sábado, 20 de agosto de 2011

Ortodoxos, conservadores e reformistas

Entrevista com Nilton Bonder, rabino e escritor.

Quais as diferenças básicas entre os ortodoxos e não ortodoxos? Como enxerga a sociedade multi-étnica que vem se construindo em Israel? Como conviver com as diferenças? E no Brasil, no Rio, como os judeus religiosos convivem com as diferenças?

A ortodoxia é um produto do mundo moderno tanto quanto os movimentos liberais. É uma reação a transformação profunda do mundo neste último século. A ortodoxia busca o cumprimento fiel dos princípios do judaísmo demonstrando grande intransigência em relação a tudo que é novo. Os não ortodoxos acreditam que é princípio fundamental do judaísmo o próprio processo de mudança e de renovação. A lei judaica é conhecida como halachá, literalmente: "a caminhada". É sobre esta "caminhada" que versam a discórdia entre ortodoxia e não-ortodoxia. Para os não ortodoxos a "caminhada" dos ortodoxos é uma "parada" e para os ortodoxos a "caminhada" dos não-ortodoxos é uma "corrida". A crença não-ortodoxa segue a frase de Rav Kook: "que o antigo se renove e que o novo se santifique".

A sociedade multi-étnica é sempre positiva se estas etnias estão em relação de diálogo. Quando, ao contrário, baseia-se na intolerância e na radicalização este é processo explosivo.

A palavra conviver em si diz "viver com". Este estado de relação não pode deixar de ser pluralista. Quando a opinião do outro é descartada, quando há indiferença ou se busca desqualificar o outro e sua fala apresentado-as como ilegítimas, então não existe convivência. Surge então a pobreza do discurso da "verdade" e do "convencimento". A discórdia e a dissensão foram sempre o elemento mais importante na dialética rabínica. A tal ponto do judaísmo ser conhecido como a "celebração da dissensão". Este é o segredo da sobrevivência dos judeus: descentralizar o poder e venerar a voz da discórdia como a mais importante parceira na preservação de uma tradição viva e relevante.

No Rio a convivência é desastrosa. Aparentemente cordial, pois se trata de uma comunidade pequena com públicos que se misturam. No entanto, prevalece a mesma incapacidade de diálogo e a constante tentativa da ortodoxia de fazer-se o único legítimo representante do judaísmo. Acredito na ortodoxia como uma voz a ser ouvida e a legitimo. Reconheço seus rabinos e seu pensamento como parte de minha tradição. Quando estes, no entanto, ao invés de discordar de mim dizem que não existo, deixam de ser rabinos e entram para o rol dos que disputam poder e território.

E as mulheres, elas tem tratamento diferente de acordo com a linha religiosa. Você é muito conhecido pelo seu comportamento "progressista". Na sua sinagoga as mulheres conduzem serviços, colocam tefilin, kipá. Fale sobre isso.

O tratamento dado as mulheres no que tange a espiritualidade está centrado em práticas sociais em muito ultrapassadas para grande parte dos judeus. Repito respeitar opções de vida que se assemelhem a estruturas sociais do século passado ou retrasado. No entanto, não acho que as novas relações sociais sejam "diabólicas" e acho que merecem atenção e que influencia a própria prática religiosa.

Aquilo que temos dado acesso às mulheres não é na verdade vedado a elas, e os rabinos ortodoxos sabem disto. Em jogo não estão tanto questões religiosas ou espirituais. Trata-se de uma guerra de ideologias e interesses mais amplos. Há claramente medo e insegurança nestas áreas. E porque não deveria haver? A relação entre homens e mulheres talvez tenha sido a grande moldadora desta civilização da qual somos produto.

As mulheres devem fazer uso de todos os objetos rituais. Eles não são proibidos a elas pela lei judaica, mesmo a mais arcaica. Existem inúmeros precedentes no passado. A acusação comumente feita pela ortodoxia de que estariam usando roupas de homens, não apenas é refutada pela lei judaica, como permite ver que as questões são mais puritanas do que teológicas.

Em relação ao casamento misto, qual é a sua posição? (ouvi dizer que o ortodoxismo não só é encontra, como também não reconhece).

Não acho que esta seja uma questão de se ser contra ou a favor. Ser a favor me parece tão intrusivo e inadequado quanto ser contra. O desejo dos judeus é de preservar sua tradição. Querer isto é legítimo e apropriado. Se a tradição judaica é tão baseada na estrutura da família temos aí um problema. Mas apenas um problema. Temos que aprender a lidar com este problema gerando condições para que as famílias de casamento misto que queiram ter acesso à tradição judaica o tenham. Devemos aprender a redistribuir a responsabilidade de continuidade para outras áreas fomentadoras de cultura e tradição. As sinagogas, escolas, atividades juvenis, o próprio Estado de Israel ou mesmo outras instâncias familiares como os avós ou tios, podem conjuntamente reafirmar a identidade mesmo num lar onde não haja unidade na origem da tradição.

E conversão? (As pessoas costumam falar que as conversões que você realiza, não são aceitas pelos movimentos fundamentalistas. É verdade? Por quê?). E homosexualismo, como o judaísmo lida com essa questão?

Sim não são aceitas, mas o que isto significa? A maioria das sinagogas do mundo, hoje, não são ortodoxas e os ortodoxos compõem cerca de 20% da população judaica. Nossas conversões são aceitas juridicamente pelo Estado de Israel e por 80% dos judeus do mundo. O problema maior é que as pessoas identificam na figura e na fala da ortodoxia uma legitimidade que ela tem apenas parcialmente; como nós a temos também. Uma das bênçãos do judaísmo é a descentralização do poder clerical. Onde uma comunidade legitima algo baseado em uma forma de interpretação da tradição, pode escrever, é legítimo. A não aceitação das conversões não se baseia em disputa da lei judaica. Baseia-se no fato de que a ortodoxia não reconhece outras formas de praticar-se o judaísmo. Como reconheceria uma pessoa que se converte a esta forma de prática?

O Rio de Janeiro, ao contrário de São Paulo, é um lugar de vanguarda, um local, onde talvez pela geografia (praia, clima etc), que costuma quebrar, interferir nos costumes tradicionais. Além disso, estamos vivendo a era da "globalização", a era "sem fronteiras", a não ser a social, é claro! Qual o segredo para manter a tradição, neste contexto? Qual o seu maior desafio?

Ao contrário do que imaginamos as pessoas prezam suas raízes. Quando encontramos formas de harmonizar as raízes com práticas que sejam relevantes às questões da vida, quando tradição não é apenas um instrumento de opressão e convencimento, há grande interesse. Portanto não é difícil manter a tradição, o que é difícil é suportar toda a carga quem muitos depositam nestas relações que são sempre sociais. Não nos esqueçamos que tradição é sinônimo de experiência comunitária. E não há nada mais rico e opressor do que as trocas comunitárias. A religião é uma preciosidade garimpada por séculos de reflexão e experiências. São os seres humanas que são de difícil "digestão". Não acho difícil fazer as pessoas se interessar pela tradição mas acho difícil faze-las suportar o peso da experiência comunitária. Fazer desta experiência mais light, onde haja mais tolerância e apreciação ao invés de critica e intrusão é o desafio.

No Rio existem poucas escolas judaicas (em muitos casos a própria comunidade recorre às escolas não judaicas, além disso algumas escolas judaicas permitem alunos filhos de casamentos mistos, independente de conversão, e inclusive alunos não judeus). Como o sr. vê este tipo de comportamento por parte das escolas judaicas? Dentro deste contexto como é possível educar as crianças dentro da tradição? Como é essa escola? Quer falar sobre a questão das meninas nas escolas judaicas (Bat Mitzvá)?

As escolas como todas as áreas comunitárias deveriam estar envolvidas num grande e constante debate sobre os desafios de um mundo mais aberto, sem fronteiras e universalista. Como preservar identidade neste contexto é que é a questão. Não acredito que a questão para a grande maioria dos judeus seja como deter esta tendência da atualidade da qual todos fazemos parte. Infelizmente este debate mais amplo não existe. Sem ele as formas se enrijecem e mesmo uma tradição milenar, acostumada a desafios de sobrevivência, se expõe a graves perigos.

Qual a diferença básica entre as correntes liberais, conservadoras e ortodoxas? Existem muitos movimentos liberais no Rio, quais os principais? E no Brasil? Como o sr. se relaciona, e vice-versa, com as correntes mais "liberais" e "ortodoxas" do judaísmo no Rio de Janeiro? O que é ser progressista e liberal no judaísmo? Como o sr. encara o fato de o judaísmo comportar tantas linhas diferentes? Eu não sei o nome, mas sei que já existe, inclusive, uma corrente que aboliu o Brit-milá.

A comunidade judaica nos Estados Unidos cunhou estas três denominações: Reformistas (liberais), Conservadores e Ortodoxos. Existem várias outras correntes menores. Estas três talvez dêem uma compreensão quanto a velocidade na qual a tradição se deixa moldar pelo mundo externo e pela evolução da sociedade. Os reformistas dão peso maior às mudanças do que à tradição; os Conservadores trabalham com uma composição 50/50%; e os Ortodoxos dão peso bastante maior à tradição do que à evolução social. Se fossemos fazer uma comparação com o mundo dos investimentos, diríamos que os reformistas efetuam investimentos arrojados, com grande risco para a identidade. Os Conservadores seriam moderados. Já os Ortodoxos evitariam este risco pelo investimento sempre bastante cauteloso. Pareceria assim que a Ortodoxia é a melhor forma de preservar a tradição. Mas não nos esqueçamos (e todo investidor sabe disto) que a "segurança" hoje pode ser a ruína de amanhã. Aquele que investe na certeza, que não trabalha com riscos, desconhece o fato de que a vida é dinâmica. Recursos "seguros" e parados são alvo fácil para serem devorados pela inflação ou pela caminhada da vida. Por isto a lei judaica se diz uma halacha, uma caminhada. O que não caminha, se desfaz. O tempo corrói tudo que não se renova e não se transforma.

Nossa sinagoga é afiliada ao movimento Conservador. Diria que nossa composição é um pacote de medidas arrojadas e outras bastante conservadoras. Esta é nossa "cesta de investimentos". Nossa relação é boa com todos. Não desqualificamos o esforço de nenhuma sinagoga e reconhecemos como meritória sua contribuição para a preservação de uma tradição tão especial e enriquecedora. Não podemos dizer que a recíproca é verdadeira.

A comunidade judaica no Brasil está entre as mais conservadoras e provinciais que conheço. Acredito que isto se deva ao tamanho pequeno da comunidade em proporção à população brasileira e a evasão de uma intelectualidade que se afastou das questões comunitárias.

Defina o que é ser judeu e o que é judaísmo. Existem muitos judeus que se assumem como judeus, mas não são religiosos, não acreditam em D'us, ou estão ligados a outras religiões, seitas. Como o sr. vê isso?

Podemos tentar definir os judeus sem ser por parâmetros da religião institucionalizada. No entanto, temo que definir os judeus sempre irá tangenciar questões espirituais e existenciais. Os judeus são buscadores. Esta é a razão de tantos judeus vinculados a outras tradições sapienciais ou espirituais. Quando eles não encontram uma forma de dar vazão a isto em sua própria tradição e religião, têm necessidade de extravasa-la de alguma forma. Assim os judeus se fizeram em massa socialistas e comunistas quando esta pareceu uma opção viável para transformar o mundo; se envolveram com a psicanálise como uma religião para aliviar o sofrimento e a opressão humana e assim por diante. Todo o judeu é um individuo passional e em alguma área de sua vida há uma dedicação "religiosa" a algo. Seu desejo de se "re-ligar" é a herança atávica deste grupo. A proposta de Abraão não era tão esotérica e, com certeza, não era obsessiva em relação a qualquer prática. Ele é herói, pois sai da casa de seu pai, abandona a cultura do momento e investe num futuro que será a sua terra prometida. Romper com as violências do passado é tão parte da herança de Abraão quanto honrar este passado.

Ouvi dizer que no último fim de semana foi promovido um encontro para reativar o Grã-rabinato no Rio de Janeiro? O que é, para que serve o Grã-rabinato e como será integrado? É um projeto de toda a comunidade judaica, que inclui representantes liberais, conservadores, além dos ortodoxos?

Estas idéias clericais de hierarquia são expressão de um desejo de controle e de poder. A tradição de Israel aprendeu a duras penas que todo o clero organizado é um convite a adulterar a proposta sincera de uma tradição espiritual. A institucionalização é sempre motivada pelo desejo de poder, nunca pela realização exclusiva de um trabalho espiritual. O judaísmo rabínico, feito não de grãos-rabinos, titulados e empastelados de medalhas, mas de sapateiros, alfaiates e carpinteiros que conheciam sua tradição, é uma das mais belas conquistas do judaísmo. Sonhar com um Vaticano judaico é não perceber o peso e o custo destas instituições. Todo o grão-rabino não passa de um funcionário publico a serviço sabe-se lá de que causas. Na tentativa carioca, com certeza não inclui todas as correntes. Como disse é elemento de poder e não de diálogo.

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