Por Nilton Bonder, rabino e escritor.
Vivemos num mundo carente de parâmetros no qual há insuficiência de identidades e de elementos que qualifiquem. Há uma crise moral que tem dificuldade em classificar se algo é benéfico ou maléfico, justo ou injusto, permitido ou proibido. Mas se a qualidade anda em baixa, o mesmo não podemos dizer das quantidades. Elas são inéditas - de gente, de consumo, de longevidade, de destruição, de informação e de tudo mais.
Passa desapercebido ao ser humano comum que a quantidade também qualifica. As quantidades representam fronteiras entre distintas qualidades. Diz um ditado: "uma mentira é uma mentira; duas, são mentiras; mas três, é política". Ou como observou W.Minzer: "se você rouba de um autor é plágio; se você rouba de muitos é pesquisa". Plágio e pesquisa ou mentira e política são qualitativamente distintos pelo simples fato de serem quantitativamente distintos. São realidades que a matemática revela, mas que os olhos não percebem. Bem alertava Einstein que "uma linha reta é o mais simples e trivial exemplo de uma curva". Toda a conduta humana, por mais reta que seja, é uma curva.
Nada melhor exemplifica isto do que a "verdade".
Diz um provérbio judaico "Metade de uma verdade é uma mentira inteira". A verdade é uma unidade quantitativa que se diminuída, imediatamente se modifica qualitativamente. Aliás, não só diminuída porque o Talmude alerta: "Quando você acrescenta à verdade, você subtrai dela". Em outras palavras, a mais ou a menos, uma verdade é uma mentira.
Em realidade, a ética, a moral e a educação raramente ensinam sobre o efeito qualitativo da quantidade. Isto só a vida e a experiência trazem. Quem lida com receitas sabe, como sabia meu avô, que a vida é como uma panela no fogo. Se ao tentar fazer um ensopado, passar do ponto… não tem problema - vira um cozido. Se ainda passar do ponto - vira um assado! Nossa qualidade de vida talvez dependa de nossa adaptabilidade às quantidades da vida.
No entanto, há um enorme risco quando a quantidade ao invés de interferir na qualidade acaba por substituí-la. Fica cada vez mais evidente que o mundo de hoje será julgado qualitativamente no futuro por suas quantidades. A preservação dos recursos naturais e a distribuição de riqueza são hoje questões morais determinadas mais por quantidades do que por qualidades.
Quem consumir ou acumular em certas quantidades estará automaticamente se qualificando como ajustado ou desajustado, como perverso ou justo. O roubo ou a violência não serão mais definidos pela qualidade de se descumprir a lei ou a ordem, mas pela imoralidade quantitativa de nosso comportamento.
O que é um câncer senão células que não querem se submeter à disciplina do corpo, que trocam diretrizes qualitativas por quantitativas. Seu "ego" fica descontrolado, enlouquecido. No afã de devorar tudo que vêem pela frente deixam de se importar com o organismo como um todo. Trata-se de células que trocam parâmetros de qualidade por parâmetros de quantidade.
Nossa incapacidade de gerenciar nossas vidas e recursos por parâmetros de qualidade está restringindo a moral e a ética ao território das quantidades. Números no lugar de adjetivos, proporções no lugar de critérios, quotas ao invés de estratégias, estatísticas no lugar de destinos. Um mundo que só julga pelas relações é um mundo sem visão, um mundo sem sonhos.
Há urgência por identidades e referências. Não se trata de um mundo apenas de qualidades sem nenhuma influência das quantidades, como querem os fundamentalistas. Mas também não é um mundo regido por quantidades a despeito de qualidades, como querem os imediatistas e os oportunistas.
A razão maior pela qual quantificamos nossos anos é despertarmos para a necessidade de parâmetros de qualidade.
Um planeta quantitativamente convencionado é o que chamamos de globalização. Um planeta qualitativamente coeso é o que chamamos de um organismo. Se não nos tornarmos mais orgânicos, respondendo com urgência as necessidades de todas as nossas partes, então infecções como o 11/9, ou bolsões de pobreza e de violência podem muito bem nos levar a um estado de septicemia generalizada.
Se há uma guerra profética a se desencadear ela está dentro de nós e não fora. Seremos capazes de funcionar qualitativamente como células deste organismo ou funcionaremos quantitativamente como focos ou metástases deste processo degenerativo?
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