massagem no boi, e veio o anjo da transformação e gentilmente ajudou o açougueiro a compreender sua finitude e fazer a transição tão sonhada para outra profissão".

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