Por Upton Sinclair
Verme maldito
Na mais significativa das lendas a respeito de Jesus, conta-se que o diabo tomou-o a uma montanha muito alta e mostrou-lhe todos os reinos do mundo num único momento de tempo; e o diabo disse a ele: “Dar-te-ei a ti todo este poder e a sua glória; porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quero”. Jesus, como sabemos, respondeu e disse “Vai-te para trás, Satanás!” E estava sendo sincero: ele se recusaria a ter qualquer coisa em comum com a glória do mundo, com “poder temporal”; ele escolheu a carreira de um agitador revolucionário, e morreu a morte de um perturbador da paz. E por dois ou três séculos a sua igreja seguiu os seus passos, promovendo o seu evangelho proletariado. Os cristãos primitivos tinham “tudo em comum, exceto suas esposas”; viviam à margem da sociedade, escondendo-se em catacumbas desertas, sendo atirados aos leões e fervidos em óleo.
Mas o diabo é um verme sutil; ele não desiste diante da primeira derrota, pois conhece a natureza humana e a intensidade das forças que batalham em seu favor. Ele não conseguiu pegar Jesus, mas voltou para pegar a igreja de Jesus.
Ele veio quando, através do poder da nova ideia revolucionária, a Igreja havia conquistado uma posição de tremenda influência no Império Romano decadente; e o verme sutil assumiu a aparência de ninguém menos do que o próprio Imperador, sugerindo que ele deveria converter-se à nova fé, de modo que a Igreja e ele pudessem trabalhar juntos para a maior glória de Deus. Os bispos e pais da Igreja, cheios de ambição para a sua organização, caíram no estratagema, e Satanás saiu rindo à valer consigo mesmo. Ele tinha conseguido tudo que havia pedido a Jesus trezentos anos antes; tinha conseguido a maior religião do mundo. O quão completo e rápido foi o seu sucesso pode ser julgado pelo fato que cinquenta anos mais tarde encontramos o Imperador Valentiniano vendo-se compelido a publicar um edito limitando as doações das sensibilizadas mulheres das igrejas de Roma.
Daquele tempo em diante o cristianismo tem se mostrado… o principal inimigo do progresso social. Dos dias de Constantino até os dias de Bismarck e Mark Hanna, Cristo e César tem sido um, e a Igreja tem servido de escudo e armadura para o poder econômico predatório. Com apenas uma ressalva digna de nota: a Igreja nunca foi capaz de suprimir por completo a memória de seu fundador proletário. Ela fez o máximo nesse sentido, naturalmente; temos visto os seus acadêmicos distorcendo por completo o sentido das palavras dele, e a Igreja Católica chegou mesmo a manter o uso de uma língua morta, de modo que suas vítimas não pudessem ouvir as palavras de Jesus numa forma que pudessem entender.
Das tais
O fundador do cristianismo era homem especializado em crianças. Ele não tinha medo de ver seus discursos perturbados por elas, e não as considerava supérfluas. “Das tais é o reino dos céus”, ele disse; e sua igreja herdou essa tradição – “apascentai meus cordeirinhos”. Havia crianças na Grã-Bretanha na primeira parte do século XIX, e podemos saber o que era feito delas recorrendo à História Industrial da Inglaterra, de Gibbins:
Algumas vezes traficantes comuns tomavam o lugar dos donos de indústrias e transferiam um certo número de crianças para uma região fabril e ali as mantinham, em algum porão escuro, até que pudessem repassá-las para um dono de moinho que precisasse de mão de obra, o qual então viria e examinaria sua altura, força e habilidades corporais, exatamente como faziam os proprietários de escravos nos mercados da América. Depois disso as crianças estavam simplesmente à mercê dos seus proprietários, nominalmente na qualidade de aprendizes, mas na verdade como meros escravos, sem direito a salário, que não valia à pena sequer alimentar e vestir de forma adequada, pois eram muito baratos e podiam ser facilmente substituídos. Normalmente as autoridades paroquianas providenciavam, a fim de livrar-se dos deficientes mentais, que um idiota fosse assumido pelo proprietário do moinho a cada vinte crianças sadias. O destino desses infelizes deficientes mentais era ainda pior que o dos outros. O segredo de seu destino final nunca foi revelado, mas podemos gerar uma idéia de seus pavorosos sofrimentos pelas tribulações enfrentadas pelas outras vítimas da ganância e da crueldade capitalistas. As horas de trabalho eram limitadas apenas pela exaustão, depois que diversos modos de tortura haviam sido aplicados sem resultado para obrigá-los a continuar trabalhando. As crianças freqüentemente trabalhavam dezesseis horas por dia, dia e noite.
No ano de 1819 foi proposta no Parlamento uma lei que limitava o trabalho de crianças de até nove anos de idade a quatorze horas diárias. Essa pareceria ser uma providência muito razoável, com grande probabilidade de ganhar a aprovação de Cristo; ainda assim a proposta foi violentamente oposta pelos empregadores cristãos, apoiados pelo sacerdócio cristão. Ela interferia na liberdade de contratação e portanto na vontade da Providência; era anátema para uma igreja estabelecida, cuja função era em 1819, como é em 1918 e como era em 1918 a.C., ensinar a origem e a sanção divinas da ordem econômica vigente. “Anu e Baal convocaram-me, ó Hamurabi, adorador dos deuses…” é como começa o código legal mais antigo que chegou até nós, de 2250 a.C., e a cerimônia de coroação da igreja da Inglaterra está fundamentada na mesma tese. O dever de submissão, não apenas ao rei divinamente escolhido, mas ao divinamente escolhido Latifundiário e ao divinamente escolhido Dono de Indústrias, está implícita em cada cerimônia da igreja, e explícita em inúmeros de seus credos. Na litania o povo suplica por mais abundante graça de modo a ouvirem mansamente “a Tua Palavra”; e transcrevo a seguir a “Palavra” na forma que obriga-se as criancinhas a decorarem. Se existe no mundo um sumário mais perfeito da ética escravagista, desconheço-o.
Meu dever para com meu próximo é [...] honrar e obedecer ao Rei e a todos que são colocados em posição de autoridade abaixo dele; submeter-me a todos os meus governantes, professores, pastores espirituais e mestres; conduzir-me de forma subserviente e reverente diante de todos que gozam de padrão social superior ao meu; não cobiçar os bens de outros homens, mas aprender a trabalhar verdadeiramente de forma a merecer meu sustento e cumprir meu dever dentro daquele nível social para o qual agradou a Deus chamar-me.
Fonte: Bacia das Almas => Verme maldito, Das tais
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