Por Nilton Bonder, 10/OUT/2001
O professor ouviu um ruído e foi olhar. No chão estava o Marquinhos filho do vizinho que tinha caído da varanda e sangrava profusamente. Mesmo sendo uma pessoa de idade tomou o menino nos braços e começou a correr desesperado para o Hospital a poucas quadras. No caminho vinha descendo a ladeira uma senhora que, ao vê-lo esbaforido, gritou: "Calma, professor... vai dar tudo certo. Não se apresse tanto. Deus vai ajudar... e o senhor já não tem idade para correr assim com uma criança no colo!". Ela então se aproximou e, em pânico, constatou: "Ai meu Deus, é meu netinho! Corre professor, corre, pelo amor de Deus, corre."
O verdadeiro Deus está na urgência que reconhece no rosto "um netinho", um seu. Até então aparece o deus da idolatria, respaldado muitas vezes pela fé que não enxerga a urgência do outro. A base das religiões bíblicas é o reconhecimento de que o ser humano é a imagem e semelhança de Deus. Não reconhecer esta semelhança seja num executivo do mundo financeiro nova-iorquino, seja num fanático islâmico, seja num negro africano desnutrido, seja num chinês que não parece diferente de outro chinês, é a prova dos nove do sucesso ou falência do establishment religioso (de todas as religiões) de levar a verdadeira mensagem a seus adeptos.
Há vários inimigos invisíveis que estão ficando visíveis nesta crise pela qual passa o mundo. Há o inimigo de uma civilização que nos aliena em relação ao outro. Uma cultura de fobia do outro e de sonharmos com um mundo de privacidade. Uma espécie de des-socialização que nos leva a ser novamente nômades e coletores. Nômades porque podemos estar em qualquer lugar, sem apreço e carinho pelo lugar; e coletores porque não plantamos para o futuro, apenas para o nosso breve futuro pessoal.
E a América não é este mal, apesar de muitos simboliza-la como este mal. Afinal este mal pode estar mais vivo na Arábia Saudita com seus sheiks e monarcas trilionários do que numa Nova Iorque símbolo de integração entre raças, culturas e religiões. O mimado príncipe Bin Laden, que à moda de tantos filhos de nobres e milionários do Ocidente precisa de um hobby para dar sentido a sua pobre existência, é talvez mais Ocidental do que seus seguidores o percebam. Sem deixar de reconhecer que o presidente Bush tem nas mãos o potencial de uma Guerra Santa seja na crise em si ou seja em posturas como as assumidas nas questões de comércio internacional ou questões ambientais do planeta.
Mas o inimigo invisível maior está nas próprias religiões. Não que elas estejam em guerra. Elas nunca estiveram tão aliadas como na atualidade. Elas se compreendem porque funcionam de forma muito semelhante. São elas a maior fonte de doutrinação da juventude, mergulhadas que estão nas ideias de "certo" e "errado". Afinal não foi desta árvore do "Certo e Errado" que comeram no paraíso como pecado maior?
É claro que os fundamentalistas e os fanáticos de cada uma destas tradições são o rosto deste mal, mas as tradições religiosas não realizam Guerras Santas contra esta heresia maior que é não reconhecer a urgência do outro. As tradições religiosas não são proféticas na denúncia de si próprias, no compromisso absoluto com a ética e com uma visão universal. E se o Islã hoje está em evidência, por mérito próprio, não escapa também o judaísmo com o fomento de fundamentalistas-nacionalistas. Não escapa a Igreja com seu corporativismo e ideias subliminares de salvação por uma única porta. Ou o fundamentalismo evangélico que vê Satã por todos os lados, ou em outras palavras, inimigos por todos os lados.
Enquanto as religiões não cerrarem fileiras contra sua própria heresia (esqueça-se a do outro!) elas serão parte do inimigo invisível. E não se trata de encontros ecumênicos e inter-religiosos como um cenário de papelão à frente de bastidores de intolerância e soberba.
O mundo marcha à guerra e não há vergonha maior do que a das religiões. Elas não veem a urgência por que não ajudaram este mundo a compreender que qualquer morte é a de um netinho. Que se prestem hoje no século XXI como pano de fundo para terror e horror é um fracasso inominável, vergonha inocultável.
O século XXI chegou com esta surpreendente novidade: ou percebemos que é do "nosso netinho" que se trata a questão e não de um outro virtual, ou perecemos. Isto porque o futuro será cheio do "outro" ao contrário do que supunham os analistas. Falavam eles de um mundo de computadores, cada um trabalhando em casa, menos horas de trabalho, mais automatização, mais "eu" e menos "os outros" em nossas vidas. Porém o mundo globalizado não é um mundo grande, é um mundo pequeno cheio de gente. O século XXI estará repleto do outro. É um outro cada vez mais numeroso - nunca existiram tantos outros em nenhuma era. E esse outro vive muito - nunca viveram tanto os outros em nenhuma era. É chegado o momento de abandonar o vício da busca de inimigos.
Os inimigos somos nós mesmos. E as religiões que não buscarem este inimigo em si são as religiões idólatras desta nova Era. Não se trata mais de ser Monoteísta, isso é passado. Trata-se de saber como cada uma delas honra este Deus único pelo respeito máximo a seu semelhante. Dizia George Santayana que "O fanatismo consiste no ato de redobrar esforços por conta de se ter esquecido dos objetivos."
As religiões parecem esquecer seu objetivo maior que não é reconhecer Deus apenas como sendo Um, mas cada ser humano, Sua imagem e semelhança, como um ser único. E pelos que morreram, vergonha sobre nós religiosos. E pelos que irão morrer, mais vergonha! E quando estivermos vendo imagens pela televisão onde apareçam crianças ou jovens ensanguentados, olhemos mais de perto - "serão nossos netinhos".
Um comentário:
Muito bacana !
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