Por Paulo Brabo, escritor.
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Por motivos que terei de abordar em outra ocasião, os cristãos evangélicos fogem do COMUNISMO mais do que o diabo da cruz; dito de outra forma, fogem mais do COMUNISMO do que do diabo, e tendem também a substituir um pelo outro.
O capitalismo de certa forma sempre existiu, sendo devidamente denunciado por todos os profetas, até Jesus (na linguagem dele “vem fácil vai fácil” escreve-se “de graça recebestes, de graça dai”) e depois. O mérito de Marx está em que ele expôs claramente o mecanismo econômico da exploração: demonstrou que no capitalismo todos trabalham um preciso tanto a mais do que deveriam se trabalhassem apenas para merecer o que ganham. Essa “contribuição extra”, essa mais-valia, serve para sustentar o sujeito posicionado acima de cada um na Grande Pirâmide. Uma vez que se reflete sobre essa revelação, passa a parecer injusto que você gaste o seu suor para alimentar a ociosidade e os luxos de quem não se dispõe a ralar como você – ajudando a aumentar, de lambuja, a distância irremediável entre trabalho e capital. O COMUNISMO nada mais é do que a inevitável solução que Marx propôs para corrigir o que ele via como essa injustiça inerente ao capitalismo: o sonho de uma sociedade em que todos trabalhassem apenas o necessário para se garantir que cada um teria o que todos precisam. Nenhuma competição. Nenhuma ganância. Nenhuma exploração. Nenhuma mesquinharia.
Trata-se, como se vê, de projeto extremamente louvável.
Como se sabe, as tentativas de implantá-lo foram catastróficas.
Todas as tentativas de implantar o comunismo foram desastrosas. Pelo mesmo critério, o cristianismo deveria ser grandemente lamentado.
Creio que qualquer um poderia acenar com esse raciocínio para condenar o COMUNISMO, menos os cristãos.
No que me diz respeito poucas idéias humanas são mais inatacavelmente bem-intencionadas e virtuosas do que a doutrina do COMUNISMO; porém, tendo em vista o precedente histórico, tendo em vista todo o mal realizado na tentativa de implantar a idéia, prefiro não permitir que se tente colocá-lo em prática novamente.
Meu problema é que preciso manter a sobriedade e admitir que o mesmo argumento pode ser usado contra o cristianismo. Para mim nada há de mais esplendidamente belo e virtuoso e transformador do que a mensagem do cristianismo, porém alguém pode sempre argumentar que, na prática, a esmagadora maioria dos esforços em implantá-lo produziram terríveis catástrofes sociais, injustiça e exclusão e preconceito e guerra e derramamento de sangue. Pergunte a qualquer cruzado – até Bush serve.
Tendemos a perdoar as nossas mancadas históricas, mas simplesmente não podemos permitir que doutrinas competidoras façam o mesmo: perdoa as nossas dívidas, mas não as dos nossos devedores. Tendemos também a esquecer que o cristianismo é experiência que vem estado em processo de implantação há dois milênios, e o comunismo há pouco mais de cem anos. Há por certo pelo menos um pagão morto em nome do cristianismo para cada inocente torturado em nome do comunismo.
O cristão pode sempre contra-atacar dizendo que nossas dívidas históricas apenas demonstram que muitos dos que afirmaram estar implantando o cristianismo não estavam imbuídos do verdadeiro espírito do cristianismo. Se fosse comunista eu diria imediatamente: está vendo? Os comunistas que você condena não implantaram o verdadeiro comunismo – e assim por diante.
O comunismo nunca foi implantado conforme idealizado originalmente. O mesmo pode provavelmente ser dito do cristianismo.
Se formos manter a sobriedade, teremos que admitir que o COMUNISMO nunca foi implantado como idealizado originalmente. Nosso problema é que o mesmo pode provavelmente ser dito do cristianismo. Trata-se evidentemente de um caso em que o desastre da implantação não vem da imperfeição da doutrina, mas da imperfeição dos implantadores.
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Retórica à parte, nem todas as experiências de implantação do comunismo terminaram em catástrofe; em parte porque há diversas estirpes de comunismo (como de cristianismo), algumas muito moderadas e sensatas (ao contrário do cristianismo, cujas boas estirpes são as que não abrem mão da insensatez da sua mensagem).
Das experiências de utopia socialista-cristã a que me é definitivamente mais cara é a da Colônia Palma, no interior de São Paulo, perto de Tupã – onde, inspirados pelo mesmo avivamento espiritual que os trouxe no seu sopro para o Brasil, famílias inteiras de imigrantes da Letônia viveram e trabalharam numa fazenda na qual tinham “tudo em comum” – com exceção de seus cônjuges. No que me diz respeito o demérito da Colônia Palma é ter definhado e desaparecido antes que eu pudesse experimentá-la.
Quando visitei a Colônia Palma pela primeira vez, em algum momento da década de 1970, restavam ali algumas dezenas de membros originais, morando em impecáveis galpões comunais de madeira, diante de uma estrada ladeada por palmeiras imperiais e sob a vigilância das cascatas do rio que passava imediatamente atrás. Apenas não havia jovens, que haviam escapado um a um para estudar na cidade grande e só voltaram muito eventualmente para visitar parentes e amigos.
Garantem-me os dissidentes que, pelo critério das nossas sensibilidades contemporâneas, não era nada fácil submeter-se ao rigoroso comunalismo da Palma. Mas seria injusto dizer que a Colônia terminou em catástrofe; apenas desabou debaixo do peso das suas próprias exigências.
Desabou debaixo do peso das suas próprias exigências: é o destino que muitos prevêm ou diagnosticam para o cristianismo.
Embora muitos pensadores comunistas tenham sido e permaneçam cristãos (e embora poucas coisas me atraiam mais do que a estonteante possibilidade da vida em comum), não tenho qualquer simpatia verdadeira pelo comunismo. Pessoalmente inclino-me na direção dos anarquistas cristãos como Tolkien, Jacques Ellul e o pessoal dos Jesus Radicals, cujas idéias não descansam. Basicamente, o poder corrompe e se há governo sou contra.
Perfeitamente sensato era Jesus, que nutria um saudável desprezo pelas instituições políticas e não gastou uma gota de saliva condenando a estrutura falida, opressora, corrupta e tremendamente injusta do governo romano. O que deveríamos aprender com o exemplo dele é não esperar nada de bom de governo algum; que nenhum governo merece mesmo que se fale mal dele; que se o reino de Deus está próximo, somos nós que devemos dar evidência da proximidade dele.
De forma muito teologicamente correta, o que Jesus fazia é justiça com as próprias mãos.
Todo seguidor dele deveria ir e fazer o mesmo.
Fonte: Bacia das Almas
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