Por Nilton Bonder, rabino e escritor.
O Eclesiastes diz que há um tempo para tudo, tempo de alegria, tempo de tristeza, tempo de paz e tempo de guerra. É muito possível que, quando ele foi escrito, o mundo vivesse um momento em que realmente a situação se assemelhasse a nossa experiência contemporânea.
Nos anos 90 vivemos com a nítida sensação de que o período de paz experimentado, ou os processos de pacificação que se estabeleceram, representava o início de uma definitiva forma de convivência pacífica. Estaríamos iniciando o tão esperado e milenarmente sonhado futuro de harmonia, justiça e paz. Somos então surpreendidos por tempos de guerra como se isso fosse realmente um destino sobre o qual não temos nenhum poder. A guerra seria como a chuva. Nossa sensação de impotência diante de tempos disso ou tempos daquilo pareceria fazer-nos fantoches da realidade.
Mas eu tenho a impressão que o Eclesiastes estava falando de uma outra coisa. Não se trata de resignação ou de uma proposta reacionária, mas algo similar ao que Morin nos diz ao falar que "não temos para onde ir". Isso porque o refrão marcante e chocante deste livro diz: Não há nada novo sob o sol.
À primeira vista esta frase parece extremamente pessimista: não podemos fazer nada; tudo vai ser igual; geração vem, geração vai os seres humanos são prisioneiros de uma natureza humana da qual não tem como "sair desse lugar". De certa maneira, mais do que nos percebermos como parte Gaia, de um planeta onde temos que conviver porque não temos para onde ir, compartilhamos mais do que tempo e espaço, compartilhamos naturezas.
Vivemos mais que no mesmo local cósmico, somos conterrâneos de essência. Eu acho que é isso que o Eclesiastes está dizendo: temos que lidar com uma estrutura humana que de geração em geração vai precisar de um processo de amadurecimento, vai precisar de uma educação para o futuro que não virá pronta, geneticamente feita. O bebê que, como o cachorro, identifica o outro como um igual, é o mesmo bebê capaz de grandes violências em disputas por posse ou atenção, e será este o bebê do futuro.
As diferenças do que experimentamos hoje não têm a ver com transformações de nossa natureza. Tem a ver com a maior compreensão e o aumento de recursos para que possamos promover nosso amadurecimento pessoal e coletivo. Um amadurecimento que sempre será um processo no qual teremos não só poderes, mas a responsabilidade de intervir. Vamos poder melhorar as condições de nossa civilização, mas mesmo assim teremos tempos de paz e tempos de guerra. Não necessariamente guerras em que a gente pegue avião e jogue bombas, mas guerras travadas dentro de nós mesmos. Seus armistícios serão celebrados pelo amadurecimento de não mais termos que recorrer a métodos infantis de posse, de controle e de triunfo, que hoje, como no passado, vemos tão presente na realidade.
Duas questões em relação ao diálogo me parecem importante compreendermos porque são, por um lado, a razão da existência do fundamentalismo, e, por outro, território eterno de batalhas. Transformar as espadas em arados, como o profeta Isaias sugeriu, é um processo, mas não de transformação da espécie humana e sua natureza.
Muitas vezes queremos viver no espaço da mágica ou da fantasia. Queremos exorcizar de nós o "eu" de que não gostamos, que identificamos como não sendo ideal. Isaias falava, no entanto, de substituir instrumentos de destruição por outros que propiciassem plantio. Referia-se ao processo de criar ferramentas para amadurecer as pessoas extinguindo os instrumentos que infantilizam as pessoas.
Não há dúvidas de que o mais importante instrumento é o diálogo, nos moldes que a professora Lia Diskin coloca: não pessoas em disputa, mas trafegando pelas idéias. A passagem desse diálogo de discórdia, de busca de triunfo para o diálogo verdadeiro se traduziria pela mudança do jargão da "tolerância", que é uma palavra horrível porque dela se infere um consentimento precário, para a idéia de "apreciação". Apreciar significa celebrar juntos e pensar juntos, independentemente de concordância. E este é o campo das "guerras de tempos em tempos" com as quais cada geração terá que lidar.
Há uma reflexão sobre o diálogo entre mestres Chassídicos que elucidam algumas das dificuldades e que ajudam a compreender, ou melhor, apreciar as "batalhas" que para sempre serão travadas. O Rabino de Kotzk dizia: "Se eu sou eu porque você é você, e se você é você porque eu sou eu, então eu não sou eu e você não é você e a gente não tem o que falar. Mas, se eu sou eu porque eu sou eu, e você é você porque você é você, então eu sou eu e você é você e podemos conversar".
O rabino aponta para o fato de que as inseguranças humanas se depositam todas no espaço das interações e das comparações. Quando eu sou eu porque você é você, significa que só consigo ter uma noção de identidade quando me comparo a você. A raiz desta relação de diálogo ou não-diálogo se fundamenta na questão da insegurança; uma insegurança tão profunda que na verdade nos coloca numa existência paralela, de impossibilidade de encontros e nunca poderemos conversar. Para o diálogo não importa se há discórdia ou convergência de idéias, é apenas fundamental que você esteja falando não de um lugar de insegurança, mas de um lugar de identidade, de crença, de visão.
O fenômeno do fundamentalismo em nosso tempo é basicamente produto da insegurança de identidades que se encontram sob ataque, identidades vacilantes e que se valem mais de aspectos daquilo que não são do que de suas próprias raízes e valores. Essa atitude torna as pessoas, as tribos e as identidades enganchadas a quem o outro é.
Vemos aqui nitidamente a batalha por amadurecimento que se trava em nós e que extravasa para a realidade social. Somos muitas vezes crianças transvertidas em adultos e reproduzimos relações sociais e políticas típicas desta infantilidade mascarada. A grande batalha é o fortalecimento das identidades individuais e coletivas para que possa existir mais diálogo - mais instrumentos para tornar espadas em arados. Precisamos fortalecer as culturas e as tradições religiosas para que não se sintam criticadas ou julgadas de fora, mas que elas mesmas possam fazer isso de dentro.
O primeiro passo para este mundo de diálogo é que cada um faça o seu dever de casa, o dever de casa de amadurecimento, de poder realmente desenvolver uma identidade, uma identidade que seja o fruto da sua própria história, produto de sua própria crítica e aperfeiçoamento.
O que nós vemos nas tradições religiosas do Ocidente (não falo do Oriente por sentir-me um leigo no assunto) é, por exemplo, a questão emblemática sobre Jerusalém. Essa briga por Jerusalém é basicamente uma disputa em torno de inseguranças internas das tradições ditas bíblicas. Jerusalém só será Jerusalém se ela for a Jerusalém dos judeus. Ou Jerusalém só será Jerusalém se ela for a Jerusalém dos muçulmanos, ou seja, contanto que não seja a Jerusalém dos judeus, ou então que não seja a Jerusalém dos cristãos.
Os textos sagrados que são matriz da reflexão religiosa, seja o Alcorão seja o Novo Testamento, ou o Antigo Testamento, refletem essa questão da insegurança na identidade. O Antigo Testamento precisa afirmar o quão diferente os hebreus eram da civilização egípcia ou dos povos dos canaãnitas. O Novo Testamento e o Alcorão, por sua vez são marcados por esta visão enganchada. Nestes textos os judeus, por exemplo, se prestam ao papel de um legítimo outro para estas tradições.
No Alcorão, judeus são apresentados como um modelo do "que não se é", mas mesmo que esse judeu seja um judeu simbólico, que não seja o povo judeu, a marca dessa insegurança é evidente. Já no Novo testamento o judeu é apresentado como aquele que você não quer ser, aquele que renega. Encontramos aqui resquícios desse recurso do qual todas as tradições lançam mão, umas mais outras menos, qual seja, a criação de teologias usando o outro para afirmar o que não eram, nitidamente visando fortalecer sua própria identidade.
Enquanto as tradições religiosas não entenderem que elas têm que fazer uma limpeza, livrando nossas identidades de suas inseguranças infundadas, ficará difícil o diálogo verdadeiro e processos de guerras mais internas e menos externas. Todos os líderes, sejam de uma cultura, uma nação ou uma tradição espiritual, têm como obrigação se envolver nesse processo de autodiagnóstico de suas inseguranças e buscar vencê-las com maturidade, distanciando-se de processos infantis de apontar o outro e dizer: "foi ele!".
Uma segunda questão em relação ao diálogo e que raramente paramos para pensar, é um diálogo não entre os que estão aqui na nossa geração, mas o diálogo intergerações e suas violências. Outro dia eu escrevia sobre uma história no Talmud, uma história muito simples, mas que desperta para esta questão. Conta que um rabino comprou uma tâmara tão maravilhosa que impregnava o ambiente com sua fragrância. O filho do rabino entrou na casa e disse: que cheiro fantástico é esse? O pai disse: meu filho essa tâmara é para você. O filho ficou feliz e levou a tâmara. Como viviam na mesma casa o rabino ouviu quando seu filho no outro cômodo disse a seu próprio filho, a seu neto: Veja que tâmara fantástica, é para você! Imediatamente o rabino fez um comentário que reputo importante. Disse ele: "Quando meu filho cedeu a tâmara, por um lado estremeci de tristeza, por outro, fiquei extremamente feliz. Fiquei triste porque ele me preteriu ao seu próprio filho; mas fiquei feliz porque o que ele fez era certo".
Devemos prestar atenção na tensão que existe aqui. O que o rabino fez: ele abre mão de um prazer para possibilitá-lo a seu filho que por sua vez faz o mesmo com o seu filho. O pai se sente traído por que havia aberto mão do prazer, mas não esperava ser preterido pelo neto - para seu filho era mais importante o neto uma vez que privara o pai do prazer da tâmara, propiciando-o a seu filho. Ao mesmo tempo ele se contenta, pois compreende que seus próprios valores estão presentes em seu filho e que este procedeu da mesma maneira que havia feito. Ele reconhece um vetor de preocupação prioritário para com a geração do futuro e não para a geração do passado. Essa é uma tensão extremamente difícil. Quando os pais não elaboram esta tensão em si, como no caso do rabino, eles produzem mensagens contraditórias e extremamente violentas.
Não é simples honrar os diálogos entre gerações. Devemos respeito às gerações anteriores, mas é fundamental que estas gerações anteriores assumam a responsabilidade de uma atitude madura em relação à sua tristeza por ser preterida e ter que, por vezes, abrir mão daquilo que acreditam ser certo. Cabe a essas gerações temperar sua tristeza com a alegria de reconhecer processos que favorecem e renovam as gerações futuras. A exigência de lealdade para com as instituições e os poderes que representam o passado muitas vezes rompem o diálogo com as instâncias que representam o futuro.
Essas duas questões de amadurecimento influenciam a qualidade e a disponibilidade ao diálogo. E ambas as questões aparecem nitidamente no discurso fundamentalista: 1) identificar inimigos para fortalecer sua identidade e 2) promover um vetor de compromisso mais forte do pai para com o avô do que para com o neto.
Há um detalhe nessa questão de maturidade que gostaria de ressaltar. Quando o rabino de Kotzk dizia que "se eu sou eu porque você é você" então eu não posso ser eu e não podemos dialogar, um outro aspecto fica evidente. E outro rabino Chassídico, o Ishbitzer, se preocupou em apontar. Ele dizia o seguinte: se eu sou eu e você não é você, então você não gosta de mim.
Esse é um aspecto da natureza humana e que tange a frustração e a inveja. Quando não estamos bem, qualquer um que esteja bem é o nosso inimigo; qualquer um que esteja com uma identidade fortalecida nos lembra de nossas vulnerabilidades. Muitas vezes se chega a ponto de acreditar que nossa infelicidade é produto deste que nos lembra de nossa insatisfação ou de nossa insegurança. Guerrear com este inimigo externo fica mais fácil do que se defrontar com seus inimigos e fantasmas internos.
Em outras palavras, nossa luta é por propiciar o máximo de instrumentos culturais e tradicionais que visem ao amadurecimento das pessoas. Essa luta será constante. Fazer com que ela seja travada na esfera da educação e não das guerras é o desafio maior para nossa civilização. Haverá momentos mais propícios para que uma geração experimente essa maturidade, haverá outros, sejam no âmbito da sobrevivência ou da continuidade, que serão mais difíceis. Viver é lidar com tempos disso, tempos daquilo. Fantasiar que a vida possa ser uma homeostase, um equilíbrio permanente, é abandonar a própria definição de vida.
De que maneira nós geramos processos que infantilizam as nossas populações? Como engendrar uma educação que vise a este amadurecimento?
As conquistas da civilização, particularmente o avanço científico, que amplia nossa longevidade e nos faz sonhar inconscientemente com a possibilidade da imortalidade, não ajudam a promover este amadurecimento. O mundo fica muito marcado por este aspecto jovial e imaturo que se constrói da perspectiva de um futuro infinito. O jovem e o conquistador têm todos os lugares para ir e todos os prazeres por provar. A grande bênção de saber que não há para onde ir - não porque a Terra é limitada, mas porque somos todos inquilinos temporários da existência - é em si o lugar de encontro com todos esses conterrâneos e contemporâneos, com quem dividimos, acima de tudo, nossa condição finita. Precisamos de uma cultura amadurecida que ensine isso sem morbidez. Ao invés temos, por um lado uma cultura jovial que é uma cultura de consumo, uma cultura imatura que acha que a vida é ilimitada, que os recursos são ilimitados; por outro, uma cultura de anciãos que se sentem muito ameaçados em sua identidade e que não acreditam no que ensinaram a seus filhos. Daí a criação de culturas aprisionadoras ou fundamentalistas.
As ferramentas para esta educação estão hoje mais disponíveis do que nunca. Dispomos da psicanálise que nos traz um melhor conhecimento de nós mesmos, além de entendermos melhor os processos históricos e sociais e dispomos de forma globalizada de toda a herança sapiencial de nossa civilização.
Investir na possibilidade de tornar disponíveis estes instrumentos de amadurecimento a todos os seres humanos, visando as supri-los de recursos materiais e recursos pessoais para seu desenvolvimento parece ser a única chance de diálogo e paz. Só assim promoveremos uma "liberdade tranqüila" independente de se os tempos sejam de tranqüilidade ou adversidade.
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