Em entrevista, professor Thomas Pettitt defende que novas mídias levam humanidade de volta à era pré-Gutenberg, da cultura oral.
Por Fernanda Godoy.
NOVA YORK - Thomas Pettitt tem provocado discussão nos meios acadêmicos ao afirmar que a Humanidade está voltando à cultura de transmissão oral de informação e conhecimento, tornando a época da imprensa escrita e dos livros apenas um parêntese na História. Professor de história da cultura na Universidade do Sul da Dinamarca, ele construiu a Teoria do Parêntese de Gutenberg para analisar uma época que teria começado com a invenção da prensa, no século XV, e terminado com a era da mídia eletrônica. "Estamos caminhando para um futuro pós-imprensa", disse ele, para mais adiante acrescentar: "Alguém pode receber uma mensagem escrita quase tão rapidamente como se estivesse falando com a pessoa. É como se estivéssemos falando pelos dedos".
Pettitt, que deu entrevista ao GLOBO por e-mail, criou sua teoria no espírito de cooperação que marca as redes sociais. Usou um conceito surgido em uma discussão entre professores e, com a permissão do autor, o colega Lars Ole Sauerberg, cunhou a Teoria do Parêntese de Gutenberg, pai da imprensa. Segundo ele, a era digital derruba barreiras entre imprensa tradicional e novas mídias. A sobrevivência dos meios de comunicação, garante, estará cada vez mais vinculada à sua credibilidade.
O GLOBO: Estamos mesmo indo "de volta para o futuro", ou seja, passando por uma revolução que nos levará de volta a um passado no qual a cultura era oral, como diz a Teoria do Parêntese de Gutenberg?
THOMAS PETTITT: "De volta para o futuro" é um filme adorável, mas sempre penso sobre esse título. Imagino que, tendo viajado a um passado quando seus pais eram jovens, no fim do filme era hora de o rapaz voltar ao futuro de onde ele tinha vindo. No Parêntese de Gutenberg, a ideia é a oposta: estamos voltando ao passado ao nos movermos para o futuro. Afirmar que o futuro será uma volta ao passado não parece muito otimista. Haverá mais guerras, mais superstição e fundamentalismo, mais caças às bruxas e pragas, como na Idade Média? Fico feliz em poder dizer que a Teoria do Parêntese de Gutenberg não tem nada a ver com isso, embora meu colega L.O. Sauerberg não estivesse otimista quando inventou o termo. Ele é professor de literatura inglesa, e literatura é algo que se lê basicamente em livros. Então, se os livros estão acabando, isso pode ser o fim da literatura também. Não estou tão preocupado, porque estudo cultura medieval e sei que havia canções, histórias e encenações maravilhosas antes dos livros, então podemos esperar que as pessoas continuarão a fazer coisas incríveis com as palavras depois dos livros.
E como isso afeta os meios de comunicação?
PETTITT: O Parêntese de Gutenberg diz respeito a mudanças na maneira como comunicamos informação e histórias, de um lugar a outro e de um momento a outro. Pela lembrança e pela fala; por manuscritos; por livros, filmes, gravações e pela TV; por tecnologia digital e pela internet. Depois que a prensa foi inventada por Gutenberg, levou um tempo até que ela se espalhasse, mas por volta de 1600 o livro impresso tinha virado o meio dominante e de maior prestígio, e permaneceu nessa posição até recentemente, digamos, até o ano 2000. Agora, estamos usando meios tecnologicamente mais avançados que o livro, mas de certa forma se parecem com as tradições orais que o precederam. Da mesma forma que uma frase contém parênteses: eles interrompem a frase (mas, como estes, a modificam) e, quando o parêntese acaba, a frase continua onde a havíamos deixado antes da interrupção. Então, sim, estamos caminhando para um futuro pós-imprensa que, de certa forma, se parecerá com o passado pré-imprensa. Claro que ainda não chegamos lá: estamos na transição, na saída.
De que maneira a cultura da internet está resgatando e continuando a cultura pré-Gutenberg?
PETTITT: As semelhanças estão na maneira pela qual nos comunicamos por palavras: a maneira como lidamos com informações e narrativas que estão em palavras. Já temos há algum tempo meios eletrônicos como a TV, o rádio e o cinema, que voltam ao mundo da oralidade porque as palavras são faladas, e não vistas em uma página. Foi a isso que Marshall McLuhan se referiu quando disse que estávamos saindo da "Galáxia de Gutenberg". Nossas novas mídias (smartphones, laptops, tablets e suas conexões de internet) estão tomando conta dessa comunicação pelo som, e até ampliando-a. Claro que elas também são usadas, talvez até mais, para a comunicação pela palavra escrita, mas isso é feito de maneira diferente da usada pela imprensa. Em alguns dos meios mais difundidos (e-mails, SMS, Twitter), alguém pode receber uma mensagem escrita quase tão rapidamente como se estivesse falando com a pessoa. É como se estivéssemos falando pelos dedos, então a maneira de escrever é muito mais próxima da fala. As novas mídias também tornam mais fácil mexer em um texto.
Mesmo nas revoluções, o ponto da virada muitas vezes só é percebido quando já passou. Quais são esses pontos, até agora?
PETTITT: Não tenho certeza de que as pessoas não se dão conta das revoluções enquanto elas estão acontecendo. Mas, por outro lado, a natureza da mudança ou o ponto sem retorno pode nos escapar. Penso em dois momentos decisivos na nossa revolução. Um deles é o dia em que todos os livros (e jornais) forem criados em forma digital - suspeito que em muitos países este momento já passou. O outro é o dia em que todos os livros (e jornais) que já existiam tiverem sido escaneados e portanto existirem em forma digital - estamos muito próximos disso.
Até que ponto nossa percepção do mundo e nossa comunicação são determinadas pela tecnologia?
PETTITT: Esta pode acabar sendo a mudança mais importante de todas. Há coincidências interessantes entre revoluções na mídia e na maneira de pensar das pessoas. Alguns estudiosos veem uma conexão entre a difusão da imprensa e grandes mudanças na cultura europeia: o Renascimento, a Reforma, a revolução científica. Se isso for verdade, podemos esperar que nossa revolução digital tenha um efeito radical sobre a maneira de pensar. Minha teoria é que há uma conexão entre os livros e uma visão de mundo que separa as coisas em categorias rígidas. A tribo que chamo de "gente do livro" parece gostar de categorias. É apenas durante o Parêntese de Gutenberg que as pessoas insistiram tão "categoricamente" em que alguém é macho ou fêmea, negro ou branco, humano ou animal, ser vivo ou máquina. Na Idade Média, antes da imprensa, as misturas eram mais toleradas, e parece que estamos voltando a essa tolerância.
Qual a influência definitiva da era de Gutenberg para a Humanidade?
PETTITT: Difícil dizer. Daqui a um século, é possível que turistas visitem bibliotecas da mesma maneira que hoje nós vamos a museus para ver espadas e armaduras. A ideia de parênteses (já que parênteses modificam a frase que ele interrompe) sugere que não teríamos chegado onde estamos agora sem o período da imprensa. Mas isso não significa que ele é um estágio obrigatório de desenvolvimento. Deve haver muitas comunidades no que costumávamos chamar de Terceiro Mundo que eram analfabetas até pouco tempo atrás, ou que não tinham dinheiro para livros, e que passaram diretamente para os celulares e a internet, que simplesmente pularam o Parêntese de Gutenberg. A verdadeira questão é: a época da imprensa nos deu algo que não teríamos tido sem ela? E a resposta mais óbvia é: a História. Para as culturas alfabetizadas, o que aconteceu no passado está registrado em documentos, e a imprensa assegura que muitas cópias desses documentos sobrevivam, e há muitas cópias dos livros de História que discutem o que os documentos registram.
O senhor disse que, na era de Gutenberg, o impresso era visto como uma garantia da verdade, e que isso está deixando de existir. Com que rapidez isso está acontecendo?
PETTITT: As pessoas preferiam pensar de acordo com categorias, incluindo categorias de mídia. Então, a escrita é mais verdadeira do que a fala, e a imprensa, mais verdadeira que um manuscrito. Livros com encadernação de couro e letras douradas são tratados com mais respeito do que panfletos. É só quando você mesmo escreve um verbete de enciclopédia que se dá conta de que a capa de couro não prova nada.
Como a mídia tradicional pode se diferenciar neste mundo de abundância de informação?
PETTITT: Esta é uma das áreas nas quais a ideia do Parêntese de Gutenberg pode nos ajudar a prever ou a lidar com o futuro. As coisas estão mudando muito rapidamente. A maioria dos jornais complementou sua versão impressa com um site, e já foi previsto que dentro de 15 anos a maioria dos jornais existirá apenas na sua forma digital. Os jornais já não podem presumir que serão mais respeitados que outras fontes de informação devido ao seu formato. A imprensa está no caminho de saída, e qualquer veículo com patrocinadores generosos, não importa o quão errônea ou extrema sua mensagem, pode criar um website tão impressionante como o do mais respeitado jornal. Então, como os jornais podem convencer as pessoas de que sua mensagem é mais confiável e que vale mais pagar por ela? Estamos de volta à era pré-Gutenberg, quando os medievais recebiam notícias por meio de rumores, e as notícias de lugares remotos chegavam por estrangeiros. Como decidir em quem acreditar? A chave é a reputação, ou a fama. Essa era a coisa mais importante nas sociedades orais, e o mesmo pode acontecer nas sociedades digitais. Na hora de decidir sobre a veracidade das notícias, o fator chave é a reputação do mensageiro.
Fonte: O Globo, 08/11/2010
Um comentário:
É apenas durante o Parêntese de Gutenberg que as pessoas insistiram tão "categoricamente" em que alguém é macho ou fêmea, negro ou branco, humano ou animal, ser vivo ou máquina. Na Idade Média, antes da imprensa, as misturas eram mais toleradas, e parece que estamos voltando a essa tolerância.
Estranha esta afirmação... Nas sociedades antigas (e nas contemporâneas) vemos estratificação e papéis sociais bem definidos. Categorizar é natural do ser humano, não é efeito da imprensa. A explosão bibliográfica/informacional aumentou a necessidade de classificar documentos para facilitar sua recuperação, ok, mas dizer que a era pré-imprensa era mais tolerante é exagero.
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